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Por Alex Ribeiro

O Mercador de Veneza é uma comédia de William Shakespeare, publicada por volta de 1598, e encenada em 1600. Apesar de estar presente no primeiro bloco de peças do poeta, O Mercador pode ser considerada a peça que marcou a transição deste primeiro bloco para o período das grandiosas obras de Shakespeare, que duraria por incríveis 17 anos, em que ele viria a escrever suas obras primas. Assim como em suas outras comédias, a temática de O Mercador de Veneza é o amor. O dramaturgo quer mostrar a força enobrecedora do amor, e como este sentimento tem o poder de conduzir as suas personagens a ações elevadas, revelando características sublimes do humano. É dessa característica marcante em suas comédias que Shakespeare nos apresenta o primeiro pilar dramático do texto, presente na atitude da sábia personagem Pórcia. Nossa mocinha perdera o pai antes de poder se casar e herdara uma grande riqueza. Porém, Pórcia não se sente no direito de desrespeitar a antiga vontade do pai, a de se casar com quem desejar. A escolha do seu futuro marido terá de ser feita sob o véu da sorte, ou azar, dos seus pretendentes. Pórcia apresentará a eles três pequenas arcas: uma de ouro, outra de prata e a terceira, de cobre. Numa dessas três arcas está o seu retrato e é esta, portanto, a que deve ser escolhida. O pretendente que acertar em qual das arcas o retrato está, numa única tentativa de escolha, poderá se casar com ela.

O tema da escolha entre três amadas é muito recorrente na literatura, e tem um poder instigador e de imediata repercussão no leitor. O próprio Shakespeare voltaria a essa temática numa de suas obras primas, o Rei Lear, de 1605, onde o rei ancião pretere a terceira filha e causa a sua própria tragédia e a de todo o reino. Mesmo que em Lear, Shakespeare encaminhe a peça para a consequência do ato ingênuo do rei, temos a estrutura básica da escolha entre três mulheres, onde a terceira se mostra a mais virtuosa, portanto, a mais humilde. Só a título de curiosidade, podemos citar outras obras do conhecimento popular que têm como temática a escolha dentre três mulheres. Cinderela é uma delas, em que o príncipe escolhe a terceira de três irmãs. Na mitologia grega, temos o pastor Páris, que escolhe Afrodite, a terceira das três deusas que lhe oferecem proteção. Em O Mercador de Veneza não há três mulheres a serem escolhidas, porém, quando Pórcia apresenta as três arcas, ela quer testar como avalia e escolhe o pretendente que está diante dela. Aquele que souber identificar quais são os verdadeiros valores que ela preza terá direito à sua mão. A arca que representa Pórcia é a arca de cobre, a arca que se apresenta mais humilde, assim como é também o amor silencioso e humilde de Cordélia, a filha preterida de Lear.

O segundo pilar de O Mercador de Veneza se encontra na figura de um único personagem e que não ocupa a cena constantemente, a ponto de nem aparecer no último e quinto ato. É o judeu Shylock. Através dele, a trama pode ser desenvolvida. É ele o contraponto à força do amor. Ou seja, para onde o amor apontar, Shylock estará apontando para o outro lado. O velho Shylock é um usurário que, ao emprestar dinheiro ao mercador Antônio, permite que este patrocine a ida de Bassânio até Belmonte, onde se apresentará à bela Pórcia, como seu pretendente. A riqueza de Antônio está toda no mar, nas suas naus mercantes, não haveria como o mercador patrocinar Bassânio, seu grande amigo, sem recorrer a um empréstimo até que suas naus retornassem. Porém, Shylock estabelece uma multa, caso Antônio não consiga pagar no prazo. Uma libra de carne do corpo de Antônio é a multa. Para satisfazer os anseios de Bassânio, Antônio cede.

