Fanny e Alexander

Bergman: um encontro consigo mesmo

Por Antônio Roberto Gerin

 O monumental filme FANNY & ALEXANDER (320’), roteiro e direção de Ingmar Bergman, Suécia (1982), é considerado por muitos a obra máxima do diretor sueco. Se olharmos a duração, trezentos e vinte minutos, na sua versão original, podemos bem ter a dimensão da obra. Mas não é a duração que importa. Obras primas têm seu valor intrínseco, não podem ser submetidas apenas a números. Mas, convenhamos. No caso de Fanny & Alexander, o fato de o filme ter longa duração veio permitir a que Bergman esmiuçasse, delicada e demoradamente, as relações humanas dentro de uma perspectiva pessoal. E o pessoal ganha cores fortes quando ocorre um fato inesperado que vem alterar a ordem natural da rotina familiar. Sim, o destino não pode ser traçado a priori, com o rigor da lógica. Sempre haverá a interferência do imponderável. E o imponderável criado por Bergman em Fanny & Alexander dar-lhe-á a oportunidade de entrar em contato com sua infância e expor seus fantasmas e tormentos. É Bergman no olhar nada silencioso do menino Alexander. É o menino Ingmar à mercê de sua imaginação de criança que foge à realidade, por senti-la dolorosa e incompreensível. Sim. Fanny & Alexander é a obra mais pessoal de Bergman.

O filme foi concebido originalmente para a televisão. Além do prólogo e epílogo, a narrativa se desenvolve em quatro episódios. Assim se explica sua longa duração. Mas, antes que o filme fosse para as telinhas suecas, em final de 1983, Bergman lança, ainda em 1982, uma versão editada e reduzida a pouco mais de três horas. Continuou sendo uma obra portentosa e, não à toa, indicada a muitos prêmios. Seis indicações ao Oscar, com quatro premiações, incluindo a de melhor filme estrangeiro. Bergman, apesar da indicação como melhor diretor, não levou a estatueta. Pior para a Academia, não para Bergman, cujo inegável fôlego artístico seria provado mais uma vez, de forma incontestável, neste filme, a que podemos dar feições épicas, se assim for correto para expressarmos a irresistível força dramática que exala da tela, causando-nos angústia e perplexidade. E esta aproximação intensa do espectador em relação ao filme é fortemente estimulada pelos cenários exuberantes, figurinos de encher os olhos, e a fotografia sempre impactante e decisiva de Sven Nykvist. Além, claro, da atuação impecável de todo o elenco, sem exceção. É perceptível. Bergman cuida de cada detalhe como se fosse este seu filme definitivo.

Os irmãos Fanny (Pernilla Allwin) e Alexander (Bertil Guve) nasceram em uma família da alta burguesia de Uppsala, tradicional cidade ao norte de Estocolmo. Temos a matriarca Helena Ekdahl (Gunn Wällgren), viúva e famosa atriz sueca, seus três filhos, o artista Oscar (Allan Edwall), o empresário e pândego Gustav Adolf (Jarl Kulle), e o infeliz professor Carl (Börje Ahlstedt). E os netos, cinco, um deles, Alexander, filho de Oscar e Emilie (Ewa Fröling). Agora Alexander tem onze anos, estamos no final do ano de 1907 e é o momento de se comemorar mais um natal. Tudo são alegrias, festejos, comilanças, abraços e juras de afeto. No meio disso tudo, inevitável, algumas intrigas. Mas, o que importa é o alvoroço familiar em torno da enorme mesa de natal. Ora, vamos sorrir, então! Vamos fazer discursos melodramáticos! Cantar e dançar. Afinal, o curso da vida continuará para todos, na alegria e na tristeza, por isso não precisamos temer em mostrar o que é bom e o que é ruim. E é o que faz Bergman. Como na fábula bíblica, ele também nos serve primeiro o vinho bom, para depois nos intoxicar com o ruim. E logo terminam as festas, termina a primeira parte do filme, termina o vinho bom. Agora vem a segunda parte. E o divisor de águas da estrutura narrativa é a inesperada morte de Oscar, pai da Fanny, e pai do nosso Alexander. É o aviso. O vinho ruim será servido.

