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Somos as escolhas que fazemos

Por Antônio Roberto Gerin

Em AS PONTES DE MADISON (135’), direção de Clint Eastwood, EUA (1995), vamos nos deparar com uma questão básica que nos aflige toda vez que iniciamos uma relação de afeto com alguém. Estamos mesmo fazendo a escolha certa? Pior é quando se trata de deixar alguém para assumir outro alguém. Aí a dúvida nos consome de vez. Esta é a problemática que As Pontes de Madison nos coloca. Escancara, aliás. O risco da troca. Fica-nos a impressão de que este alguém que acabamos de conhecer sempre vai nos parecer instável e imprevisível, por mais que recebamos sucessivas provas de amor. E nem se trata de saber se a pessoa nos ama. A questão é: até onde este amor resistirá? Na alegria, com certeza. E na tristeza? O filme não responde a estas perguntas. Ele apenas traz alguns pontos de contato com a realidade. O encontro entre os dois amantes é rápido o suficiente para não servir de laboratório para o amor. Falamos daquele amor que temos que renovar todos os dias, incansavelmente, anos a fio! Paradoxalmente, o que vamos ver na tela é um amor inesquecível, mas vivido em apenas quatro dias, portanto, passageiro. Opa! Se é inesquecível, não pode ser passageiro! O amor entre Francesca e Robert sobreviveu até eles morrerem! Por mais de vinte anos! Mesmo que nunca mais tenham se visto! Este nos parece ser o sabor peculiar do filme. E sua contradição. Para ser inesquecível, o amor, na falta da realidade do cotidiano, teve que acontecer na esfera da fantasia. Nesta perspectiva, podemos dizer que As Pontes de Madison é uma história de amor que não se concluiu. O amor simplesmente ficou ali, à espera dos amantes. Até que a morte os separasse.

Robert Kincaid é um fotógrafo da National Geographic que vai para o interior dos Estados Unidos, Iwoa, com a missão de fotografar as pontes cobertas de Madison. Perdido, acaba chegando à fazenda dos Johnsons. E ele chega bem no dia em que o marido e os dois filhos tinham viajado, por quatro dias, para participar de uma feira de gado. O charmoso forasteiro (Clint Eastwood) vai encontrar apenas a mulher, Francesca (Maryl Streep), para quem pede as informações de que precisa. Naquela época, 1967, não existia Google Maps. Dar informações sobre estradas, encruzilhadas e tal era um tanto complicado. Francesca resolveu o dilema de forma diferente. Calçou os sapatos e foi junto com Clint Eastwood, quer dizer, Robert Kincaid, procurar a tal ponte.

Caímos no erro de muitas vezes acharmos que uma relação está se esgotando em função de o comportamento do outro ser inadequado, culpado, insuficiente, enfim, o outro é responsabilizado pela nossa infelicidade e insatisfações. Se atentarmos para o jogo de equilíbrio entre as forças dramáticas de As Pontes de Madison, vamos perceber que o marido de Francesca é um sujeito normal, pregado naquela fazenda herdada de sua família que sempre esteve ali, há mais de cem anos. Ele se mostra amoroso, dedicado, acredita que sua função patriarcal é prover a família, e isto ele faz muito bem. E, se quiserem, podem conferir o relatório. Bebe? Não. Fuma? Não. Bate na mulher? Não. Deixa ela passar fome? Não. Então? Como Meryl Streep vai traduzir a infelicidade de Francesca? Aliás, de onde vem esta infelicidade?

Ao se casar, Francesca perdeu o sentido de liberdade. Foi violentamente sugada pelo sistema matrimonial. Tirada de Bari, Itália, no auge dos seus sonhos, enfiou-se no interior americano, numa tal Madison. Fica claro o espanto dela quando Robert Kincaid, logo nos primeiros minutos em que se conheceram, sabendo que Francesca nascera em Bari, relata sua passagem por aquela cidade. Da janela do trem achou a cidade linda. Então, resolveu descer e por lá ficou vários dias. Francesca então pergunta. Você saltou do trem só por que achou a cidade bonita? Sim, responde Robert. É exatamente este o sentido de liberdade que Francesca carrega dentro de si.

Neste cenário, vamos ver que, com a chegada de Robert à fazenda, interrompe-se, para Francesca, a dura realidade. Francesca é uma mulher presa às cruéis rotinas de esposa e mãe, mulher que um dia teve sonhos que precisou engavetar. Na presença do forasteiro, parece que ela os tira momentaneamente da gaveta. Robert tenta consolá-la. Diz. “Os velhos sonhos eram bons sonhos, não se realizaram, mas foi bom tê-los.” Caro espectador, sonho é para ser sonhado, porque quando realizado, já não é mais sonho, é a realidade. A partir do momento que Francesca fosse embora com o forasteiro, terminariam os sonhos dos quatro dias e começaria uma nova realidade. Francesca logo percebera que tudo poderia ser apenas uma troca. De realidades! Valeria a pena? O filme também não responde a esta pergunta. Mesmo que ela esteja diante de um homem sensível, que declama poesias, vê cores ao amanhecer, vê cores ao entardecer, homem divertido, espirituoso, cozinha e lava, adora blues… O que uma mulher casada, acorrentada às convenções sociais, vai fazer com um homem desses? Com certeza, terá que enfiá-lo dentro de uma realidade. E dentro da dura realidade, ver cores ao amanhecer e ver cores ao entardecer não se encaixa no paradigma dos pequenos sofrimentos cotidianos. E mais. O que fazer com a realidade anterior? Afinal, terá que abandonar marido e filhos. Pobre Francesca!