Por que um personagem tão mesquinho como Shylock é assim tão importante? É preciso recorrer à história para podermos entender. No final do séc. XVI, a Inglaterra passava por um forte sentimento antissemita, causados primeiramente, por uma trama política que envolvia o médico pessoal da rainha, o judeu português Roderigo Lopez, que fora acusado de conspirar sua morte e, consequentemente, enforcado em praça pública. Outro ponto histórico é a forte aversão aos judeus por fazerem empréstimos a juros, ao contrário dos cristãos que viam nisso uma forma de pecado. Estava desenhado o momento histórico propício para um vilão judeu ser apresentado por Shakespeare. Mas o grande poeta não aderiria ao coro vigente sem um senão. Shylock é construído por Shakespeare de uma tão perfeita forma, que ele se mostra totalmente humano. Capaz de despertar tanto sentimentos de aversão como de empatia. Tanto é repleto de humanidade, nosso querido e detestado vilão, que uma de suas falas é um dos mais famosos manifestos contra o preconceito, e que vale a pena citar:

“Ele me desgraçou, prejudicou-me em meio milhão; riu-se das minhas perdas, caçoou dos meus lucros, escarneceu minha estirpe, atrapalhou meus negócios, esfriou minhas amizades, afogueou meus inimigos; e por que razão? Eu sou judeu. Um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? Não é alimentado pela mesma comida, ferido pelas mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, esquentado e regelado pelo mesmo verão e inverno, tal como um cristão? Quando vós nos feris, não sangramos nós? Quando nos divertis, não nos rimos nós? Quando nos envenenais, não morremos nós? E se nos enganais, não haveremos nós de nos vingar? Se somos como vós em todo o resto, nisto também seremos semelhantes. Se um judeu enganar um cristão, qual é a humildade que encontra? A vingança. Se um cristão enganar um judeu, qual deve ser seu sentimento, segundo o exemplo cristão? A vingança, pois.” [O Mercador de Veneza, Ato III, Cena I.].

Logo se vê que, apesar de atender a um anseio de seu tempo, de ver retratado um judeu mau, Shakespeare tem o cuidadoso acabamento de o tornar tão humano quanto seus pares cristãos. E mesmo no momento em que ele se apresenta como o mais cruel ao não perdoar a dívida de Antônio e exigir o pagamento da multa, não deixa de revelar o quanto fora humilhado por Antônio, em outros tempos, pelo simples fato de ser judeu. Por essas razões todas, Shylock é o personagem que encontra as mais diversas e contraditórias interpretações nos palcos mundo a fora. Mas nada disso seria possível se esse personagem não fosse tão bem construído por Shakespeare.

Voltemos, então, ao amor, sentimento este sim o motor das comédias do grande poeta. Bassânio, patrocinado pelo empréstimo de Shylock, contraído por Antônio, chega a Belmonte e consegue fazer a escolha sensata, arriscando tudo pelo amor de Pórcia, escolhendo ali a arca de cobre. Com sua boda selada e se tornando agora mais rico que o próprio Antônio, Bassânio corre em socorro do amigo, para tentar livrá-lo do judeu. Antônio, que havia recebido a notícia do naufrágio das suas embarcações, estará diante do Duque para lhe ser cobrada a dívida. E é nesse mesmo juízo que a sabedoria de Pórcia se apresenta novamente avassaladora. Ela defende Antônio magistralmente e o livra da condenação.

No último ato, já livre da ação de Shilock, os casais se reúnem e só então fica claro que é do amor que se trata a peça. Além de Bassânio e Pórcia, nosso casal querido, Graziano, fiel amigo de Bassânio, se junta a Nerissa, criada de Pórcia. E a filha de Shylock, Jéssica, que havia fugido da casa do pai para viver com um criado de nome Lorenzo, também tem sua vida apaziguada depois do desfecho no tribunal em Veneza. Ela, que fora deserdada ao sair de casa sem permissão de Shylock, é beneficiada pela punição que o pai recebera no juízo, punição esta que o obrigou a dar a filha metade da sua riqueza. E temos então o triunfo do amor, mais uma vez, como de praxe, na comédia shakespeariana.