O que se seguem são cenas constrangedoras. Algumas, de horror. Emilie, viúva, sentindo-se só, longe da proteção familiar, decide aceitar o pedido de casamento de Vossa Graça, o bispo Edvard Vergérus (Jan Malmsjö). Ele a conquista com a promessa de um amor sólido, desprovido de tentações materiais, baseado na abnegação, na disciplina, nos ritos. Só que ao colocar Emilie e seus filhos, Fanny e Alexander, dentro de sua casa paroquial, uma masmorra disfarçada em lar, Vergérus vai-nos mostrando para onde pode nos levar a submissão doentia a ideias fixas e a preceitos de conduta desprovidos de qualquer contato com a realidade do humano. Ele quer que todos sejamos iguais. Mas nós não somos cópias. Portanto, temos reações diversas, próprias, individuais. Só que, para se evitar a barbárie, ao longo da construção das sociedades, alguns limites foram sendo estabelecidos, delimitados pelo que deveria ser a sólida e inviolável proteção moral. São regras de conduta que teriam que valer para todo mundo. Assim, evitar-se-ia o caos. No entanto, não é o que acontece no dia a dia. Se abrirmos as páginas dos jornais, vamos nos deparar com as exceções morais, essa via permissiva que nos autoriza a fazer o que queremos. E o que ambicionamos. Tudo em nome de sentimentos de plantão e da vil oferta de proteção ao mais fraco. Na verdade, o que a agora indefesa e cambiante moral faz é tão somente atender aos mais íntimos e privados interesses do bispo Vergérus.

Ao assistirmos a esta segunda parte do filme, o que Bergman parece nos mostrar é uma relação de casamento, simplesmente, entre uma mulher, Emilie, e um homem, Vergérus. Só que as agressões são tão descabidas, o perfil humano é tão distorcido, que o casamento fica em segundo plano. O que Bergman vai nos revelar mesmo, através da presença convulsiva de Alexander, é o espanto diante das infinitas possibilidades de que o homem dispõe para fazer valer os seus desvios e praticar as suas maldades. E pior. Praticá-las com convicção.

Acima, o que fizemos foi tentar desenhar o corpo dramático do filme, construído genialmente por Bergman. Cabe-nos agora nos debruçarmos sobre algumas questões gerais, e estas questões, que entendemos ser a base existencial do filme, se voltam, de forma fragmentária, para o ser humano Bergman. Se aceitarmos que Fanny & Alexander é a sua obra mais pessoal, e se de fato Bergman retratou a si mesmo em Alexander, temos que admitir que Bergman foi um menino muito interessante, único, independente e extremamente reativo às representações sociais. E que teria feito da arte a única porta de fuga daquele mundo familiar opressor em que ele estava inserido. Mas, mesmo que Bergman não tivesse sido, em criança, exatamente como ele representa o menino Alexander, não importa. O que ele idealiza para si é uma imagem acabada de um ser humano e de um artista profundamente sensível e transformador. Assim era Alexander. E assim foi Bergman que, sabia ele, desde sempre, não passaria pela vida inutilmente.

A visão que Bergman traz da sua infância, e que escapole ao longo de todo o filme, é, portanto, fragmentária. Do ponto de vista psicológico, não poderia ser diferente. Pois, se fôssemos organizar nossas dores, nossas frustrações, nossas ansiedades, enfim, nosso passado, numa ordem rigidamente concatenada, íntegra e monolítica, talvez não resistíssemos à loucura, afinal, seria muita lucidez para nossa frágil sanidade mental. Por isso, é melhor que nossas verdades surjam em meio ao caos, mesmo que seja um caos ligeiramente organizado. E é assim que Bergman se apresenta no filme.

Primeiro, os fragmentos paternos. Oscar Ekdahl, homem do teatro e das letras, cuidadosamente afetivo, e que entrega aos filhos uma imaginação fértil e saudável. Este é o pai real de Alexander, e o pai artista idealizado por Bergman, portanto, a figura paterna desejada contrapondo-se ao pai severo, moralmente rígido, o pastor que coloca o lar num patamar insuportável de exemplo cristão. Este foi o pai real de Bergman, que tinha no castigo físico o baluarte da edificação moral do filho rebelde e, às vezes, herege. Só que Oscar Ekdahl morre. A ficção morre. O idealizado se vai e fica o pai real, encarnado no pastor Edvard Vergérus. Fica a realidade que pisoteia cruelmente os sonhos.

