O Pato Selvagem

As mentiras verdadeiras

Por Antônio Roberto Gerin

É aparentemente complicado falar de uma obra literária sem se deter em quem a escreveu. Falar do texto teatral O Pato Selvagem sem mencionar Ibsen? É consenso. Conhecendo a vida do artista melhor apreenderemos sua obra. E Henrik Ibsen é um exemplo desta simbiose entre criador e criatura. Sua obra está intimamente associada ao que ele pensava e como agia. Fez de sua arte um compêndio de pensamentos e atitudes que pudesse levá-lo a compreender melhor o mundo em que vivia. E transferia estas compreensões para as suas obras. Não à toa, Ibsen foi o grande dramaturgo do seu tempo e, ao morrer em 1906, deixaria um legado artístico imensurável. Alguns de seus textos, inclusive, vieram cercados de muita polêmica. Sua fala teatral mexia com a sociedade norueguesa, para Ibsen, atrasada e historicamente subserviente. Os embates foram tão fortes que Ibsen, voluntariamente, viria a se exilar na Itália, depois na Alemanha, em Munique, ficando dezessete anos longe do seu país. O Pato Selvagem, escrito em 1884, sob alguns aspectos, pode ser considerado a grande realização de Ibsen. Estão ali condensadas as suas principais virtudes como dramaturgo. Mais que isso. O Pato Selvagem resume a preocupação de Ibsen com as vulnerabilidades humanas – leia-se, mediocridades -, tão suscetíveis à tirania da mentira. E é sobre as mentiras e suas maldições que Ibsen gosta de escrever. Para ele, trilhar o caminho da verdade é a única forma de se estabelecer relações humanas saudáveis. Mas, uma vez construída a mentira, sair dela pode levar ao trágico. Ibsen nos alerta. Pensemos duas vezes antes de mentir, pois, uma vez criada a mentira, alguém se tornará vítima dela.

No contexto acima, podemos dizer que O Pato Selvagem, sob o ponto de vista de sua construção narrativa, gira em torno de uma mentira. É o punhal fincado no coração do modelo familiar burguês, modelo este que define a paternidade como uma atribuição intransferível. E se a paternidade for transferida? Bem. Problema sério, que precisará ser resolvido. Com outra mentira.

Hjalmar Ekdal é um fotógrafo, e está prestes a fazer uma grande descoberta, aliás, descoberta que ele exatamente não sabe bem o que é. Enfim, um gênio que a humanidade ainda não descobriu. É casado com Gina Ekdal, a mulher ideal para retroalimentar as ilusões do marido. Com ela tem uma filha, Hedvig, que se derrama de amores e admiração pelo pai. Mora também na casa o pai de Hjalmar, o velho Ekdal, antigo sócio de Werle, o industrial de usinas. Fora Werle quem arquitetara, no passado, as mentiras que levaria o velho Ekdal para a prisão. E, mais tarde, a mentira, aquela da paternidade, que causaria a tragédia irreparável. Tudo, pois, caminha em pleno equilíbrio, o cotidiano se sustenta nos disfarces, com aparências saudáveis, até que Gregers Werle, o filho do industrial Werle – aquele! -, desce lá de cima das usinas, onde esteve isolado por anos e vem fazer o quê? Dizer as verdades.

Uma das questões que se coloca em relação ao papel da literatura, o teatro em específico, é a de como sangrar as verdades sem que elas assustem o leitor – e o espectador. Sem que se transforme num compêndio de denúncias. Talvez seja este um dos dilemas do realismo, escola literária do século XIX, na qual Ibsen atuou como grande mestre. E acreditamos que este deva ter sido também o dilema do Ibsen realista. Afinal, o que se ganha com revelar a verdade? Como fazer prevalecer a verdade se o homem tem na mentira seu álibi moral? Sendo assim, até onde não seria melhor viver na mentira, que traz a paz aparente, do que insistir na verdade, que traz o peso insuportável da responsabilidade?

Enfim, a verdade, segundo Ibsen, ressurge da mentira desmascarada. Eis o grande teatro! Mas há o risco. Desmascarando uma mentira, poderemos encontrar outra, na camada inferior. E mais outra. Neste caso, não seria melhor pararmos de remexer nosso solo existencial e nos mantermos na superfície, protegidos pela mentira? Afinal, fazer prevalecer a verdade exige muita coragem. O teatro, enclausurado, fará isto por nós. Gritará a verdade que não vamos ouvir. Ademais, enquanto o teatro não vier para as ruas, estará tudo bem. Se vier, a gente chama a polícia e o enclausura novamente. Ou expulsa. Como fizeram com Ibsen, obrigando-o a se submeter ao autoexílio. Ibsen é a prova maior de que a verdade não tem lugar neste mundo. No máximo – e olha lá! -, nas salas de teatro.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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