O Mercador de Veneza é uma peça que fala sobre o triunfo do amor, mas que ao mesmo tempo deixa uma pulga atrás da orelha. Nosso vilão, é tão vilão assim mesmo? É tão diferente de nós que podemos dirigir a ele nosso ódio, sem preocupação? É fácil eleger um inimigo comum e despejar sobre ele toda a destrutividade que nós humanos carregamos. Basta que ele não cause em nós nenhum tipo de identificação. Basta que nós o reduzamos a uma característica que é desprezível para nós. É assim que muitos grupos são reduzidos aos seus estereótipos, para que possam ser destruídos sem que seus agressores percebam sua crueldade. Afinal, o diferente não mereceria nossa empatia? Mas eis que Shakespeare traz uma profunda reflexão junto com seu Shylock. As nossas diferenças são tão pequenas e frágeis perto das nossas semelhanças, que não poderíamos dizer que somos uns e eles outros. Somos todos uma só coisa, mulheres e homens, com tantos equívocos e contradições que fazem parte da nossa humanidade. E se essa é uma peça sobre o triunfo do amor, esse amor não pode se valer para destruir o diferente, o judeu da vez. Porém, amar um Shylock é, sim, o que faz toda a diferença.

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A rainha amada

Por Antônio Roberto Gerin

Em 1759, nasce, em Marbach, Johan Friedrich Schiller que, aos quarenta anos, já no final de sua curta vida, escreveria MARY STUART (1800), uma das grandes obras primas da literatura universal. Schiller, por ser filho de médico militar, viria a residir, na sua infância e adolescência, em várias pequenas cidades da região de Württemberg, cuja capital era Estugarda (Stuttgart). Já adulto e formado em medicina, aos vinte e um anos Schiller conheceria a fama com seu primeiro texto teatral, Os Bandoleiros, levado ao palco em Mannheim, em 1780, sob a tutela do barão Von Dalbert, admirador de primeira hora da obra literária de Schiller. Aliás, Os bandoleiros, que narra as rebeldias de um jovem estudante, viria a se tornar uma das principais referências do pré-romantismo alemão. Com o sucesso de seus textos iniciais e a paixão pela literatura, Schiller abandona a profissão de médico e, após várias andanças, acaba se estabelecendo em Weimar, à época, um dos grandes centros culturais da Alemanha, onde, já casado, iria se dedicar à escrita e a novos estudos. É em Weimar que Schiller conhece Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832), dez anos mais velho que ele, e firmam uma amizade baseada na admiração mútua, e que duraria até a morte de Schiller, aos 44 anos, em 9 de maio de 1805. E é em Weimar que o agora também filósofo e historiador Friedrich Schiller escreve seus principais dramas históricos, já totalmente liberto dos eflúvios do pré-romantismo. E é neste período que surge um de seus mais conhecidos e aplaudidos dramas, Mary Stuart, finalizado e encenado em 1800, no Teatro de Weimar, dirigido pelo próprio Schiller. Desde então, Mary Stuart tem tido uma trajetória gloriosa pelos palcos mundo afora, chegando pela primeira vez ao Brasil em 1955, através do Teatro Brasileiro de Comédia, com Ziembinski dirigindo duas de nossas grandes atrizes, as irmãs Cleyde Yáconis e Cacilda Becker, que protagonizaram, respectivamente, Elizabeth e Mary. E vale ressaltar. Com primorosa tradução do nosso poeta Manuel Bandeira.

