Filho de Saul

Rápido, que o café vai esfriar!

Por Antônio Roberto Gerin

O premiado filme FILHO DE SAUL (107’), com direção de Lázsló Nemes, Hungria (2015), entra no campo de concentração de Auschwitz para oferecer ao espectador uma visão original (e terrível) do holocausto. É verdade que já nos acostumamos a assistir a filmes que nos colocam dentro de guetos judaicos; ou que nos fazem acompanhar levas de judeus amontoados à força em caminhões e trens, rumo aos campos de concentração. Ainda nos choca a visão das filas lentas e mórbidas de judeus, nus de preferência, a caminho da morte. Mas onde é que eles são executados? Nós sabemos. Nas câmaras de gás. Esta é a surpresa e a ousadia de Filho de Saul. Ele nos leva para dentro destas câmaras para nos mostrar os horrores e a absurda tragédia fabricada pela insanidade humana.

O filme relata o desespero de Saul (Géza Röhrig) na sua incansável busca para enterrar um menino. Saul, dentre outros judeus homens, é um dos escolhidos pelos alemães para formar o grupo dos Fonderkommando, equipes encarregadas pela limpeza das câmaras de gás e pelo transporte dos corpos para os fornos de incineração, o crematório.

O recorte narrativo no trabalho diário de Saul se dá quando ele, ao entrar na câmara de gás para recolher os corpos, descobre que um menino ainda está vivo. Sem hesitar, pega-o para si, tentando salvá-lo. Mas o impedem, e após consumarem a morte do menino, com a aplicação de injeção, levam-no para o laboratório, para autópsia e estudo, afinal, aquele corpo havia resistido aos horrores do gás!

Mas Saul não desiste. Procura o médico encarregado da autópsia, também judeu do Kommando, e tenta resgatar o menino com o objetivo de dar a ele, com a ajuda de um rabino que recitaria o kadish, um enterro decente, dentro das tradições judaicas. O médico concorda em ceder o menino, escondendo-o, até que Saul consiga retirá-lo do laboratório. É uma missão quase impossível. Aqui então começa a saga de Saul. E do filme.

Enquanto Saul vai executando seu trabalho, ele estará sempre à procura de um rabino entre os judeus a caminho das câmaras de gás. E é esta busca nervosa e silenciosa pelo rabino, numa sequência de insucessos e desencontros, que permite ao filme nos colocar em contato direto com a terrível realidade do extermínio dos judeus.

A grande sacada do diretor está na estética escolhida para mostrar o que acontece dentro das câmaras de gás. E arredores. A câmara filmadora não dá sossego ao espectador. Ela acompanhará Saul o tempo todo, enquanto durar o filme, de perto, em closes sempre nervosos e tensos, focando basicamente seu rosto, ora por trás, às costas, ora fazendo-se dos olhos de Saul. Às vezes, a câmera se afasta um pouco, mas no máximo para pegar o dorso de Saul. Parece que os enquadramentos são feitos para que o espectador seja poupado de ver abertamente os horrores de corpos nus e dos sangues espalhados pelo chão. Tudo é muito rápido, no ritmo do caminhar nervoso de Saul. Mas o suficiente para que o espectador, talvez numa mórbida curiosidade, tente, o máximo que pode, ver o que está acontecendo ao redor. Mas a câmera não para, como se ela mesma não tivesse coragem de mostrar as brutalidades e tentasse poupar Saul e, com ele, o espectador.

Cabe mencionar a maquiagem de Saul, seu rosto quase transformado numa máscara insensível, inexpressiva, e ao mesmo tempo aterrorizante. Ela determina, silenciosamente, o espanto da tragédia.

E a questão que se coloca vem do título do filme. Filho de Saul. O menino, que é a razão dos seus movimentos e que faz a narrativa acontecer, é ou não é seu filho? Fica aí a imagem simbólica que retrata a realidade de um judeu que sabe que vai morrer e que tem no desespero a última chance de fazer valer suas tradições religiosas e sua revolta contra a história humana que o obrigou a estar ali, naquele lugar, naquele instante. Se é ou não filho, fica para o espectador tecer suas conclusões. Qual seja a conclusão, o horror será sempre o mesmo.

O que fica ecoando, após o término do filme, é o chavão gritado para os judeus, na antessala da morte. Enquanto eles vão tirando suas roupas e colocando-as nas centenas de cabides espetados nas paredes, a voz vai apressando-os e fazendo-os acreditar que eles vão continuar vivendo. A voz prepara o engodo da rotina. Convida a todos para tomarem café na outra sala, a “tal sala”. Só que eles não podem demorar, porque senão o café vai esfriar. Daí, o mantra da morte. “Rápido, que o café vai esfriar!”

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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