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Recomeçar é preciso, sempre

Por Antônio Roberto Gerin

NOITES DE CABÍRIA (118’), direção de Federico Fellini, Itália/França (1957), é um filme que nos faz oscilar entre a esperança e a desesperança. Se pensarmos que a vida não precisava ser tão complicada, nem precisava ser feita de tantos altos (esperança) e baixos (desesperança), e se pensarmos também que, decepção após decepção, vamos sempre ter que reunir forças para recomeçar, então estamos falando exatamente de Noites de Cabíria. O filme é ambientado numa Itália destroçada, recém-saída da Segunda Guerra Mundial, portanto, devastada pelo desemprego e pela miséria. Para a órfã Cabíria, prostituída por necessidade, encontrar o amor da sua vida é o único caminho para sair da situação desfavorável em que se encontra. Não há outro jeito. Noite após noite, esta é a sua busca. Encontrar quem a ame de verdade. E assim fazendo, ela se expõe a um mundo que lhe é desconhecido, imprevisível e nada honesto, e que a levará necessariamente ao encontro de mais uma desilusão. Assim são as noites de Cabíria. Uma mistura de sonho e realidade.

Cabíria é esta personagem desconfiada, mas que acaba confiando. É arredia, mas, logo em seguida, ingênua, se aproxima. Cabíria é tão complexa, e ao mesmo tempo tão óbvia, que precisaríamos de muitas palavras para explicar por que o ser humano, após acumular tantos desenganos, ainda consegue sorrir. Quando Cabíria sorri é porque a vida está sendo desenhada com os olhos da simplicidade. É assim que ela precisa enxergar o mundo a seu redor, para poder sobreviver. Mas há algo mais. Acreditar que o próximo passo vai nos levar aonde queremos ir é a essência misteriosa do nosso viver. A vida não se sustenta só pelo corpo. Temos que alimentar nossa alma. Para isso, temos que ter a clara percepção de que acreditar, sempre, está na razão direta da nossa luta pela sobrevivência. A vida se faz numa sequência de gestos e movimentos. É o que nos empurra em direção aos sonhos. Até a próxima queda, quando então o sonho se desfaz em desilusão. Eis aí Cabíria!

Cabíria é uma prostituta das noites que parecem não ter fim. Ela podia ser uma dona de casa. Podia ser uma secretária de dentista. Podia ser a dentista. No entanto, do que ela se ocupa, não interessa. O que se discute é como um ser humano, cravejado de sonhos e desilusões, ainda consegue se envolver com o próximo sonho como forma de curar a desilusão anterior. Tanto é claro este giro implacável da vida, que o filme começa com uma pequena desilusão de 40.000 liras e, depois de várias tentativas, termina com uma desilusão de 400.000 liras! Eis a voltagem da vida.

A estrutura narrativa do filme é episódica – uma sequência de episódios que vão compondo o perfil fragmentado da personagem. O mosaico vai nos fazer enxergar o todo. Cabíria vai aparecendo aos poucos, situação após situação, permitindo que a estupenda Giulietta Masina nos brinde com uma das mais raras e felizes construções de personagem de que o cinema tem notícia. Levados pelo entusiasmo, houve quem comparasse Cabíria a Chaplin. Particularmente nos omitimos em fazer tal comparação, deixando que o espectador, ele mesmo, avalie se há de fato pontos de encontro entre estas duas icônicas personagens.

Vale ressaltar o processo de criação da personagem Cabíria a partir das ações físicas. Giulietta Masina, além de sua inegável estatura de grande atriz, teve a seu favor o seu tipo físico. Estatura baixa, mas não franzina, Giulietta construiu sua personagem baseada na postura da moleca enfezada. Esta é a imagem que nos vem à mente. A passada um pouquinho mais larga que suas pernas permitem dar, os ombros arqueados, o queixo avançado e o olhar duro. E o rosto preparado para sorrir. A descrição pode não ser a exata, mas o espectador logo vai perceber que existe uma mulher sempre pronta para a luta, mas é uma luta consigo mesma, porque ela sabe que não pode cair na próxima armadilha. E aí está o problema. Ela não vai resistir em dar o próximo passo. Em uma sociedade demolida, econômica e moralmente, o passo seguinte, infelizmente, será, mais uma vez, na direção do desconhecido.

E aí teremos o próximo lance de Cabíria. É a derradeira aposta (do filme). A casa de Show de Mágicos, em uma cena imperdível, em que Cabíria se mostra por inteiro. Expõe seu sonho de mulher. Encontrar seu príncipe. Evidente, a plateia ri. Debocha. Menos um. O próximo príncipe.

Em suma. Não podemos nos esquecer de que quem mantém nossa alma viva é a esperança. O que seria de nós se não acreditássemos que a vida, em algum momento, irá nos presentear com boas doses de felicidade. Com a paz emocional e sentimental. O amor. Dinheiro. Não é isso que buscamos? Pois, é! É isso que Cabíria também busca em suas noites de Cabíria. E nos pegamos torcendo para que nossa pequena heroína encontre o que procura. Somos assim, espectadores que acreditam no final feliz. Só não nos esqueçamos de que Cabíria está colada ao mundo real, do qual Fellini, em nenhum momento, teve a intenção de tirá-la. Se a personagem pertence ao mundo real, se dele faz parte e nele transita, então Cabíria precisará confirmar seu destino. Infelizmente, ser humano que é, o recomeço é a sua sina. E Cabíria vai recomeçar. É o que nos diz o seu último olhar, na última cena. Olhar de dor e poesia.

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