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A Fonte da Tragédia

Por Antônio Roberto Gerin

 Com o pungente filme A FONTE DA DONZELA (89’), Suécia (1960), Ingmar Bergman mais uma vez recua no tempo e retorna às florestas sombrias da Idade Média para falar de religião e dos seus subprodutos, o pecado, a culpa, a ignorância, o medo da morte, a submissão à fé e, como condição humana perfeita a ser alcançada, a pureza. Ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1961, este belo filme apenas compõe a sequência de temáticas obsessivamente trabalhadas por Bergman na sua ânsia de artista por compor um mosaico fiel do comportamento humano. E Bergman, espertamente, entende que, para romper a máscara do homem e deixar que ele se revele diante de suas câmeras, é necessário inseri-lo numa estrutura de tensão. É preciso levá-lo ao limite. E nada melhor que escolher o ambiente familiar para alcançar esse efeito de tensão. E de destruição. É o que vamos ver, infelizmente, em A fonte da Donzela.

Um casal de cristãos fervorosos, oriundos de uma terra de pagãos nórdicos, pede que sua filha adolescente, de apenas 15 anos, Karin (Birgitta Pettersson), leve velas até a igreja do povoado e as acenda em honra à Virgem Maria. Uma virgem levando oferendas à outra virgem, esta é a sinopse sucinta do filme. Mas dentro desta rápida pincelada se escondem as mais devastadoras cores que desenham o rosto desfigurado da alma humana.

O ideal de pureza a ser alcançada pela donzela que promete sua virgindade ao casamento se contrapõe à serviçal da casa, Ingeri (Gunnel Lindblom), grávida de relação forçada, portanto, impura. Eis o contraponto. O desejo está latente na donzela. Ela deseja, mas apenas ri, nervosa, quando sente o fogo arder em seu ventre. A serviçal Ingeri não tem tempo para realimentar seus desejos. Eles já se transformaram em sofrimento. Seu tempo é dispensado para o ódio, e é aí que ela recorre às suas origens nórdicas, ao deus Odin, que, por ser o guardião da honra, tudo permite, inclusive a vingança. E é neste estágio humano que as duas, a pura e a impura, tomam o caminho do povoado.

Tanto através da fotografia de Sven Nykvist quanto nas pungentes interpretações dos atores, podemos acompanhar a narrativa em seu estado de tensão crescente, antevendo já, a cada sequência, a chegada da tempestade. Sentimo-nos sufocados pela selvageria de Ingeri e pela inocência quase absurda de Karin. E o inevitável desfecho, na linhagem dramática de Bergman, não podia ser diferente. As forças opostas se encontram e desse encontro surge uma das mais belas interpretações de sofrimento de um estupro. É aqui que convocamos a atenção do espectador.

A cena do estupro é assinada com mão firme por Bergman, conduzida de uma forma não agressiva, mas tão expressiva que bastou a ação de um dos pastores forçando a abertura das pernas de Karin para que o outro a penetrasse para destilar no espectador toda a injúria do ato infame.

E a cena a que nos referimos vem logo a seguir. Terminado o ato do estupro, e tendo todos já se colocado de pé, veremos uma Karin desnorteada, caminhando a esmo, o rosto atarantado, enquanto seu útero arde vulcanicamente em dores terríveis. É uma cena que dura menos de um minuto, mas um primor de interpretação de Birgitta Pettersson, universalizando, naquele instante, a dor de milhões de mulheres que sofreram – e sofrem – do abuso.

À medida que Bergman vai afunilando a tensão narrativa, o espaço interior por onde as personagens se movimentam vai ficando cada vez mais estreito. E insuportável. Chegará o momento em que nada mais restará às personagens senão supurarem suas dores. E suas maldades.

