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Sonho transformado em pesadelo

Por Antônio Roberto Gerin

Chapetuba Futebol Clube foi a primeira peça teatral escrita por Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), em 1959, levada ao palco, no mesmo ano, pelo Teatro de Arena, com direção de Augusto Boal. A montagem vem logo após o grande sucesso, em 1958, do icônico texto de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam black-tie, que traz para discussão a realidade sócio-política brasileira, ao colocar nos palcos o cidadão comum que se levanta pela manhã preocupado tão somente com o seu ganha-pão. Vianinha, nome carinhoso adotado pelo pessoal do teatro, por ser ele filho do grande ator e diretor Oduvaldo Viana, pois Vianinha teria uma carreira artística ao mesmo tempo meteórica e curta. Vive sua arte em um dos piores momentos políticos do Brasil, sob a ditadura militar de 1964, que viria censurar vários de seus textos. Alguns deles, o próprio dramaturgo não viveria para vê-los encenados, inclusive sua grande obra, finalizada no leito de morte, Rasga Coração, imediatamente censurada. Crítico, inquieto, intelectualmente versátil, deixa uma obra forte e seminal, de cunho humano e social, inclusive na televisão, com o sucesso, em 1973, de A Grande Família, pela Rede Globo, série esta que seria recriada, com grande sucesso, ao longo de décadas. Mas é o Vianinha político, ciente do seu papel social como artista, que sobrevive nas suas obras.

O texto é dividido em três atos, que se passam, na sequência, durante o dia, à noite, e o último ato se encerra no dia seguinte, nos momentos finais do jogo decisivo entre Chapetuba e Saboeiro. É o campeonato que está em jogo e este é o ponto de atrito que gerará as tensões trazidas de forma hábil, pelo dramaturgo, na boca de suas personagens. São onze os jogadores, representados, evidente, para efeito de condensação, por apenas seis, Bila, Cafuné, Durval, Maranhão, Paulo e Zito. E, além de Fina, a dona da pensão, não poderiam faltar os cartolas, a alma dos conflitos e maracutaias, desde sempre, na história do futebol, aqui e acolá.

As realidades pessoais se entrelaçam numa realidade supra, o jogo decisivo de suas vidas, que poderá levá-los aos grandes estádios do país, com seus sonhos de Flamengo e Corinthians, ou ao temido anonimato. São, pois, estas tensões geradas de véspera que movem a dramaturgia do texto, centrada, como já dito, no grande confronto futebolístico que definirá o futuro dos jogadores. Mesmo que Vianinha tenha baseado a construção pessoal e social das personagens-jogadores dentro da realidade da década de 1950, mesmo passadas várias décadas, em que o futebol tornou-se um esporte cada vez mais milionário, atraindo também os filhos das classes média e alta, não podemos cair no engano de dizer que o texto é datado. Pelo contrário. A pressão por resultados e as incertezas quanto ao futuro do homem atleta são as mesmas. O futebol daqueles dias e dos dias de hoje traz dentro de sua organização o massacre emocional, com características medievalescas, onde o homem tem seu valor medido pelos resultados que produz. A ascensão e a queda formam as duas faces da mesma medalha. Esta é a grande fonte de angústias dos esportistas, e Vianinha soube explorar esta condição existencial nas personagens, dando a cada uma delas, com sua história e particularidades, a respectiva vazão.

Os seis jogadores que transitam pelas cenas trazem, cada um deles, a representatividade das angústias e ansiedades ante o jogo decisivo, do qual serão os protagonistas, na derrota ou na vitória. É o Zito, que tem a expectativa do nascimento do filho bem no dia do jogo; é o Bila, goleiro reserva de Maranhão, que terá sua oportunidade de mostrar o seu valor, colocando-se a um passo da glória ou do fracasso; é o próprio Maranhão, que se deixa vender sua honra para os cartolas, simulando uma contusão; é Durval, jogador veterano, que ainda sonha o sonho impossível de voltar a jogar no Flamengo, e que se entrega à bebida como lenitivo para suas angústias de jogador decadente; é Paulo, o jogador classe média, cuja trajetória é construída pela imprensa, sem o respectivo desempenho em campo; e Cafuné, que apresenta traços de insegurança, que confunde seu papel de protagonista na grande final com o mundo ameaçador que o cerca. Está, assim, feita a autópsia pessoal e socioeconômica dos principais jogadores do Chapetuba Futebol Clube.