A base dramática do texto Mary Stuart gira em torno dos conflitos político e religioso entre as rainhas da Inglaterra e da Escócia, e que apenas refletem os tumultuados conflitos históricos nas relações político-militares entre os dois países, que se estenderiam por vários séculos. O direito ao trono inglês, reivindicado por Mary, vem do casamento de seu avô, rei da Escócia, James IV, com Margarida Tudor, em 1503, ligando assim as duas casas, Tudor e Stuart. Acontece que sua prima Elizabeth era filha bastarda de Henrique VIII com Ana Bolena, e esta origem incômoda tornar-se-ia o calcanhar de Aquiles do reinado da anglicana Elizabeth, no seu eterno embate com a católica e legítima herdeira ao trono da Inglaterra, Mary Stuart. É destes embates que Schiller se valerá para compor seu drama histórico. Schiller, artista intenso, de índole apaixonante, afeito a arroubos idealistas, não esconde seu encanto pela inconseqüente, impulsiva e exuberante rainha Mary Stuart. É dela que trata o drama. Elizabeth, com todos os seus conflitos de poder, linhagem e inseguranças afetivas, entra apenas como contraponto à heroína de Schiller.

No decorrer dos cinco atos em que se divide a peça, Schiller fará um minucioso apanhado psicológico e moral das rainhas, trabalhando em versos iâmbicos, de rara beleza, as diferenças entre as duas mulheres. Mas antes de entrarmos nesta discussão, vale colocar uma questão primordial. O processo criativo do artista que se utiliza de fatos reais e históricos para compor sua obra artística. Do dramaturgo ao escultor, do romancista ao pintor, este processo de transformação da realidade em arte é que coloca o artista como agente cultural da sua época.

O fazer literário de Schiller é um exemplo clássico de como o artista tem que ser criativo e corajoso para tirar o maior proveito possível de fatos históricos para compor, com grandeza, sua obra artística. Schiller tornara-se ao longo dos anos um conhecido historiador, e esta condição de conhecedor da História viria a ser uma fonte fértil e febril para a edificação de sua magnífica obra teatral. E o texto Mary Stuart beberia avidamente de fatos históricos para traçar o perfil pessoal de duas das grandes mulheres da história universal. Evidente, Schiller se debruçaria com mais vagar sobre a tumultuada trajetória de vida, pública e privada, da inquieta Mary Stuart para escrever com vigor sua tragédia bem composta. E vamos ver ao longo da obra, exemplos pontuais de como Schiller não segue à risca a verdade histórica dos fatos que envolvem a prisão e morte de sua personagem. E aqui está o verdadeiro artífice, que não se submete aos fatos reais para compor um painel histórico, mas usa, habilmente, destes fatos para compor uma grande obra literária.

Ao iniciar o primeiro ato, Schiller já coloca Mary Stuart na prisão. E se vale de um fato curioso para compor o núcleo da tragédia. Na vida real, as duas rainhas nunca se encontraram pessoalmente. Mary Stuart estivera presa no Castelo de Fotheringhay, distando mais ou menos cento e cinquenta quilômetros ao norte de Londres, a caminho da Escócia. Mas para Schiller este fato não o abala. O impulso que move a narrativa poética fabulada por ele é o profundo desejo nutrido por Mary Stuart de se encontrar com sua rival, Elizabeth, onde Mary teria a oportunidade de expor, com súplica e veemência, a sua inocência. Os dois primeiros atos preparam o encontro que se dará no terceiro, dedicado a relatar a famosa entrevista que a história jamais registrou. Por ironia, Elizabeth morreria sem deixar herdeiros, e o trono da Inglaterra seria ocupado pela linhagem escocesa dos Stuart, em 1603, na pessoa do filho de Mary Stuart, James I, restando às primas e rainhas, despidas de seus sobrenomes, jazerem lado a lado, na Abadia de Westminster, onde estão até hoje expostas à visita de turistas.

Para encerrar esta pequena discussão, entendemos que o artista que usa e abusa de fatos históricos para compor sua obra não tem a obrigação do rigor no manuseio dos registros históricos. Não é o objetivo a instrução, e sim o deleite. E obra alguma se encaixaria à perfeição no rigor histórico, o que comprometeria mortalmente seu valor artístico. Portanto, ao entrar em contato com obras que se fundamentam em fatos históricos, há de se tomar o cuidado de separar estas duas instâncias, ficção e realidade, e ter em mente qual é o real propósito da obra que se está lendo ou contemplando. Com certeza, não será histórico. E, se o for, não será arte. E neste ponto, a atitude criativa de Schiller nos chama sobremaneira a atenção, a habilidade do artista que soube como ninguém moldar sua arte a partir de insumos históricos.