É o que acontece com o pai, Töre (Max Von Sydow), atormentado pela necessidade de vingar a filha, preparando-se para cometer o pecado da vingança. É o que acontece com Ingeri, ao gritar seu ódio por Karin, rompendo assim o grito da inveja. É o que acontece com a esposa, Märeta (Birgitta Valberg), ao revelar seu ódio pelo marido, Töre, desejado pela filha, Karin. Rompe-se, ali, o grito do ciúme.

Vale ressaltar uma das cenas finais, em que Töre esbraveja contra um Deus que se cala diante do pecador, que nada diz, como se não existisse. A cena traz um dos temas recorrentes na filmografia de Bergman, o silêncio de Deus. Será que Deus, para existir, teria que nos falar?

O grande dilema é que o pecado bate à porta, insistentemente. Bergman constrói perigosamente a imagem do homem na sua luta incessante para se livrar do pecado, sem, talvez, se dar conta, o homem, de que não é o pecado o seu grande problema, já que Deus estará sempre pronto para perdoar. O problema é a culpa. E culpa não se perdoa. Porque a culpa está ligada à natureza humana e não à natureza divina. É como se a culpa estivesse fora do alcance de Deus. Esse é o homem solitário de Bergman.

Baseando-se numa balada medieval, mais uma vez Bergman constrói um filme carregado de significados e simbolismos, onde a relação do homem com o homem vem permeada de códigos incompreensíveis, cujos significados só passamos a conhecer quando deflagrado o conflito. No entanto, os códigos continuarão indecifráveis, para que novas tragédias sejam preparadas. A única coisa que pressentimos é que alguém sempre terá que mover a desgraça. E para isso, alguém dentre nós, à revelia, será o escolhido. Esse é o roteiro da vida.

Cada vez que assistimos a um filme de Bergman, mais nos sentimos indefesos, e confusos, porque podemos controlar as imagens que nos são apresentadas, mas não as forças que motivam estas imagens. É provável que nem mesmo Bergman tivesse esse controle. E ele não tinha. Nem ele, nem ninguém. Por uma razão simples. Somos perigosamente humanos.

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Há futuro na velhice?

Por Antônio Roberto Gerin

Há muitos olhares que podemos lançar sobre este belíssimo e premiado filme de Ingmar Bergman, MORANGOS SILVESTRES (91’), Suécia (1957). Mas um deles nos parece ser o que mais traduz o filme: a ideia de finitude. Afinal, na velhice, o horizonte já não está mais lá, ao longe, diante de nós. Ele parece agora se arrastar sob nossos pés. Sentimos seu peso e sua escuridão. Se não há, pois, mais o horizonte, para onde caminhar? Eis então a pergunta. Há futuro na velhice? Ou o que nos resta é olhar para trás, em busca de lembranças de dias outrora vividos? É o que Bergman faz com seu personagem, o velho médico Isak Borg (Victos Sjörtröm). Faz Isak olhar para trás. Impiedosamente. E nos faz parecer que a vida, na velhice, acontece através das reminiscências, e que são destas imagens que surge o sentido do viver. E aí está o perigo. Porque visitar o passado pode ser, sim, perigoso. E Bergman coloca seu Isak, digamos, numa fria. É quando ele, o velho, numa viagem sem fim ao passado, se dá conta do que foi, do que podia ter sido, e no que realmente se transformou. Pobre Isak. Infelizmente, em Bergman, não há meio termo. A nudez é completa.

O que o espectador vai ver, através da primorosa fotografia em estonteantes pretos e brancos de Gunnar Fischer, ao lado de Sven Nykvist, o grande diretor de fotografia que acompanhou Bergman em vários dos seus filmes, é a história narrada em lembranças e sonhos. Isak Borg, médico veterano, receberá, na tarde daquele dia, honrosas homenagens pela vida dedicada ao exercício da medicina. Na noite que antecede a viagem, Isak recebe a visita de um sonho fúnebre. É a morte deixando seu caixão cair no meio de uma rua deserta. Ao acordar, no dia seguinte, evidente, tocado pelo significado do sonho, Isak toma a decisão. Ia de avião, mas decide ir de carro, de Estocolmo à cidade de Lund, onde receberá a honraria. Sua nora, Marianne (a bela Ingrid Thulin), grávida e infeliz, o acompanha. A viagem à Lund e ao passado são os pontos dramáticos que, no filme, se interpenetram, retroalimentando a ideia de finitude.

