Ninotchka

Uma comédia para Greta Garbo

Por Antônio Roberto Gerin

Ainda em seu início de carreira, quando era apenas uma jovem atriz em Estocolmo, Greta Garbo conseguira atrair os primeiros olhares de admiração justamente por alguns papeis cômicos que vinha desempenhando. Sim, Greta Garbo foi momentaneamente uma comediante. No entanto, ela deixaria para trás sua veia cômica quando chegou a Hollywood, em 1925, revelando-se uma atriz trágica e reservada, cujos silêncios, prolongados, foram transformando-a numa mulher misteriosa e indecifrável, imagem que a acompanharia para o resto de sua vida. Mas Greta voltaria à comédia no final da sua curta carreira de atriz, em NINOTCHKA (111’), direção de Ernst Lubitsch, EUA (1939). Comédia elegante, ágil e nada sutil. Sua personagem, uma camarada russa lacônica e dogmática, vê-se lançada literalmente dentro da comédia assim que desembarca em Paris, por volta do décimo nono minuto de filme. Armada que estava a situação cômica desde seu início, os comportamentos carrancudos de Ninotichka vão gerar um saboroso contraste com as hilárias confusões provocadas por três emissários russos. Eis! Ela fora enviada a Paris justamente para pô-los na linha! E o filme precisou chegar a seu quadragésimo oitavo minuto para que o conde Leon d’Algout, o bon vivant capitalista que por ela se apaixona, conseguisse, enfim, depois de muita insistência, fazer com que Greta/Ninotchka emitisse seu primeiro e tão esperado sorriso. Sorriso não. Uma sonora gargalhada, raramente vista no cinema. E assim, Ninotcka, o filme, se completa como uma das mais deliciosas comédias românticas até então produzido.

Chegam à Paris três representantes da Câmara Russa de Comércio, Ironoff, Buljanoff e Kopalski, interpretados, na sequência, pelos simpaticíssimos Sig Rumann, Felix Bressart e Alexander Granach. Vieram à capitalista Paris com a incumbência de vender catorze famosas joias que haviam sido legalmente confiscadas da Grã-duquesa Swana (Ina Claire), uma das tantas nobres russas que conseguiram escapar aos fuzis da Revolução Russa de 1917. Contrariando as ordens da comunista Moscou, eles esbanjam dinheiro se hospedando na suíte real de um caríssimo hotel parisiense. Prestes a fechar negócio com o joalheiro, os três veem seu plano abortado pela intervenção do advogado, e amante, da Grã-duquesa, o conde Leon D’Algout (Melvyn Douglas). Suspensa a venda, e enquanto aguardam a decisão da justiça francesa, por que não usufruir um pouquinho das delícias do capitalismo? Está armada a comédia.

Os três felizardos russos só não esperavam pela súbita chegada da durona camarada Ninotchka. Subjugados, não tiveram tempo nem coragem de apresentar à implacável bolchevique as doçuras do capitalismo. Sem problemas, haveria quem o fizesse. O próprio, o Leon, o mesmo que já havia se encarregado de perverter os três deslumbrados mosqueteiros.

Leon acaba conhecendo Ninotchka na rua, de uma maneira bem fortuita, e por ela logo se apaixona. Em se tratando de comédia romântica, o amor ali é sincero, portanto, irreversível. Mais alguns minutos e o conde vai descobrir que aquela mulher apaixonante nada mais é que sua inimiga russa no litígio das joias. Ele não só não desiste dela como vai tenazmente apresentar a Ninotchka as benesses capitalistas, onde o amor parece ser apenas um pretexto para se comprar pequenas felicidades. Leon oferece a Ninotchka o que ele sabe oferecer às mulheres. Um fino jantar regado à champanhe.

Mas qual é a estrutura que dá sustentação e fôlego à comédia? O embate ideológico entre capitalismo e comunismo. Entre organizações sociais e econômicas diametralmente opostas, a russa e a ocidental. Estas diferenças são causticamente satirizadas e viram oportunidades para se criarem situações inteligentes de humor, às vezes ferino, com desvantagem, lógico, para o comunismo, afinal, o filme é produzido no epicentro do capitalismo, os Estados Unidos.