Cabe agora passarmos rapidamente em cada ato, para um breve apanhado de sua essência.

O primeiro ato é todo ele dedicado a Mary Stuart, já em sua prisão, no castelo de Fortheringhay. O arcabouço psíquico construído por Schiller para sua personagem vem, como já dito, de inspirações históricas, de que Schiller se vale para alavancar a tragédia e dar a ela o salto heroico pretendido. Mary Stuart, após levantes na Escócia, e depois de ter consentido no assassinato, por seu amante Bothwell, de seu marido Lord Darnley, foge para a Inglaterra, em busca de proteção da prima, a rainha Elizabeth. Mas é logo acusada de tramar a morte da rainha inglesa, complô organizado por Parry e Babington, assistentes da rainha escocesa. Agora na prisão, Mary manifesta seu desejo de ter uma entrevista com a rainha Elizabeth, e é neste sentido, numa última tentativa de provar sua inocência, que ela se movimenta. Mary Stuart é vista como orgulhosa, mundana, mulher que não abriu mão de seus sentimentos e de arroubos sexuais em submissão aos deveres da coroa. Ela é construída por Schiller como um ser humano real, “de instintos naturais”, como ele próprio o diz, não divino pela sua condição majestática, mas alguém que se dobra às suas fraquezas e às suas inclinações. Assim a define, logo no começo, seu carcereiro Paulet, ao vê-la entrar. “Nas mãos o crucifixo; / No coração, porém, luxúria e orgulho.” E o próprio, em outro verso acima, assim já havia descrito tão astuciosa personagem que, mesmo estando presa, não cessava de conspirar contra o trono da Inglaterra. “Não há grade que nos garanta contra a astúcia dela.” Mary Stuart, se aparentemente se resigna à sua sorte, não deixa de ter consciência de sua dignidade. De sua boca saem as palavras que definem sua atitude altiva perante as difamações e acusações que sobre ela recaem. Diz à sua fiel ama, Ana Kennedy. “Baixamente nos poderão tratar, não rebaixar-nos.” E surge então a personagem fictícia criada por Schiller, Mortimer, figura dúbia, cujos desenfreados sentimentos por Mary nos faz lembrar os bons tempos do romantismo, do qual Schiller, no começo de sua carreira literária, fora um dos grandes mestres. As promessas de Mortimer animam Mary; seus arroubos românticos assustam-na. A Mortimer cabe alimentar em Mary a esperança da liberdade. Ele é o arauto da legalidade, esta é a função precípua que Schiller reserva a Mortimer, na defesa do direito ao trono da Inglaterra por Mary Stuart. E a consciência do trono usurpado por Elizabeth é tão real, que Mortimer assim o diz a Mary. “Só a vossa morte garantirá o trono dela.”

O segundo ato é todo ele dedicado à Elizabeth. Schiller procura apresentar Elizabeth ao público, e o faz dentro de uma perspectiva histórica sem retoques. Apresenta, em primeiro lugar, o que há de mais frágil na rainha. A sua origem. O fatalismo da linhagem bastarda e suas consequências ficam bastante claras na fala de Lord Davison. Diz ele, aplacando a preocupação do Conde de Kent, quanto ao acordo de casamento da rainha com o consorte francês. “Para as núpcias caminha a soberana e para a morte a Stuart.” Mas Schiller coloca Elizabeth a serviço do povo. Destituída de beleza e arroubos sentimentais, submete-se à burocracia da Corte. Veja como Elizabeth se coloca, nestes belos versos. “Escravos são os reis de seu estado / E não podem ceder ao sentimento. / Foi sempre meu desejo não casar-me, / Pôr minha glória em que se lesse um dia / Na minha campa este epitáfio. “Aqui / Jaz a rainha virgem.”” Portanto, Elizabeth opta por sacrificar sua virgindade ao exercício de seu reinado como se um homem rei fosse. Sacrificar a virgindade, para Elizabeth, significava não sacrificar sua liberdade, para ela seu bem mais precioso. Ainda no Ato II, deixa clara sua posição de rainha da Inglaterra, e mostra a força da sua governança, quando diz. “Acolho de preferência o parecer daqueles que olham meus interesses.” Esta é Elizabeth, vigiando seu trono vinte e quatro horas por dia.

