Selma

Uma marcha rumo ao voto!

Por Antônio Roberto Gerin

SELMA (128’), direção de Ava DuVernay, EUA (2015), é um filme que caminha perigosamente por uma realidade explosiva, naqueles anos sessenta, nos Estados Unidos, década de lutas dos negros por direitos iguais aos dos brancos. É um filme, portanto, real. Não é um documentário, mas passa ali, beirando. Isso é mérito. É um momento importante para a história da humanidade, então melhor manter os dois pés na realidade. A ficção servirá, neste caso, apenas para preencher lacunas. Não para mitificar. Criar símbolos. Estereotipar. Provável, estejamos cansados de ver Jesus Cristo retratado de barba castanha e olhos azuis. Tudo bem. Eram tempos em que não existiam fotografias nem autorretratos. Mas na época de Martin Luther King Jr existiam. Fotografia, televisão, e a cidade de Selma.

Iniciar a apresentação do filme por onde? Pelo roteiro? Pela bela fotografia? Não. O que importa no filme é Martin Luther King Jr. Se a composição deste personagem real e histórico desse errado, o filme ia ter que ir para a prateleira antes do tempo. Luther King é o centro dos acontecimentos, ele move, ele dá o primeiro passo, então ele tem que ser o cara. E nisto, a direção de Ava DuVernay, simples e firme, acertou em cheio. Sua habilidade foi a de se preocupar em não querer inventar nada, só mostrar um recorte das lutas pelos direitos dos negros na tumultuada década de sessenta. E o recorte é justo a luta pelo direito de os negros também votarem. Esta é a peleja principal.

O filme relata a famosa marcha que se iniciou em Selma, atravessou a ponte do rio Alabama e caminhou 55 quilômetros até Montgomery, capital do Alabama, um dos estados sulistas americanos com fortíssima herança de preconceitos e segregações, cujas feridas perduravam – e ainda perduram – desde o fim da Guerra da Secessão, em 1865, portanto, mais de um século de maus-tratos, assassinatos e humilhações aos negros. O século XX tinha que resolver essa herança maldita, se não totalmente, pelo menos em parte. E isto só seria possível quando aos negros fosse permitido ocuparem os mesmos bancos dos ônibus, ao lado dos brancos. Que passassem a frequentar os mesmos restaurantes. E, pasmem!, tivessem o direito, através do voto, de também participar da escolha de seus representantes. Quer dizer, antes de tudo, era necessário conquistar a cidadania, o direito de ir e vir, para depois criar bases sociais, econômicas e políticas para se fazer valer como um cidadão norte-americano tão funcional quanto seus pares brancos. Martin Luther King foi um dos líderes, à época, que trouxe para si esta responsabilidade. E o fez por mais de dez anos, com marchas, discursos, defesas pela não violência, e com posicionamentos claros a respeito do que queria em relação à causa que defendia. Até ser assassinado, em 1968, aos 39 anos. O filme Selma cobre mais ou menos apenas um mês desta contundente trajetória. E que mês!

Mas vamos voltar ao personagem construído pelo habilíssimo ator negro (não de olhos azuis) David Oyelowo. Não há espasmos, não há choros nem lágrimas derramadas. Não há grandes reviravoltas, não há histrionismos. Há apenas um homem comum com uma grande capacidade de comandar momentos históricos críticos, que tinha os objetivos bem claros e os perseguia com tenacidade e frieza, rejeitando, com autoridade, os acenos bajuladores do presidente americano Lyndon Johnson, cujo objetivo político era tentar abafar a principal voz negra, e de quem, a fórceps, Martin Luther King arrancaria a Lei dos Direitos de Voto (Voting Rights Act), de 1965. E Mister King estava lá, ao lado do presidente norte-americano, no momento da histórica assinatura.

Mas, se pergunta. E as fraquezas de Martin? Cadê o Luther King humano? Ora, fraquezas todos nós temos e não são poucas não. Contar o que todo mundo já sabe? Qual a graça? Agora, atos de coragem são para pouquíssimos. E é o que interessa, principalmente quando se trata de lutar por causas sociais enraizadas nas profundas desigualdades humanas. Neste prisma, Martin Luther King Jr é um herói criado pela realidade, pura e simples. Sem retoques. É o que o espectador vai poder apreciar do filme.

Em suma. Mais um pequeno pedaço de história, precioso e inesquecível, que se conta, dentre tantos outros pequenos pedaços que vão montar um esplendoroso mosaico de lutas e sangue ao longo de tantos séculos, apenas para fazer valer o direito de sermos gente. Parece uma bobagem. Você nasce, é, respira, tem diante de si o horizonte. É só seguir em frente. Não, não é bem assim. Infelizmente, para cada passo, uma luta. Assim é a história. A nossa, a de todo mundo. E mais ainda, a dos povos. Oprimidos.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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