Jackie

Afinal, quem foi Jackie?

Por Antônio Roberto Gerin

JACKIE (99’), direção de Pablo Larraín, EUA (2017), pode ser visto como uma exposição à dor do luto pela morte de um ente querido, no caso, o marido, John F. Kennedy, ou pode ser visto como uma manobra inteligente da viúva, Jacqueline Kennedy, para aproveitar a ocasião e forjar uma imagem pessoal fortemente colada a um fato histórico trágico. Seja qual for o ângulo a partir do qual o espectador vê o filme, sai das telas uma mulher ambígua, instável, digna e humana.

O propósito do todo filme é contar uma história, de preferência, bem contada. E toda história, para ser bem contada, passa necessariamente por um roteiro bem alinhavado e convincente, que dará ao filme o que o espectador mais quer: assistir a uma boa história! Assim é Jackie, cujo roteiro tem propostas bem definidas para que o espectador seja conduzido pelos fatos históricos sem cair na impressão de estar assistindo a um documentário sobre a pós-morte de Kennedy. É um documentário, sim, mas transformado em boa ficção.

A principal linha narrativa do roteiro é a entrevista, real, dada por Jacqueline Kennedy ao jornalista da revista Life, Theodore White, uma semana depois do espantoso assassinato, em Dallas. É a partir desta entrevista, pontuada ao longo do filme, que o diretor vai alinhando as imagens que conduzirão ao suntuoso funeral de Kennedy. A entrevista tem a função do narrador, portanto, sabiamente utilizada pelo roteirista, e bem executada pelo diretor, Pablo Larrain.

A morte de John Kennedy, com seu drama pessoal, é mostrada do ponto de vista de Jackie, sua esposa, que rapidamente percebera o poder da imagem televisionada, novidade naquela época, como forma de explorar a comoção nacional causada pela tragédia dos Kennedy. Nunca, talvez, uma imagem, a bala explodindo no crânio do presidente americano, tenha sido tão vista e repetida mundo afora. Inaugurava-se ali, provável, a banalização da imagem como forma de voyeurismo, precursora do que viria a acorrer décadas depois, quando o dedo indicador das redes sociais irá encontrar sua função biológica, como símbolo do olho moderno.

Mas o grande enigma do filme é a construção da personagem de Jacqueline Kennedy (Natalie Portman), ícone pop da cultura americana da década de sessenta, e que se perpetuaria até sua morte, em 1994. Só para ficar em um exemplo, em 1975, Jacqueline Kennedy, então senhora Onassis – havia desbancado nada mais nada menos que Maria Callas! -, fora fotografada nua, numa ilha da Grécia, enquanto tomava sol. A foto girou o mundo na velocidade de um meteoro.

No filme, vemos várias Jackies. A Jackie segura e irônica conduzindo com língua afiada a entrevista dada ao repórter Theodore White, sem perder de vista sua preocupação com a imagem, portanto, com o que iria ser publicado. E vemos uma Jackie abalada com a morte inesperada do marido, presenciando seu posto de primeira-dama sendo-lhe tirado, ainda no avião, quando o corpo do presidente era transportado para Washington. A cena em que Jackie limpa o rosto do sangue e dos pedaços de crânio de John é digna de traduzir o horror de uma tragédia. Ela estava se limpando para ir assistir à posse do novo presidente, Lyndon Johnson, bem ali, quase ao lado do caixão do marido, em pleno voo. Americano não perde tempo, a vida continua, afinal, tempo é dinheiro. Neste doloroso quadro, Jackie, que havia chegado a Dallas como primeira-dama, sai da fatídica cidade como uma simples cidadã, viúva.

E temos ainda a terceira Jackie, em flashbacks, mostrando para a televisão CBS as reformas humanizantes que fizera na Casa Branca, uma Jackie fútil, coquete, mas consciente do seu papel de primeira-dama que colecionava admiração de seus súditos. Vislumbrava-se ali o que seria a viúva de John Kennedy nas próximas décadas, uma mulher que esteve no lugar e no momento certo, e que conseguiu entrar, junto com o marido, para a galeria dos heróis americanos.

O filme retrata quem foi a verdadeira Jackie? Não nos parece ser este o objetivo do filme. Afinal, é difícil humanizar um mito e dar a ele a sua dimensão exata, principalmente quando vivemos nesta terra de fantasias, onde a imagem é que dita as regras. Talvez reste aos espectadores, aqueles que demonstram certa paixão pelos detalhes, irem, após o filme, a um bar qualquer, para discutir que Jackie prefeririam levar para casa. Há várias, ao gosto da escolha de cada um.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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