Ainda no segundo ato, Schiller traça uma Elizabeth abatida pelo medo, que tem em mãos a sentença de morte de Mary, votada unanimemente pelas duas casas, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns, mas que cabe a ela assinar e dar a ordem de execução. Vacilante ela, Schiller traça-nos o perfil de uma Elizabeth pouco confiável, que coloca os interesses do trono acima de tudo, defendendo-o, a despeito de qualquer lealdade. E Schiller dá o golpe de misericórdia em Elizabeth quando assim define sua indecisão. “assim, menos hesitará a assumir ante o mundo as aparências da clemência.” Portanto, a pretensa clemência é o refúgio imoral de Elizabeth.

Há ainda a longa cena em que Leicester e Mortimer discutem as conveniências de um e outro de tomarem parte na defesa da mulher que ambos amam, a Stuart. Um ama pela afoiteza, o outro, por ambição sexual (não é cobiça o que se deseja libidinosamente?).

Enquanto Elizabeth se lastima por não poder escolher o homem com quem se casaria por amor, por estar ela presa aos austeros deveres da realeza, assim vê Mary Stuart, quando a ela se refere… “Ela, a Stuart, conheceu-a, / A alegria maior de livremente / Conceder sua mão a quem amava; / Tudo teve, bebeu até ao fundo / A taça dos prazeres e alegrias.” Vejam como escapolem os ressentimentos, e a inveja da prima tão cortejada pelos homens. E ainda exala. “É mais moça do que eu…” É nesta diferença humana entre as duas que se selaria o destino do trono inglês no próximo século, o XVII. A virgem não deixa herdeiro; a cortejada gera o filho, James VI, e o oferece ao trono da Inglaterra como James I, em sucessão à sua rival.

Por fim, Elizabeth, ao final do Ato II, decide atender ao pedido de Mary Stuart, trazido por Lord Leicester, de ir a seu encontro, na prisão. É o que nos trará o terceiro ato.

O terceiro é o mais breve dos cinco atos. Neste, realiza-se o projeto de Schiller, provocando finalmente o encontro das duas rainhas. Schiller reescreve a história. Poderia ser um encontro histórico, se verdadeiro fosse. Schiller constrói inicialmente uma Mary Stuart nervosa e submissa, que tanto se preparara para este encontro, mas que agora se vê com a voz esquecida e frágil. Ela que se preparara para pedir clemência e liberdade, vê agora seu coração corroído pelo ódio e pelo despeito. Começa se ajoelhando aos pés de Elizabeth, mas, sentindo-lhe a frieza, a arrogância e o escárnio, Mary rapidamente recupera a altivez, e aponta para a rival todo o seu furor de rainha usurpada. E suas últimas palavras provocam a ira e a imediata retirada de Elizabeth. Assim diz a Stuart. “Uma bastarda profanou o trono / Inglês, o nobre povo de Inglaterra / Foi por uma astuciosa comediante / Ludibriado! Se direito houvesse / Vós é que neste instante às minhas plantas / Rojaríeis no pó, pois eu sou o rei!” Ao dizer estas palavras, em tom de desabafo, resgatando a sua história, Mary Stuart sabia que estava definitivamente selando seu trágico destino.

