Luzes da Cidade

O amor silencioso

Por Antônio Roberto Gerin

Se alguém quiser conhecer a filmografia de Charlie Chaplin, e que tenha como critério não a ordem cronológica em que os filmes foram produzidos e sim o resultado artístico de cada obra, um dos primeiros filmes a que terá que assistir é o comovente LUZES DA CIDADE (97’), EUA (1931). Neste filme, provável Chaplin tenha conseguido reunir todas as qualidades artísticas que fizeram dele o grande ator e diretor das primeiras décadas da história da sétima arte, tempos em que o cinema ainda era silencioso (mudo). No conjunto da obra de Chaplin, Luzes da Cidade teria que ter sido o divisor de águas na transição para o cinema sonoro, já que à época da produção do filme, finalizada em 1931, a fala já dominava as telas dos cinemas mundo afora. O visual, onde a pantomima era soberana, dera lugar ao oral, em que os diálogos passaram a substituir em boa parte as expressões faciais e os trejeitos corporais. O que se pergunta é. Por que Charlie Chaplin não participou logo desta transição, como fizeram, sem grandes problemas, seus principais colegas de humor, Buster Keaton e Harold Lloyd, por exemplo? Medo do novo? Redução de custos de produção, já que Chaplin era também produtor dos próprios filmes? Opção estética? Quais sejam as razões, o risco de permanecer mudo na tela, em plena década de 1930, era imenso. Mas não para Chaplin. A estreia do filme foi um sucesso de bilheteria. E hoje, para muitos, Luzes da Cidade ocupa aquela restrita prateleira onde descansam os melhores filmes de todos os tempos.

Luzes da Cidade começa com a inauguração de um enorme monumento em honra à paz e à prosperidade. Ao descerrar o pano, lá está o Vagabundo tirando uma soneca nos braços da estátua, enquanto embaixo ouvem-se os sons ininteligíveis dos discursos das autoridades. Ininteligíveis porque a proposta de Chaplin é continuar fazendo filme mudo, e ele deixa isto claro logo de início. No entanto, estava ali o som, e Chaplin fez questão de acusar a sua presença, como o faria ao longo de todo o filme. A hilária cena do apito é um destes exemplos — o som servindo ao humor. Enxotado da cerimônia, o Vagabundo vai fazer o que ele melhor faz: vagar, sem destino, pela cidade.

O severo policial é uma figura presente em boa parte da filmografia de Chaplin. Ao vagabundo, a lei! Portanto, fugir da polícia parece ser uma das ocupações diárias do Vagabundo. Em Luzes da Cidade, esta particularidade toma uma dimensão especial, decisiva. A fuga do Vagabundo — o policial sequer nota sua presença — será o gatilho que levará o espectador para dentro da narrativa, pois significará o encontro de Carlitos com a sua amada, numa das cenas mais bem elaboradas e sensíveis de que se tem notícia na história do cinema. Ao escapar à presença (inofensiva) do policial, o Vagabundo atravessa um carro — abrindo e fechando as portas traseiras — e se depara com uma florista vendendo flores na calçada. De imediato se apaixona por ela. Mas ao perceber que a florista (Virginia Chemill), deficiente visual, confundira-o com um transeunte rico (eis a função do carro), ele é obrigado, de fininho, a se retirar de cena, afinal, não era para ele que ela dirigia seu encanto e atenção. Mas em Chaplin sempre existem os reencontros, e a oportunidade de o Vagabundo se passar por rico e conquistar de vez o amor da florista logo surge. E a trama assume seu papel vital: o de levar o espectador a experimentar momentos de profunda delicadeza. Artisticamente bem construído, não há como não se entregar à fantasia de uma realidade possível, tão perto de nós, mesmo que esta realidade seja apenas uma ficção.

Um adendo. A cena acima mencionada, em que a florista confunde o Vagabundo com um homem rico, ao assisti-la, parece-nos simples, até óbvia. No entanto, que se registre, para Chaplin custaram meses de gravações e regravações, até chegar ao resultado final.

Mas quem é que vai possibilitar ao Vagabundo se passar por rico, para assim conquistar o amor da florista? Um milionário suicida, de quem o Vagabundo salva a vida quando o desconhecido está prestes a se atirar no rio, com uma pedra amarrada ao pescoço. Agradecido, o milionário jura eterna amizade a seu salvador. E assim começam as noitadas de pândegas dos dois amigos, momentos em que Chaplin reserva para construir, com a costumeira precisão, seu humor pantomímico. O deleite do espectador está garantido. E mais garantido está quando se percebe que o excêntrico milionário, ao voltar a ficar sóbrio, não reconhece o amigo salvador, expulsando-o de sua casa como se fosse um indesejado estranho. É a hora de o Vagabundo voltar para as ruas.

A narrativa acelera seu ritmo quando o Vagabundo, já íntimo frequentador da casa da florista, descobre que a amada, por falta de pagamento do aluguel, está prestes a ser despejada. Prometendo a si mesmo e jurando a ela resolver a questão até o dia seguinte, Chaplin, o roteirista, mais uma vez se oferece a oportunidade para que sua personagem irradie na tela toda sua exuberância cômica e humana. E redentora. Caberá mais uma vez ao herói resgatar a felicidade de alguém, mesmo que dela não venha a fazer parte.

É o momento do último lance: o reencontro, muito tempo depois, entre o Vagabundo e a Florista, agora não mais deficiente visual, e dona de uma loja de flores. Além de pagar o aluguel, o Vagabundo havia conseguido do milionário (em momentos de bebedeira) dinheiro para que sua amada fizesse a cirurgia dos olhos e recuperasse a visão. No reencontro final, em imagem icônica, Charlie Chaplin nos oferece o impasse. Para que o Vagabundo continue existindo, ele terá que transformar o encontro em desencontro. Mas Chaplin encerra o filme antes, no encontro, deixando ao espectador as perguntas sobre a possibilidade daquele amor. Pelo que já sabemos, ao Vagabundo está destinada a bondade, não a felicidade.

Em suma. A qualidade artística baseada no perfeccionismo de Chaplin impulsionou seu cinema mudo até o limite. A despeito de todas as razões levantadas acima, no primeiro parágrafo, ou em qualquer literatura que o espectador possa se apoiar para definir sua posição quanto a ter Chaplin resistido ao cinema sonoro, podemos, primeiro, concluir que Chaplin não virou totalmente as costas para o sonoro, pois podemos ver em seus filmes, neste e nos seguintes, a inserção pontual do som, sem que o Vagabundo fosse obrigado a falar. E este era seu objetivo. O Vagabundo continuaria mudo! Aqui reside, provável, o extremo cuidado de Chaplin com sua criatura. O Vagabundo, desde o princípio, sempre foi uma personagem eloquente, em quem a precisão exata de cada gesto tinha seu grito particular. Sob pena de desfigurar a personagem, colocando nele a voz, Chaplin preferiu deixá-la silenciosa, portanto, intacta no nosso imaginário, eis a conclusão. Foi a melhor herança que ele nos legou, e podemos até dizer que, diante de todas as personagens criadas na era do cinema silencioso, anterior à década de 1930, o eloquente Vagabundo foi o único que se deu ao luxo de continuar mudo.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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