Agora, antes de finalizar, vamos falar de Meryl Streep.

Mais do que apenas representar uma mulher real ou fictícia, entendemos que o mais importante é dar um sentido humano ao que se quer representar. Há uma Madame Bovary, uma Marguerite Gautier (A Dama das Camélias), uma Ana Karenina, uma Blanche Dubois, ou mesmo uma Maria Callas, uma Marylin Monroe, uma Edith Piaff, ou até uma Maria José, catadora de lixo, ou uma Sebastiana, vendedora de pamonha, mãe de cinco filhos, sem marido, o que for, no cinema, estas mulheres fantásticas só terão sentido se a atriz que as representar der a dimensão exata do que imaginamos para cada uma delas. E esta dimensão não está só no destino que a vida traçou para cada uma. Está em como elas se comportam como mulher. Sem os disfarces. E aqui, pois, convido a todos a tirarem o chapéu para Meryl Streep. Uma aula de feminino, é o que ela nos dá. Infelizmente, Clint Eastwood, o homem, ficou no meio do caminho. Não nos apresenta com clareza o masculino. Fica-nos parecendo, neste caso, que o que ele tem a oferecer é apenas a casca. É pouco.

Em suma. O que nos parece ser um sonho pode, na verdade, ser uma oportunidade. E são das oportunidades que nascem as escolhas. E escolher é correr riscos. Este é o preço a se pagar. E correr riscos é enfiar o pé na jaca da realidade! Agora, podemos escolher permanecer no mundo dos sonhos. Mesmo que isto possa nos parecer um ato de covardia. Se lembrarmos que sonhar é nos convidar para iniciar uma nova realidade, podemos então dizer que permanecer no sonho é renunciarmos a dar o passo. E é disso que o filme quer falar pela voz amargurada de Francesca. Somos as escolhas que fazemos.

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Dor

Por Alex Ribeiro

A casa está escura
Não se ouvem os sons noturnos
Os olhos de poeta continuam abertos
Como a perseguir o invisível

A dor se manifesta em silêncio
E essa é a única companhia
Tirando o sono que tanto anseia
Levando os sonhos para longe de si

A vida vai se esvaindo pelos minutos
A boca vai perdendo os sabores
O músculo já perdeu o tônus
E o coração pede sossego.

Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Resenhas, Teatro

Por Alex Ribeiro

Otelo, o Mouro de Veneza é uma peça de William Shakespeare, escrita por volta de 1604. É uma das suas grandes tragédias e, consequentemente, uma obra prima da literatura teatral. Otelo traz para o palco a história de um militar recém-empossado general, tido como o maior combatente de Veneza na guerra contra os otomanos. Por causa do seu sucesso militar, nosso herói é enviado à ilha de Chipre para defendê-la de um possível grande ataque. Recém-casado com Desdêmona, Otelo chega à Chipre para cumprir sua missão e se tornar governador da ilha. Desfruta, agora, do mais alto posto militar e de grande prestigio político. Somado a isso, seu casamento pode representar o seu ingresso na elite aristocrática de Veneza, já que sua linda esposa é filha de um dos senadores daquela bela cidade. Neste panorama, Otelo, podemos dizer, estaria no auge do sucesso pessoal. Tal fato, claro, não passaria incólume aos olhares invejosos de Veneza. E é ali, no ninho das serpentes, que nos deparamos com uma das figuras mais vis do teatro ocidental, o alferes Iago. Tomado de ódio e inveja, Iago está determinado a destruir Otelo. Este sentimento tomou conta dele desde o momento em que o general se recusara a dar-lhe o título de tenente. Otelo preferiu o intelectual Cassio, recusando-se a empossar o vil e experiente militar Iago. Mas como atingir tão íntegro e hercúleo general? Não seria possível Iago vencer Otelo, seja num combate físico, seja na oralidade. Ah, mas o nosso herói também traz consigo o seu calcanhar de Aquiles! A paixão, esta musa avassaladora que não poupa o mais fraco e, tampouco, o mais forte dos homens. E Otelo não é um semideus, como Hércules. Otelo é tão humano quanto qualquer outro veneziano residente em Chipre. E é na sua paixão por Desdêmona que nosso herói vai encontrar sua ruína. E o pior. Iago já sabe como atacar o nobre guerreiro desde o primeiro momento em que se comprometeu, consigo mesmo, a implodir Otelo. A tragédia traça, ardilosamente, o seu curso.