O quarto ato é dedicado todo ele à Elizabeth, às voltas com a pressão do povo para que assine a sentença de morte de Mary. Schiller, espertamente, usa o povo para impulsionar seu drama. De um lado, há os que defendem a execução imediata da escocesa, e, do outro, os que tentam evitar a morte de Mary, defendendo que seja mantida na prisão, sem que a Inglaterra precise derramar o sangue divino de uma rainha. Nesta discussão, Schiller toma algumas liberdades históricas para compor a tensão dramática do Ato IV. Assim diz Burleigh, personagem histórico, um dos ferrenhos defensores da execução. “A sentença já foi pronunciada: / O que falece agora é executá-la.” Temos a voz do Conde de Shrewsbury, que na história real foi um dos que mais se empenharam pela execução de Mary, mas que Schiller, para efeitos de construção dramática, o coloca no lado oposto, mostrando o perigo da execução da Stuart, neta dos reis da Inglaterra. Alerta ele. “Quero apenas dizer-vos uma coisa: / Tremeis agora da Maria viva: / Não é esta que deve amedrontar-vos. / Tremei da morta, da decapitada. / Ela sairá da campa nova deusa / Da discórdia, inflamando todo o reino / Em chamas de vingança, expelindo / De vós o coração do vosso povo.” Fraca, mergulhada em sua indecisão, Elizabeth nos traz o belo monólogo de duas páginas, ao fim das quais assina a sentença de Mary. E o faz proferindo estas palavras, que está na base de todo o conflito da tragédia, e também do conflito histórico entre as duas rainhas. Diz ela, dirigindo-se, em seus pensamentos, à rival. “Chamas-me de bastarda… Todavia / Sê-lo-ei somente enquanto respirares. / A dúvida que paira sobre a minha / Origem principesca, hei de destruí-la / Destruindo-te! No dia em que os ingleses / Já não tiverem que escolher, nascida / Serei então de tálamo legítimo!” Após assinar a sentença, descobre-se impotente para fazê-la ser executada. Impõe a cruel tarefa a Davison, que implora precisar ouvir dela a ordem final. Elizabeth, apenas diz. “Deixo ao vosso juízo…” Mas, diante da insistência do pobre secretário Davison, e do jogo dúbio de esquivas de responsabilidades, Elizabeth retira-se, sem não antes dizer-lhe. “Fazei o que compete ao vosso cargo.” Diante de tantas covardias, cabe ao Barão de Burleigh, o Grande Tesoureiro, o gesto definitivo, fazendo deste modo com que Schiller traga sua tragédia para o eixo histórico, do qual ele, na busca de resultados artísticos, tantas vezes se desviara.

É bom ilustrar que a figura de reis e rainhas era divina, portanto, estavam acima de qualquer julgamento terreno. Condenar e levar à morte um ente divino, reis e rainhas, portanto, necessitava de uma coragem acima das forças comuns. E a morte de Mary Stuart acaba sendo a primeira execução de uma rainha. Daí se entende as atitudes dúbias de Elizabeth, tão bem construídas por Schiller. Ela estaria dando um passo além da história. Tanto é verdade, que foram dezenoves anos de prisão até a execução de Mary, em 1587.

