Otelo, o Mouro de Veneza

Por Alex Ribeiro

Otelo, o Mouro de Veneza é uma peça de William Shakespeare, escrita por volta de 1604. É uma das suas grandes tragédias e, consequentemente, uma obra prima da literatura teatral. Otelo traz para o palco a história de um militar recém-empossado general, tido como o maior combatente de Veneza na guerra contra os otomanos. Por causa do seu sucesso militar, nosso herói é enviado à ilha de Chipre para defendê-la de um possível grande ataque. Recém-casado com Desdêmona, Otelo chega à Chipre para cumprir sua missão e se tornar governador da ilha. Desfruta, agora, do mais alto posto militar e de grande prestigio político. Somado a isso, seu casamento pode representar o seu ingresso na elite aristocrática de Veneza, já que sua linda esposa é filha de um dos senadores daquela bela cidade. Neste panorama, Otelo, podemos dizer, estaria no auge do sucesso pessoal. Tal fato, claro, não passaria incólume aos olhares invejosos de Veneza. E é ali, no ninho das serpentes, que nos deparamos com uma das figuras mais vis do teatro ocidental, o alferes Iago. Tomado de ódio e inveja, Iago está determinado a destruir Otelo. Este sentimento tomou conta dele desde o momento em que o general se recusara a dar-lhe o título de tenente. Otelo preferiu o intelectual Cassio, recusando-se a empossar o vil e experiente militar Iago. Mas como atingir tão íntegro e hercúleo general? Não seria possível Iago vencer Otelo, seja num combate físico, seja na oralidade. Ah, mas o nosso herói também traz consigo o seu calcanhar de Aquiles! A paixão, esta musa avassaladora que não poupa o mais fraco e, tampouco, o mais forte dos homens. E Otelo não é um semideus, como Hércules. Otelo é tão humano quanto qualquer outro veneziano residente em Chipre. E é na sua paixão por Desdêmona que nosso herói vai encontrar sua ruína. E o pior. Iago já sabe como atacar o nobre guerreiro desde o primeiro momento em que se comprometeu, consigo mesmo, a implodir Otelo. A tragédia traça, ardilosamente, o seu curso.

Após se casar com Desdêmona, e tendo sido chamado ao senado de Veneza, onde seria comunicada a sua partida para Chipre, Otelo se depara com Brabantio, que quer explicações sobre o casamento do Mouro com sua filha Desdêmona. Sendo a questão militar mais importante que o conflito familiar, Otelo, seguido de sua esposa, parte, com seus subordinados, para Chipre. Dentre eles, estão dois militares de prestigio, Cassio, o tenente, e Iago, o Alferes e sua esposa. Acompanha-os, ainda, a dama de companhia de Desdêmona, Emília, e o gentil homem Rodrigo. Aqui estão os personagens que farão a trama shakespeariana acontecer.

Já em Chipre, Iago começa a manipular Rodrigo, fazendo com que este, apaixonado por Desdêmona, entre em conflito com Cassio. O intuito da  manipulação é usar Rodrigo para deixar Cassio em má posição diante de Otelo, para depois acusar o tenente de ter um caso amoroso com a mulher do general. E aos poucos, vai criando toda uma estrutura de acontecimentos que vão servir para provar, mesmo que de maneira frágil, o adultério de Desdêmona. Iago pretende, com isso, se vingar de Otelo por não ter-lhe confiado o cargo de tenente, e também por desconfiar que desafeto tenha se deitado com sua mulher.

Otelo, que não precisou combater os otomanos, devido ao naufrágio das esquadras inimigas, permite que Chipre entre em festa, tanto pela paz quanto pelo seu casamento com Desdêmona. Ele está perdidamente apaixonado e recebe dela uma paixão de mesma intensidade. Tudo parece favorável para que enfim esse amor se solidifique e que o nosso guerreiro errante possa, enfim, ter um lugar para si, seja um lar naquelas terras estrangeiras, seja um amor de uma bela e aristocrática mulher. Mas, talvez seja a vida breve daquela relação, ainda sustentada por ideais de paixão, que abre as fissuras trágicas de que Iago se favorece. A paixão, poderá ela alquebrar a integridade de tal homem? Iago aposta todas as suas fichas nisso.

Seria leviano pensar que Otelo fora apenas um homem tolo, capaz de acreditar nas mentiras de um homem vil como Iago. O alferes era bem quisto por toda a sociedade veneziana, homem a quem dedicavam os adjetivos de honesto, confiável, comprometido e outros da mesma linha. Mais leviano ainda seria dizer que Otelo era um reles ciumento. Em toda a memória de Desdêmona, não havia ele ainda demonstrado quaisquer sinais de ciúmes. Confiava cegamente no amor da sua jovem esposa. Então, quais foram as razões que levaram Otelo a se perder em sentimento tão desastroso quanto o ciúme?

O racismo, talvez? Eis outro ponto que pode nos servir para entender o nosso herói, mas não contempla toda a questão. A diferença étnica de Otelo só faz deixar mais sublinhada a diferença entre ele e aqueles demais homens. Alcançar todo o prestígio que tinha, mesmo sendo ele quem era, é um sinal de que suas qualidades estavam acima de qualquer questionamento preconceituoso que pudesse surgir. Tendo isso como circunstância dada, o que nos resta é olharmos para o grandioso e admirável Otelo frente a um mesquinho Iago. E é a partir da mesquinharia de Iago que podemos entender o poder destrutivo do ódio e da inveja. A mesquinharia derrubará a integridade.

Otelo se deixa envolver nas estórias de Iago, que insinua um amor secreto entre Desdêmona e Cassio. É a partir de um lenço perdido pela dama que Iago forja sua prova, ao deixá-lo para que Cassio o encontre e dê de presente a outra mulher. Na cabeça do já fragilizado Otelo, tudo fazia sentido. Mesmo que fosse um febril sentido. A verdade só se revela depois que Desdêmona já havia sido assassinada pelo homem a quem dedicou seu amor. E, de novo lúcido, Otelo prefere a morte a ter que conviver com o erro trágico que jogou por terra toda a sua trajetória de vida. Prefere a morte a ter que admitir ter destruído aquela a quem mais dedicou amor em sua vida, mesmo que por pouco tempo.

Otelo nos faz pensar, assim como outras tragédias de Shakespeare, sobre nossas relações e nossas fragilidades humanas. Shakespeare muito nos presenteou com isso, refletindo em suas tragédias o que seria o homem dos próximos séculos, no ocidente. Um vertedouro de paixões, que por sua vez causariam as mais inomináveis tragédias. Mas, e Iago? O que representa Iago para nós, hoje? Enquanto Otelo é a integridade que não resiste à paixão, Iago nos parece ser nosso instinto primitivo de destruição. E esta sensação está mais presente do que nunca nas relações abusivas, das mais diversas. Também no pretenso bom empregador que faz do seu empregado um escravo. No homem ensandecido que comete feminicídio. Nos mesquinhos comportamentos discriminatórios, racistas, machistas, homofóbicos. Enfim, temos muitos Iagos capazes de despirem suas máscaras honestas para alimentarem nossas tragédias contemporâneas. Até mesmo aqueles que, como Iago, pregam a segurança e o bem de todos, cometem diariamente o democracídio. Estes, infelizmente, fazem de nós os seus Otelos, enquanto assistimos a tudo, inertes. Sim, a omissão pode ser a nossa tragédia.

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Autor: Alex Ribeiro

Ator da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto, psicólogo, poeta.

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