Numa linguagem simples, pontuada por intenções e reticências, presa às idiossincrasias e aos costumes de um tempo e de um lugar, Vianinha se vale do futebol como fonte para discussões maiores, mostrando, com sua sensibilidade, o homem como um instrumento de algo que está além de sua capacidade de compreensão, como se cada um de nós viesse para esta vida para cumprir um papel desenhado por algum estranho, de quem pouco sabemos, mas que nos ensinou a nos resignarmos, sem, contudo, ter-nos tirado a capacidade de sentir e de nos emocionarmos, o que faz de nós feras enjauladas, incompreensíveis em seus movimentos desconectados com um mundo que gira ferozmente, alheio ao que somos e queremos. Não há como eliminar de nós a percepção de que somos títeres, e esta consciência de pequenez e inutilidade nos lança num poço de ansiedades e angústias. Vianinha, enfim, ambienta a realidade existencial do homem num campo de futebol (assunto raro na nossa literatura), como poderia ter sido numa fábrica, ou em milhares de outras situações sociais que misturam a vontade dos homens numa panela de pressão em constante ponto de erupção. Enquanto não explodimos, vamos guardando nossos estilhaços com o nosso silêncio.

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Por Jackson Melo

Por muito tempo
O amor nos conduziu
Juntos, dois lados
Totalmente opostos
De mãos dadas
Por um lindo caminho

Mas talvez o meu amor
Não seja o bastante
Pra saciar as tuas espectativas
Talvez os meu sonhos
Não se casem com os teus
Pra se tornarem nossos
Talvez nós dois
Não fomos feitos
Pra nós dois…

Sei que minhas riquezas
Não são muitas
Talvez não seja eu
Digno de dizer que tenha tal coisa
Mas, entrego tudo que me resta
Pra não perder este sorriso teu

O coração pressente o fim
E faz o último pedido
Que me arranque este tormento
E que me leve embora
Até meu último suspiro
Suspiro de amor.