Quinto ato. É quando a história, no rastro da tragédia, se consome. Diante da morte, Mary é tomada de um profundo sentido religioso. Schiller nos mostra isto tanto nos diálogos, principalmente em seu monólogo, como nas vestimentas e acessórios sacros que ela traz consigo. E diante de seu querido e leal mordomo, Melvil, Mary assim o diz a ele, quando este se ajoelha diante de sua rainha. “Erguei-vos, pois viestes / Para assistir ao triunfo e não à morte / De vossa soberana.” Que todos os que estivessem ali se rejubilassem, pois a morte significaria a liberdade da vida eterna, diferente do tempo em que estivera na prisão, esta, sim, motivo de tristeza e dor. E por ser católica fervorosa, Mary, antes de colocar sua cabeça real no cadafalso, precisava do mandamento da confissão e da comunhão para estar preparada no seu encontro com o Deus Todo Poderoso. Mas seus algozes lhe negaram um padre que ministrasse os sacramentos. E Schiller, num arranjo cênico bem apropriado, carinhoso com sua heroína, apresenta Melvil, seu antigo mordomo, como sendo agora pertencente às hostes eclesiásticas da Igreja Romana. Portanto, Melvil, agora padre, estava ali para ouvir a confissão de Mary. Essa preparação da estrutura do quinto ato nos faz crer que Schiller queria, a todo custo, deixar clara a inocência de Mary, acusada de tramar a morte da rainha Elizabeth. Numa página de rara beleza e sensibilidade, Melvil vai conduzindo Mary à confissão, incitando-a a revelar todos os pecados, sob pena de não receber o perdão divino. Até ela, após nova insistência de Melvil, declarar não ter mais nada a confessar. Portanto, a ausência de qualquer outro pecado lhe garantia também a inocência no complô contra a vida de Elizabeth! Neste trecho, ao final da confissão, Schiller faz Mary dizer. “Fiz apelo / Aos reis da terra por que me livrassem / De cadeias indignas. Entretanto, / Nem mesmo em intenção, atentei contra / A vida da rainha.” E com isso, o padre Melvil confirma-lhe a absolvição. “E eu, em virtude do poder que tenho / De atar e desatar, dou-vos, Rainha / A santa absolvição!” Desta forma, Schiller resgata Mary do erro histórico de sua condenação. Se Schiller a Mary reservou a expiação terrena, a Elizabeth ele concedeu a pena amarga da solidão. A Burleigh, a quem coube, de livre iniciativa, executar a sentença assinada por Elizabeth, esta o questiona. Pergunta ela. “Lord, dizei-me: / Recebestes de minhas mãos a ordem / De execução?” Burleigh retruca. “Não, minha soberana! / Recebi-a de Davison.” Elizabeth continua a indagá-lo. “E Davison, / Entregou-a em meu nome?” E Burleigh diz. “Não, Rainha.” E Elizabeth, ao se livrar da responsabilidade por levar Mary ao cadafalso, e depois de saber, tardiamente, da comprovada inocência de Mary, condena Burleigh com esta pergunta. “E a executastes imediatamente / Sem indagar primeiro se era mesmo / Minha vontade?” Diante da negativa de Burleigh, Schiller, maliciosamente, veste Elizabeth com as luvas de Pilatos.

Em suma. Assim finalizados os cinco atos, podemos dizer que Schiller, enclausurado em sua genialidade, compõe, em versos iâmbicos, uma das mais notáveis narrativas de personalidades que se sobrepuseram a uma visão sistêmica da história. Schiller queria falar de Mary. Schiller se encantava por Mary. Mas, em momento algum, e aí está sua honestidade de artista, fez de Mary, vítima de erros históricos, uma pobre coitada submetida aos horrores da clausura e do cadafalso. Schiller só quis, provável, como historiador e como artista, resgatar a verdade histórica de Mary, em que se vislumbravam novos tempos acontecendo na Ilha de Inglaterra, e que se comprovaria no tumultuado século seguinte, em que o país da revolução industrial se preparava, mesmo que dolorosamente, para dominar a economia e os mares do mundo conhecido. Assim se fez Mary Stuart, nas mãos de Schiller, que, em momento algum, quis santificá-la, senão lançar luzes coloridas sobre esta personagem real que soube reconhecer seus erros e fez deste reconhecimento seu motivo de grandeza. Schiller nada mais pretendeu do que fazer jus à verdadeira história. Uma história segundo ele.

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Por Jackson Melo

Jamais!
Jamais acreditaria eu
Em tal sentimento
Tal sensação
Se não tivesse eu provado
De tal maneira

Se me contasse
Eu duvidaria
Me afundaria
Em total deboche
Só de ouvir
Tal palavra

O mundo lá fora
É maldoso
Assassina qualquer forma ou desejo
De te sentir
Tripudiam sobre todo aquele
Que sonha em te viver

Que sorte a minha
Embriagar-me de ti
Me permitir
O tal do amor
Que sorte a minha
Te encontrar
Minha amada.