Os fragmentos maternos se projetam nas várias figuras femininas do filme. A mãe real de Alexander, Emilie Ekdahl, mãe generosa, mas frágil, dependente da força física e moral do marido, e que se torna alvo fácil das convenções sociais. Depois vem Maj (Pernilla August), uma das tantas empregadas na casa da avó, encarregada de cuidar das crianças, em quem Alexander passa a ver a figura protetora, fiel e sexualizada, e sobre quem ele pode ter domínio afetivo, se bem que, às vezes, um domínio perigoso. Por fim, Justina (Harriet Andersson), uma das serviçais na casa do carrasco Vergérus. Ela é encarregada de vigiar os enteados. E, ao mesmo tempo em que compactua com as dores do menino abandonado e injustiçado, não hesita em entregar Alexander para ser castigado pelo bispo. Bergman cria um interessante mosaico de figuras femininas, desenhando uma imagem riquíssima de mulheres fortes, sensuais e elegantes, marca registrada em seus filmes e que fizeram de Bergman um dos maiores desenhistas da alma feminina. Portanto, se bem pensarmos, é muita confusão para a cabeça de um menino que tem nas fantasias a única forma de conviver com tantas dores, angústias e descobertas. Seu mundo é fragmentado; sua realidade, dilacerada.

Outra questão que Bergman trabalha de forma primorosa no filme é o papel da imaginação na formação do artista Bergman. Alexander passa a ver fantasmas. O fantasma hamletiano do pai morto, que acompanha as dores do filho Alexander pela decisão equivocada da mãe em consentir se casar com o odioso Vergérus. Eis o menino Alexander que, para fugir à inaceitável realidade, entrega-se às fantasias, fruto de observações sensíveis dessa mesma realidade que tanto o atormenta. Mas só que em Fanny & Alexander, a imaginação é tratada por Bergman como uma dádiva, um conceito de divindade, de onipresença, de consubstanciação da realidade intolerável. Portanto, a imaginação é um presente divino que se empresta aos artistas, aos escritores e aos músicos, como um consenso universal de que eles precisam da imaginação para fingir, portanto, para mentir. Este é o paradoxo. Mente-se para criar. Só que na visão do bispo, a imaginação é a asa do demônio para conquistar o reino da mentira. Este sempre foi o grande inferno do menino Bergman. Entender que a arte não mente, portanto, ele não merece ser castigada. E para entender esta máxima humana sem que ela fosse carregada de culpas, Bergman precisou fazer muitos filmes, despejando em cada um deles um pouco da compreensão de que ele precisava para entender a sua infância. Até chegar a Fanny & Alexander, quando então todos os fragmentos se juntaram para trazer-lhe a verdade. Ele era um artista, por isso tinha o direito de fantasiar mentiras.

Em suma, juntamente com Cenas de um Casamento (1972), Fanny & Alexander parece-nos ser um dos filmes mais longos de Bergman. Isso nem é mérito, somente um registro, uma vez que Bergman é o cineasta da síntese, do diálogo econômico, das frases sincopadas, fechadas em si mesmas, e tão sonoras quanto marteladas em madeira maciça. Mesmo que seus diálogos se demorem em longos monólogos, será uma demora angustiante, porque necessária, e nunca, portanto, haverá o desperdício do tempo. Por isso, essa prolixidade de cores, figurinos e cenários, de onde saem detalhes de vida humana, e o grande elenco escolhido a dedo, e os tantos figurantes cuja presença tem a verdade do cotidiano, enfim, amalgamando todos esses elementos que constroem o espetáculo filmado, vamos ver mais uma vez Bergman recorrer a seus grandes temas para encapsular artisticamente o tom autobiográfico que ele quis imprimir ao filme, de forma expressiva e corajosa, como se Bergman, finalmente, concordasse em revelar, através do fantástico menino Alexander, a sua identidade como ser verdadeiramente humano. O que dá a Bergman, sem dúvida, a senha para a imortalidade.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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