Era uma vez… em Hollywood

 Por Antônio Roberto Gerin

O cinema acima de tudo!

ERA UMA VEZ… EM HOLLYWOOD (162’), EUA (2019), é mais um filme de Quentin Tarantino, e como não podia ser diferente, também desta vez ansiosamente esperado por todos os que são fãs, ou nem tanto, do diretor. A verdade é que se criou uma grife. A grife Tarantino. Quem já foi assistir a Era uma vez… em Hollywood poderá radiografar suas próprias impressões num espaço de gosto que se quer amplo, onde até os menos entusiasmados estão convidados a comungar da ideia de que a arte se confunde com o artista. É a loucura da mídia, que incensa. É a loucura da estratégia comercial, que quer vender. Nisto não há nada de errado. Afinal, o artista, famoso, serve à sua arte. E para que o jogo continue, acionado pela publicidade, já se anunciou que a grife Tarantino fechará suas portas após o décimo filme. Era uma vez… em Hollywood é o nono. Só resta um!

Enquanto a aposentadoria não chega (se chegar!), Tarantino, que não é nada bobo, aproveitou bem a oportunidade, em Era uma vez… em Hollywood, para ser mais Tarantino do que nunca. Talvez nem tanto pelo que ele tem de mais Tarantino, que são os diálogos superficial e verborragicamente profundos, e o sangue em abundância. Estas duas características da marca Tarantino, desta vez, vêm em doses menores. Para decepção de muitos fãs. É que Tarantino tem um propósito muito claro. Elevar ao máximo aquilo que ele já fez em alguns dos seus filmes anteriores. Dar-nos, pois, a absoluta certeza de que se pode redimir a realidade através do cinema. E este é o ponto forte do filme. Ele pega um fato histórico conhecido e altera o eixo do seu destino. Aliás, ele não esconde o seu maior objetivo. Redimir o próprio cinema! E o faz através da história de Sharon Tate, tragicamente assassinada quando despontava como uma das grandes atrizes de Hollywood. É um Tarantino que pouco conhecemos. Sensível. Nostálgico. E triste. Basta pinçar uma das belas cenas do filme, aquela em que ele coloca Sharon Tate dentro de um cinema, como uma mera espectadora, com os pés sujos à mostra, “meninamente” enganchados sobre o espaldar da poltrona à frente, divertindo-se em assistir ao próprio filme. Anonimamente. Não há nada mais humano do que isto. Uma Sharon Tate desprovida de glamour e endeusamento. É esta carícia despudorada e respeitosa a Sharon Tate e, por tabela, ao cinema, que faz de Tarantino um ícone de si mesmo.

Para conseguir seu objetivo, o de preservar a máscara sagrada do cinema, resgatando seu lado lúdico, e glamouroso, Tarantino precisou redesenhar a tragédia ocorrida no coração de Hollywood, em pleno 9 de agosto de 1969. Tarantino alinhava uma narrativa que é propositadamente frouxa. Às vezes até perigosamente frouxa, colocando em risco a consistência dramática do filme. Ele não está interessado em se ocupar de certas questões, como, por exemplo, o uso da violência como forma de consolidar o poder. Parece que a única coisa que interessa a ele é o final do filme. Tarantino anseia para que tudo passe rápido e chegue ao desenlace. Ele fez o filme para isso! E, ao assistir ao filme, nós acreditamos em Tarantino. Na sua intenção de nos fazer crer que algo diferente acontecerá.

Rick Dalton (Leonardo Di Capprio) é um ator angustiado com o declínio de sua carreira, e está em busca de novas oportunidades de trabalho em Hollywood. Ele mantém uma relação de estreita amizade com seu dublê de longa data, dos tempos em que faziam filmes de faroeste, e Rick precisava de alguém que caísse do cavalo no seu lugar, e esta alma boa é Cliff Booth (Brad Pitt), tão gaiato com a vida quanto leal a seu amigo Rick Dalton.  Apresentados os dilemas hollywoodianos do ator e seu dublê, é hora de juntar ficção e realidade. É quando Rick Dalton fica sabendo que está morando ao lado de um dos mais famosos e badalados cineastas à época, Roman Polanski (Rafal Zawierucha), casado justo com quem? Com Sharon Tate (Margot Hobbie). Pronto. O roteiro está encaixadinho. Agora é só filmar!

Este proposital encontro de vizinhos é a oportunidade que Tarantino precisava para visitar, de forma reverencial, os últimos instantes de Sharon Tate. Sem uma narrativa forte, nem folhetinesca, nem sanguinária, o espectador embarca numa viagem pela história do cinema, sempre querendo saber como ele, Tarantino, lidará com o trágico fim de Sharon Tate. Inclusive, é um risco que Tarantino corre ao colar o resultado final do filme a um fato histórico. O espectador que entra no cinema sem nunca ter ouvido falar do trágico assassinato de Sharon Tate, pode perder o significado último que se quer dar ao filme. Periga ouvir alguém, saindo do cinema, dizer, “não entendi bem a história…”. Não. Não se preocupem. Tarantino é tão amplo, tão pop, tão cinema, que todo mundo, qualquer espectador, cabe nele!

Mas, eis a surpresa! Valendo-se de recursos estéticos de cenas de pastelão e de desenho animado, onde tudo pode, Tarantino constrói uma impressionante alegoria da morte, trazendo a redenção como forma de blindar o cinema das ameaças vindas de suas próprias entranhas. Afinal, querendo ou não, foi Hollywood, com suas promessas de sonhos e sucessos e glórias, quem engendrou a tragédia. Charles Manson fora alijado do convívio dos gloriosos. Restou-lhe, então, destruir aquilo que foi o fruto delicioso de uma época de sonhos e de esperanças, nascido das estruturas sócio-culturais dos anos 1960, e traduzido num singelo gesto de dois dedos em riste, o “paz e amor”.

O que subjaz ao filme, nas suas entrelinhas, é o humor. Aliás, poderoso em Era uma vez… em Hollywood. Tarantino se refugia nele para recontar o que, ele sabe, não pode ser narrado impunemente. Mas, veja. O filme não é apenas uma viagem no tempo, embalsamada por risos e deleites. Ele é o recorte de uma época que mudou sonhos e deu outros rumos na forma de vermos e aceitarmos a realidade. Se Tarantino alterou o recorte histórico, na sua essência, é porque talvez ele queira nos dizer que há possibilidades de se evitar o pior. Deste ponto de vista, podemos dizer que o filme é um lamento sobre nossa incapacidade de engendrarmos o nosso destino. Se não conseguimos criar nosso próprio destino, só nos resta, então, nos vingarmos dele. Usando, lógico, o cinema para isso!

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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