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O inesgotável prazer de se viver a vida

Por Antônio Roberto Gerin

Talvez seja este um filme que mereça ser assistido deitado no tapete, a cabeça acomodada sobre duas ou três almofadas. Ou no sofá mesmo, de fato, mais cômodo para se comer pipoca enquanto vamos degustando o saboroso ZORBA, O GREGO (142’), direção de Michael Cacoyannis, Grécia/EUA (1964). O filme é tirado do belíssimo romance homônimo do escritor grego Níkos Kazantzákis (1883-1957), publicado em 1946. Apesar do convite à descontração, motivado pelo carisma do protagonista Zorba, o certo é que o filme nos enfia miseravelmente dentro da realidade ao nos fazer voltar à velha máxima de que se quisermos experimentar sabores diferentes nesta vida, temos que nos entregar a umas boas doses de loucura. E loucura, neste caso, é se voltar para o homem primitivo, cuja essência está em se entregar, sem regras e convenções, aos mais puros e, às vezes, incontroláveis desejos. É o retorno ao simples, ao que é e não ao que queremos que seja. É o retorno à mãe terra, e nos parece que só a mãe terra está autorizada a nos livrar das amarras sociais que nos aprisionam e nos desfiguram. O filme, em suma, é um convite à liberdade, baseada na consciência de que o existir não cabe em apenas um ponto de vista. E este convite, quem nos faz é o exuberante Zorba!

Um escritor inglês viaja para a ilha de Creta, na Grécia, para retomar a exploração de uma mina de linhito que pertencia a seu pai. Prestes a embarcar no navio que o levaria à ilha, uma forte tempestade interrompe a partida, motivo suficiente para que Basil, o escritor, seja abordado, de forma inusitada, por um homem simples, aspecto de camponês, riso expansivo, nascido grego, e que logo se apresentaria como sendo Zorba. Alexis Zorba, incorporado pelo não menos exuberante Antony Quinn.

A abordagem é desprovida de qualquer senso de etiqueta e de rapapés sociais. Zorba entra na vida do interlocutor sem pedir licença. Não há em suas atitudes o pudor das reticências, muito menos seus gestos obedecem a decorados sociais. A aproximação é tão vívida que não resta ao inglês outra alternativa senão dar as boas vindas ao intruso. É o primeiro encontro entre Zorba e Basil, e os dois precisavam mesmo se encontrar para que a narrativa começasse a fluir. Eis o filme condensado nesta primeira cena. Assistam-na com atenção, porque é desta relação tensionada na cumplicidade e no companheirismo entre o grego e o inglês que surgirá a beleza poética do filme.

E assim, vencidas as desconfianças, e contratado pelo inglês para ser seu braço direito na exploração da mina, Zorba embarca com seu novo chefe para Creta, sem saber, ambos, o que irão encontrar pela frente. Perguntamos. Precisa mesmo saber? Ora, se a vida é para ser vivida, o próximo passo poderá muito bem ser uma nova descoberta. Esta é a razão da ousadia. Estarmos sempre preparados para enfrentar o desconhecido. Sermos destemidos e ao mesmo tempo otimistas, eis as condições para não termos que voltar ao nosso berço esplêndido, ornado de medos e inseguranças.

Vamos logo à definição da personagem que dá título ao filme. Eis. Zorba, o epidêmico! Estamos falando de uma personagem complexa, então esta nos parece ser a melhor definição de Zorba, dada por ele mesmo, de forma jocosa e sublime. Mas, por que epidêmico? Vamos colocar a resposta na boca do próprio interessado, quando ele diz ao escritor, antes de embarcarem para Creta. “Epidêmico, porque onde quer que eu vá, dá tudo errado”. Em seguida, Zorba despeja no rosto do encantado inglês uma sonora gargalhada. Esta desconexão com o mundo construído pelas civilizações é a base existencial da personagem.

O único ator predestinado a interpretar Zorba parece mesmo ser Anthony Quinn. Não haveria outro. Ator e personagem se misturam de forma tão simbiótica que passamos a aceitar, sem o perceber, que estamos diante de uma pessoa real, de carne e osso. É, sem dúvida, uma daquelas composições de personagem que se eternizam em nosso imaginário. E que desejaríamos que estivesse sentado à nossa mesa, que fosse nosso colega de faculdade, até nosso chefe, para lembrarmos que liberdade não é sinônimo de desrespeito e agressão, e sim um estado de espírito que nos disponibiliza inteiramente para a vida.

E temos também que falar de Alan Bates, no papel do escritor inglês. Ele é convincente e preciso nos seus maneirismos contidos e, ao mesmo tempo, pronto para explodir e se libertar das suas origens britânicas. Será, desde o começo, provocado pelo furacão Zorba, até explodir lá na frente, reencontrando-se na sua origem grega.

Não menos decisivas são as figuras femininas, a começar pela premiada Lila Kedrova, ganhadora do Oscar de melhor atriz coadjuvante, que deu voz e corpo a Madame Hortense, a Bouboulina. Esta sim atendeu aos desejos de todos os homens, e se viu abandonada por cada um deles. O último sopro de vida ela encontra na força arrebatadora, floreada de galanteios, do homem que a trata como a última das rainhas. Mas Zorba também quer abandoná-la. E ela o percebe, preferindo a morte. Mas, cá pra nós, Zorba, delicadamente, cumpre o seu papel de rei até o fim.

E a figura trágica e silenciosa da viúva, desenhada com perfeição pela bela atriz Irene Pappás, que faz a personagem desfilar sua exuberante e sensual beleza pela aldeia, onde todos os homens a desejam, e onde todos os homens, por se verem rejeitados, a odeiam. Quando ela dá sinais claros de querer acolher os desejos de Basil, começa a rodar a engrenagem da tragédia, expondo ao espectador a miserabilidade tirânica e machista de uma longínqua aldeia, na ilha de Creta. Esta aldeia, nas mãos do diretor Michael Cacoyannis, torna-se, para nós, universal.

A fotografia é tão limpa, tão mediterrânea, que nos dá a impressão de que o filme foi lavado com um daqueles produtos de limpeza que deixa tudo branquinho. E a música, tirada da alma grega por Mikis Theodorákis, vem para traduzir a dor de sermos humanos incompletos, mas que se completa na famosa cena final, a da dança, o reencontro com as origens, seja na dor seja na alegria.

Enfim, tudo no filme precisaria ser comentado, um parágrafo para cada sequência de cenas. Não há espaço. Mais breve, então, será convidar o espectador para que ele mesmo se delicie com esta personalidade ímpar, que contagia a tela e nos irradia a ilusão do ser humano que gostaríamos de ser. Ou de ter sido. E fica também o convite para, na sequência, assistirem a Sociedade dos Poetas Mortos, quando logo vão perceber que o professor John Keating é da mesma linhagem de Zorba, cuja disposição pela busca da eterna liberdade veste a personalidade de ambos como um terno de corte perfeito.

Zorba, sensível que é, faz a leitura rápida da alma humana. Mas ele não entra em conflito com a sua sensibilidade. Quando ele está prestes a mergulhar na dor, há uma explosão de movimentos efusivos que o redireciona para o sentido bom da vida. Ele apenas acolhe a dor humana com o manto da compaixão. Esta é a altura máxima que um ser humano privilegiado pode alcançar. O que nos leva a concluir que talvez Zorba seja, para nós, nossa alma perdida.

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