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Por Geraldo Lima

O Comandante mandou que ele fosse verificar se havia algum ser entranhado naquele breu. Mandou-o sem o auxílio de nenhuma luz, como se ele tivesse algum parentesco com as criaturas que enxergam nas trevas mais densas. Como foi o Comandante que mandou, o soldado obedeceu. Antes, porém, passou-lhe pela cabeça indagar-lhe (mais por causa do medo que o aterrava) por que havia escolhido exatamente ele, um medroso confesso. As razões de tal escolha ficariam, como podem supor, ocultas para sempre. Imaginava, no entanto, que havia na escolha do Comandante um quê de maldade: há dias ele vinha notando que seu jeito titubeante lhe despertava impulsos sádicos. Esses impulsos, num crescendo, haviam chegado às raias da tortura psicológica. Para seu pavor, a situação ia piorando cada vez mais. Dava bem para prever a que nível chegaria essa escalada de maldade explícita: em breve, culminaria numa sessão de tortura física diante de todos. E, como se tratava do Comandante, ninguém, absolutamente ninguém, faria nada para contê-lo. No escuro, tateando a esmo, o soldado foi em busca do ser que dera leves sinais de rondar por ali, talvez à espreita de alguma caça. Esses sinais, ouvidos pelo Comandante, eram ora o crepitar de capim sendo esmagado por patas ou por pés (supondo, nesse caso, tratar-se de um humano), ora o estalido de um galho sendo quebrado, ora uma espécie de rosnado ou latido, ora um seixo sendo deslocado pela ação de um chute acidental, ora a respiração ofegante de quem age sob uma tensão infernal… Ele não tinha ouvido ruído algum, mas o Comandante, com sua audição aguçadíssima, afirmara ter ouvido mais de uma vez. Vem dali, ó, é só prestar atenção que vocês escutam. A impressão que dava era esta: exceto o Comandante, ninguém mais da tropa tinha ouvido ruído algum, fosse do que fosse. Mas quem teria coragem de contestar o Comandante? Quem teria coragem de chegar diante dele e lhe dizer sem vacilar: Comandante, o senhor se enganou, isso aí não deve ser nada, são apenas ruídos comuns na noite, sons dilatados pelo grande silêncio que costuma reinar a essa hora. Quem teria coragem de dizer algo assim, tão afrontoso? Ninguém ousaria tanto, pois ninguém queria levar um tiro nas fuças e ser deixado ali, apodrecendo ao relento. Com um pouco de alívio, o soldado deu-se conta de que a sua cor escura lhe servia muito bem de camuflagem naquele momento. Mesmo assim, o medo persistia. Galgava-lhe as pernas, fazendo-as tremer, e oprimia-lhe a mente, obrigando-a a parir imagens assustadoras diante dos seus olhos. Porém, era só isso. O ser real, autor daqueles supostos ruídos que incomodaram o Comandante, até agora não tinha se materializado. Ele estava ali, no meio do mato coberto pelo breu, e não ouvia ruído estranho algum. Então, que espécie de bicho seria aquele que estava rondando o acampamento? Seria mesmo um bicho? Avançou mais para dentro da noite tenebrosa, mesmo porque não havia como recuar. Caso recuasse, sofreria, sem dúvida alguma, um castigo severo, do qual, caso sobrevivesse, não se esqueceria jamais. De repente, numa brusca alteração de ânimo, o soldado sentiu vontade de topar com a criatura que estava lhe causando todo aquele transtorno. No meio do escuro aterrador, sem arma alguma (o Comandante quis que ele fosse assim, de mãos limpas, de peito aberto), cresceu, agigantou-se, perdeu a noção de perigo, e a sensação de medo, que antes quase o travava, transmudou-se em algo que estava na fronteira entre a insanidade e a bravura. Gritou em desafio: Quem está aí apareça agora! Eu não tenho medo de você! Eu não tenho medo de nada! Apareça aqui na minha frente. Anda, miserável, apareça! Esperou alguns segundos. Só dava pra ouvir a própria respiração descontrolada e o coração batendo fora do peito. Um calafrio percorreu o seu corpo de cima abaixo. Não sabia mais se era por coragem ou medo, mas continuou a desafiar o ser que, com seus ruídos tão sutis, praticamente imperceptíveis aos demais, havia chegado aos ouvidos do Comandante. Os sensíveis ouvidos do Comandante! O soldado não sabe até hoje se saiu daquele breu com as próprias pernas ou se os rapazes, obedecendo a ordens superiores, foram lá e o arrastaram de volta ao acampamento. Deu por si diante do Comandante, e todo o seu ser estava tomado de ira e desobediência. Era o Comandante a criatura que ele desafiava agora. Não tenho mais medo de você!, gritava alucinado. Eu não tenho mais medo de porra alguma! Os lábios grossos tremiam enquanto ele rangia os dentes com ódio incontido. Quando sentiu na cara os dois tapas dados pelo Comandante, para que voltasse ao normal, a fera que havia se apossado dele nas trevas cravou as garras no pescoço do superior – seu pescoço branco e fino – e só não o matou porque centenas de mãos arrancaram-nas à força. Depois, em meio a grande confusão, jogaram-no de volta ao escuro aos berros: Vai embora daqui! Anda, cara, vai embora! Fuja, tá esperando o quê?! Enquanto se embrenhava no mato e na noite, numa fuga desesperada, o soldado ouvia ainda as vozes dos companheiros enxotando-o feito um animal perigoso e imprevisível.

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista. Conto publicado, originalmente, no livro Uma mulher à beira do caminho [Editora Patuá].