Um Estranho no Ninho

Os remédios para a loucura

 Por Antônio Roberto Gerin

É a hora dos remédios! Ou como ordena a enfermeira, em inglês, repetindo, em voz firme, junto ao guichê, em frente do qual se alinham os loucos: medication time! Pois é. Este é o filme dos remédios. E também o filme da loucura como possível sonho de entrada para a liberdade. Estamos falando do premiadíssimo UM ESTRANHO NO NINHO (133’), dirigido por Milos Forman, EUA (1975), e que tem no magistral Jack Nicholson (Oscar de Melhor Ator), na pele de McMurphy, a encarnação do humanismo irreverente, aquela maneira de ser que se confunde com loucura, mas que não passa de uma tentativa desesperada de viver fora dos limites autorizados pela dita civilização. É a vida vivida no seu instante, intensamente, sem as barreiras que o impedem de ultrapassar as linhas civilizatórias, estragando-se nos excessos, tendo como ponto de referência a máscara sagrada da loucura. Heróis e anti-heróis, todos os que tentaram pular a cerca da refinada normalidade foram estraçalhados por lobos de plantão. Neste caso, em Um Estranho no Ninho, estamos falando da estrutura do sistema psiquiátrico, com suas leis perversas, onde não cabe olhar para o humano, senão pelo que ele representa de ameaça para a sociedade. Randle Patrick McMurphy é a quintessência da busca tresloucada pela liberdade sem concessões. A liberdade perigosa. Ameaçadora. Portanto, uma liberdade que pretensamente termina em loucura.

McMurphy é um presidiário que cumpre pena por delitos de agressão física e sexual. Um descontrolado que acha que a vida pode ser vivida sem que lhe cuspam regras. E estes comportamentos transgressores ele os reproduz na prisão, obrigando a que seja encaminhado para um hospital psiquiátrico. É sua entrada nesta instituição que dá razão e início a uma narrativa pungente de como é ser um estranho num mundo em que o limite entre normalidade e loucura é tênue, discutível e, na maioria das vezes, mentiroso. A avaliação dos profissionais sobre o estado mental de McMurphy prova isso. É inconclusiva. Não estaria ele fingindo-se de louco para, assim, fugir à prisão? Se sim, McMurphy saiu de uma loucura e entrou em outra.

O filme nos leva a discussões que vão além da imaginação narrativa de um roteiro que se empenha, com sucesso, em construir mais um belo filme para Hollywood. E aqui, juntamente com a magnífica atuação de Jack Nicholson, incluindo-se aí também todos os outros atores que deram vida à loucura, reside a consistência clássica do filme. Ele antevê as distorções, o conservadorismo e o despotismo vigentes nos hospitais psiquiátricos mundo afora. Estes hospitais não são um lugar de cura, são um lugar de aprisionamento.

O autor do livro homônimo em que se baseia o filme, Ken Kesey, trabalhou em hospital psiquiátrico e pôde, com isso, sintetizar nas páginas do seu livro a realidade histórica destas instituições. E para situar o espectador em relação à época em que o filme foi realizado, podemos falar do famoso psiquiatra italiano Franco Basaglia, surgido no pós-guerra, e talvez o nome que mais representa a reação ao confinamento como método terapêutico para a loucura. A humanização e a socialização no tratamento da doença mental era o que ele defendia. E era também o que defendia, à época, Nise da Silveira, nossa grande psiquiatra do Centro Psiquiátrico Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, retratada no belo filme Nise – no Coração da Loucura. O que vamos presenciar em Um Estranho no Ninho é justamente o contrário. Confinamento. Excesso de regras. Autoritarismo, rigidez, frieza, remédios, mais remédios, muito remédio! Burocracia. Falta de afeto. Culpabilização do sexo. Falta da família. Que mente, por menos perturbada que seja, aguentaria tamanha falta de ingredientes humanistas! Este foi o quadro que McMurphy encontrou ao adentrar o hospital psiquiátrico. Como dissemos, se se fingir de louco foi a manobra, caiu, em cheio, no lugar errado.

Ao levar seu estilo de vida irreverente e tresloucado para os outros internos, McMurphy vai, a princípio, encontrar grandes resistências. E muita má vontade. Logo percebe, no entanto, que não se trata de recusar o que ele lhes sugere e oferece. Pelo contrário. Gostariam muito de seguir os passos daquele maluco do McMurphy! A recusa se deve ao medo de quebrarem as regras estabelecidas, pois sabiam que a punição, os abomináveis choques elétricos, acontecia ali, na sala ao lado.

Mas McMurphy não se intimida, nunca! Ele ajuda, aos poucos, seus companheiros a se rebelarem. Ele os conduz. E logo percebe o quão felizes eles se sentiam toda vez que transgrediam. O que se viam, nestes momentos, não eram indivíduos loucos e mentalmente ausentes, mas seres humanos vibrantes, que se sentiam honrados por estarem participando daquelas pequenas transgressões. Era a vida passando por dentro deles, numa dinâmica de prazer e lucidez impróprios ao rótulo da loucura.

A fuga do hospital, em um ônibus escolar, dirigido loucamente por McMurphy, que no caminho ainda pega a sua namorada que, evidente, será cobiçada por todos, afinal, louco também gosta de mulher, quer afeto, quer sexo, o passeio, enfim, vai se tornar para todos um acontecimento memorável. McMurphy os leva para uma fantástica viagem de barco mar adentro, onde pescam um peixe de tamanho nunca antes imaginado por eles. Cenas antológicas e emocionantes, de uma pureza e de uma insana vitalidade acontecem no barco, naqueles instantes, o reduto inviolável da vida saudável.

E, para encerrar, vamos apenas descrever um efeito colateral deste furacão chamado McMurphy. Na companhia de outro furacão, Jack Nicholson.

McMurphy, em seu plano de fuga, introduz na enfermaria sua namorada e uma amiga dela. Para isso, ele suborna o vigia noturno. Há bebida, há festa, há vida. Mas antes da fuga, querendo atender ao desejo de afeto e sexo do louco Billy Bibbit (Drad Dourif), McMurphy oferece sua namorada para Billy, que assim poderá vivenciar seus mais recônditos e agora incontidos desejos. Enquanto todos esperam a noitada de Billy acabar, eles bebem, embebedam-se, depois dormem, e ninguém foge. Na manhã seguinte, aquele circo de vida iluminada é descoberto pelos agentes da enfermaria. E Billy, evidente, no quarto, deitado, nu, ao lado da namorada de McMurphy, é surpreendido pela cruel e autoritária enfermeira Ratched (Louise Fletcher, que levou o Oscar de Melhor Atriz, e não podia ser diferente).

E assim é a vida. Para fugirmos da loucura, entregamos nossa liberdade nas mãos dos outros. Do Estado. Dessa e daquela instituição. Entregamos nossa liberdade para o patrão, para o amigo, para quem nem conhecemos. Qual será o preço que McMurphy irá pagar ao se recusar a entregar sua liberdade para a enfermeira Ratched? E nós, que preço aceitaríamos pagar por uma dose de liberdade? Se toparmos encarar algum momento de loucura, uma coisa tem que ficar clara. Não há negociação. Se é negociado, não é loucura. Será apenas mais uma prisão.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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