A decisão de Isak de ir de carro até Lund provoca uma cena memorável entre o médico e sua empregada, que o acompanha há quarenta anos. Ela não concorda que ele vá de carro. Tem que ser de avião. Mas ele quer ir de carro. A briga é revestida de tamanhas intenções e intimidades, que mais parece uma briga cotidiana de marido e mulher, o que dá à cena um tom hilário e, ao mesmo tempo, irônico. A rabugice, esta companheira inseparável da velhice, domina a cena. Imperdível!

Enfim, o carro em movimento, presente e passado vão se digladiando, em cenas comoventes, até Lund, sul da Suécia. Isak terá o dia todo para chegar a seu destino. Há tempo para que as lembranças aflorem, dando a oportunidade para que Bergman realize um dos seus mais completos filmes. Nada é à toa quando o fortuito se submete à vontade alheia. É a decisão humana, e não o acaso, que constrói a vida. E, também, a arte. Não se iluda, caro espectador, nada é de graça, e Bergman se favoreceu de uma imposição feita por ele a seu personagem, a viagem de carro, para construir mais uma de suas obras primas. Desumano, Bergman, por pura vaidade de artista, obrigou um velho de setenta e oito anos a dirigir por seiscentos quilômetros, num prazo, digamos, de doze horas! Não se faz isso, senhor Bergman. Nem em nome da arte!

Retomando a essência narrativa do filme, é o passado emergindo dolorosamente no presente. Esta é a grande sacada de Bergman. Aliás, sem abrir mão do presente, Bergman o insere no passado, contrariando a técnica do flashback. Não é um flashback como nós o conhecemos. É Isak, o velho, visitando a velha casa de campo onde sua família passava os verões, e é Isak, o velho, presenciando as cenas da época em que era jovem. Mas, eis! Os outros são jovens, ele continua velho, enfiado no passado, descaradamente, apenas como uma figura onipresente. É o passado revelando que a velhice é o estágio da solidão, quando se percebe que o que se fez está feito, portanto, não há tempo para mais nada, no máximo, ir à Lund receber a condecoração. E quando a festa terminar, voltará para sua solidão. É assim que Isak se expressa. Antevendo a morte, já é um morto-vivo.

Morangos Silvestres escancara o drama do envelhecimento. Velhice não se evita, não se esconde, ela se mostra, por inteira, sem disfarce, e a cada passo, a cada lembrança, uma face do fim nos é apresentada. Agora, sem a máscara. Não adianta mais perverter a realidade, como fizemos a vida toda. Chega o momento em que o beco, sem saída, nos aprisiona. E nesta prisão, resta a Isak apenas se perguntar: afinal, o que eu fiz da minha vida? Esta pergunta é um aviso, caro espectador. Temos que nos preparar para um dia podermos respondê-la. Sem dores, de preferência.

E para concluir, nos resta fotografar a vida. Ora! Não são as rugas que pesam. A destruição é inevitável. O lindo jovem é transformado num velho alquebrado. Se não são as rugas, o que então justifica a solidão de Isak? Eis o segredo que a vida nos reserva. Um Isak sensível, apaixonado, simpático, honesto e promissor foi caminhando ao longo dos anos em direção à frustração, ao egoísmo, à frieza do afeto, à amargura, ao isolamento social, ao julgamento implacável e apressado de si e dos outros. A face obscura da vida substitui a luz da juventude. Este é o nosso drama. Nos transformarmos em estranhos de nós mesmos. Sem saber o que somos, resta-nos querer saber o que éramos.

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