Após se casar com Desdêmona, e tendo sido chamado ao senado de Veneza, onde seria comunicada a sua partida para Chipre, Otelo se depara com Brabantio, que quer explicações sobre o casamento do Mouro com sua filha Desdêmona. Sendo a questão militar mais importante que o conflito familiar, Otelo, seguido de sua esposa, parte, com seus subordinados, para Chipre. Dentre eles, estão dois militares de prestigio, Cassio, o tenente, e Iago, o Alferes e sua esposa. Acompanha-os, ainda, a dama de companhia de Desdêmona, Emília, e o gentil homem Rodrigo. Aqui estão os personagens que farão a trama shakespeariana acontecer.

Já em Chipre, Iago começa a manipular Rodrigo, fazendo com que este, apaixonado por Desdêmona, entre em conflito com Cassio. O intuito da  manipulação é usar Rodrigo para deixar Cassio em má posição diante de Otelo, para depois acusar o tenente de ter um caso amoroso com a mulher do general. E aos poucos, vai criando toda uma estrutura de acontecimentos que vão servir para provar, mesmo que de maneira frágil, o adultério de Desdêmona. Iago pretende, com isso, se vingar de Otelo por não ter-lhe confiado o cargo de tenente, e também por desconfiar que desafeto tenha se deitado com sua mulher.

Otelo, que não precisou combater os otomanos, devido ao naufrágio das esquadras inimigas, permite que Chipre entre em festa, tanto pela paz quanto pelo seu casamento com Desdêmona. Ele está perdidamente apaixonado e recebe dela uma paixão de mesma intensidade. Tudo parece favorável para que enfim esse amor se solidifique e que o nosso guerreiro errante possa, enfim, ter um lugar para si, seja um lar naquelas terras estrangeiras, seja um amor de uma bela e aristocrática mulher. Mas, talvez seja a vida breve daquela relação, ainda sustentada por ideais de paixão, que abre as fissuras trágicas de que Iago se favorece. A paixão, poderá ela alquebrar a integridade de tal homem? Iago aposta todas as suas fichas nisso.

Seria leviano pensar que Otelo fora apenas um homem tolo, capaz de acreditar nas mentiras de um homem vil como Iago. O alferes era bem quisto por toda a sociedade veneziana, homem a quem dedicavam os adjetivos de honesto, confiável, comprometido e outros da mesma linha. Mais leviano ainda seria dizer que Otelo era um reles ciumento. Em toda a memória de Desdêmona, não havia ele ainda demonstrado quaisquer sinais de ciúmes. Confiava cegamente no amor da sua jovem esposa. Então, quais foram as razões que levaram Otelo a se perder em sentimento tão desastroso quanto o ciúme?

O racismo, talvez? Eis outro ponto que pode nos servir para entender o nosso herói, mas não contempla toda a questão. A diferença étnica de Otelo só faz deixar mais sublinhada a diferença entre ele e aqueles demais homens. Alcançar todo o prestígio que tinha, mesmo sendo ele quem era, é um sinal de que suas qualidades estavam acima de qualquer questionamento preconceituoso que pudesse surgir. Tendo isso como circunstância dada, o que nos resta é olharmos para o grandioso e admirável Otelo frente a um mesquinho Iago. E é a partir da mesquinharia de Iago que podemos entender o poder destrutivo do ódio e da inveja. A mesquinharia derrubará a integridade.

Otelo se deixa envolver nas estórias de Iago, que insinua um amor secreto entre Desdêmona e Cassio. É a partir de um lenço perdido pela dama que Iago forja sua prova, ao deixá-lo para que Cassio o encontre e dê de presente a outra mulher. Na cabeça do já fragilizado Otelo, tudo fazia sentido. Mesmo que fosse um febril sentido. A verdade só se revela depois que Desdêmona já havia sido assassinada pelo homem a quem dedicou seu amor. E, de novo lúcido, Otelo prefere a morte a ter que conviver com o erro trágico que jogou por terra toda a sua trajetória de vida. Prefere a morte a ter que admitir ter destruído aquela a quem mais dedicou amor em sua vida, mesmo que por pouco tempo.

Otelo nos faz pensar, assim como outras tragédias de Shakespeare, sobre nossas relações e nossas fragilidades humanas. Shakespeare muito nos presenteou com isso, refletindo em suas tragédias o que seria o homem dos próximos séculos, no ocidente. Um vertedouro de paixões, que por sua vez causariam as mais inomináveis tragédias. Mas, e Iago? O que representa Iago para nós, hoje? Enquanto Otelo é a integridade que não resiste à paixão, Iago nos parece ser nosso instinto primitivo de destruição. E esta sensação está mais presente do que nunca nas relações abusivas, das mais diversas. Também no pretenso bom empregador que faz do seu empregado um escravo. No homem ensandecido que comete feminicídio. Nos mesquinhos comportamentos discriminatórios, racistas, machistas, homofóbicos. Enfim, temos muitos Iagos capazes de despirem suas máscaras honestas para alimentarem nossas tragédias contemporâneas. Até mesmo aqueles que, como Iago, pregam a segurança e o bem de todos, cometem diariamente o democracídio. Estes, infelizmente, fazem de nós os seus Otelos, enquanto assistimos a tudo, inertes. Sim, a omissão pode ser a nossa tragédia.

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