Sabemos que estes assuntos de ideologias podem afugentar o espectador. Mas, por favor, não se assuste! Fique e assista ao filme. Diferente do que se pode supor, o inteligentíssimo roteiro, costurado a seis mãos por Billy Wilder, Charles Brackett e Walter Reisch, com seus diálogos para lá de fabulosos, passa ao largo desta discussão. Só querem tirar dos imbróglios ideológicos o riso e a graça! E umas pitadas de crítica, lógico. Portanto, não falemos aqui de política. Ademais, vale lembrar que o ocidente capitalista, naquela altura do ano de 1939, estava muito mais preocupado com a extrema direita nacional-socialista de Hitler do que com os massacres em massa de um Stalin. Depois, finda a guerra, quando a Rússia fura os flancos nazistas a leste e entra em Berlim primeiro que os americanos, aí, sim, Ninotchka poderia ser analisada com outras lentes. Mas, como um pressuposto, alertamos. O filme é tão bem armado e dirigido que ele com certeza terá resistido aos furiosos enfrentamentos da Guerra Fria. O filme tem personalidade própria, ele não precisa dos discursos alheios.

Poderíamos aqui elencar uma sequência de cenas de finíssimo humor, sustentadas por diálogos geniais, uma direção mágica, e com ritmos precisos, construídos por uma edição exemplar, mas preferimos deixar para o espectador o trabalho de estabelecer suas preferências que, alertamos, não serão poucas. Permita-nos comentar uma cena só! A cena de Greta Garbo em sua Ninotchka bêbada. Ah, e outra, logo no início do filme! A câmera posicionada no corredor do hotel, revelando, a cada entrada de bebidas, comidas e mulheres, os urros de contentamento infantilizado dos três camaradas russos.

É momento agora de falarmos um pouco de Greta.

O maravilhoso repertório de movimentos corporais e modulações de voz foram os grandes recursos pessoais de que dispôs Greta Garbo para alcançar seus resultados artísticos. Ela simplesmente, com naturalidade e técnica, sabia o que fazer com seu corpo incomum e com sua voz de timbre original. Voz e corpo estavam sempre prontos para desenhar a próxima emoção. Vale destacar o uso expressivo das mãos, o arqueamento do dorso, ou simplesmente o inclinar de cabeça para trás, quase sempre de fundo trágico, ou romântico. Muitos podem alegar que ela veio do cinema silencioso, onde o corpo era a ferramenta do discurso dramático e cômico. Portanto, ela estava devidamente treinada. Pode ter ajudado, mas não acreditamos que tenha sido decisivo. Tanto é verdade que ela transitou do silencioso para o sonoro sem grandes percalços. Aliás, no primeiro sonoro, em 1930, ela já foi indicada à estatueta de melhor atriz.

Há mais o que dizer dos movimentos de corpo e voz em Greta. A destruição proposital do equilíbrio corporal para tirar o efeito desejado, de fragilidade, dúvida ou afeto, as mãos trançadas às costas, ou deslizando pelos quadris, ou cruzadas, ou no bolso, a face neutra, sem a presença de trabalho muscular, o uso preciso da voz, seus ritmos e tonicidades, seca, abrupta, grave, lânguida ou demorada, o espectador pode reparar na ondulação arrítmica das sobrancelhas, os movimentos dos lábios, a sobriedade e a preocupação por trás da boca harmoniosamente fechada, mas não tensa, quantas descrições podemos traçar aqui para mostrar o colorido infinito de matizes corporais que fizeram de Garbo uma atriz sem limites artísticos.

Enfim, para apreciar, na sua totalidade, a beleza artística de Greta, faz-se necessário passar pela sua filmografia com calma e, muita das vezes, revisitando o mesmo filme. Só assim o espectador terá a oportunidade de mergulhar na arte de representar desta que foi um dos ícones da sétima arte, numa época em que o cinema, querendo entrar na sua maturidade, ainda dispunha de poucos recursos técnicos. No entanto, a falta destes recursos, tão à disposição do cinema de hoje, não fez falta a Greta. Mesmo assim, podemos fazer um exercício de imaginação, colocando-a diante das câmeras de um Ingmar Bergman, com seus closes reveladores e precisos. Que segredos então Bergman não tiraria de Greta! Mas, enfim, não podemos lamentar as lacunas históricas. E nem precisamos, quando pensamos em Greta. Ela nos legou uma arte ainda mais poderosa, empurrou o cinema para um patamar acima, e foi isto que Greta soube fazer. Tirar de cada filme o máximo de sua genialidade.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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