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Por Alex Ribeiro

O Jardim das Cerejeiras foi a última peça escrita por Anton Tchékhov, entre 1903 e 1904, pouco tempo antes que o autor viesse a falecer, em julho de 1904. É uma peça que traz o espectador/leitor para um naturalismo surpreendente.

É um desafio para atores e diretores a montagem de tal espetáculo, pois, submersa nas atitudes e palavras triviais dos personagens, a peça contém um universo riquíssimo de força dramática, de dores emocionais profundas e de intenções veladas. É preciso estudar a fundo o subtexto, como sugere Stanislavski, o primeiro a atingir o potencial dos textos dramáticos de Tchékhov, com o Teatro de Arte de Moscou.

O autor nos leva para um lugar que nos traz o sentimento de sermos íntimos conhecidos da família proprietária do jardim das cerejeiras, habituando-nos às manias de cada um dos tão humanos personagens. Imersos no ambiente retratado na peça, é como se estivéssemos sentados diante das cerejeiras, vendo o cotidiano da família decadente de Liuba, dama falida, dona do jardim, que agora está hipotecado. Não há nada de fantástico na vida dos personagens que ali vivem, tudo é dolorosamente real.

O interessante desfecho da peça, isto é, o que vem a ocorrer com o criado ancião Firs, parece aquilo que Tchékhov imaginava para sua morte, já que ele sofria de tuberculose e sua vida estava perto do fim. No último suspiro, Firs se declara um “vale-nada”, ou, em algumas traduções, “um inútil”. Seria uma leitura que o autor fazia de quão efêmera é a vida? Essa sensação fica latente em cada um dos personagens, consumidos por seus pequenos dramas pessoais, e talvez isso seja o que leva o texto (às suas enormes dimensões.) a dimensões tão profundas.

Os dois irmãos, e proprietários do jardim, Liuba e Gaiév, insistem em viver como se não estivessem falidos e, nutridos de uma falsa esperança, se agarram à possibilidade de que tudo vai se resolver magicamente e, assim, vão continuar a viver como sempre viveram no passado. O apego aos modos de vida que já não lhes pertence mais e a insistência em não ouvir os conselhos que lhes são dados à respeito do problema da hipoteca fazem com que a propriedade vá a leilão.

Grandes peças sempre nos fazem refletir sobre nós mesmos, seja como sujeito de uma sociedade e nossa relação com a mesma, seja a maneira como lidamos com nossas próprias vidas. Nessa peça, inúmeras reflexões à cerca de nós mesmos poderiam ser feitas. Mas um exemplo contundente é sobre o momento político pelo qual o país passa, com perdas de direitos que a duras penas foram conquistados. A apatia diante do que vem acontecendo é um preço caro a se pagar. Liuba e família já mostraram onde pode nos levar a negligência. Corremos o risco de ter que vender nossa própria cidadania.

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Quando o passado nos atormenta

Por Antônio Roberto Gerin

 O filme A PAIXÃO DE ANA (101’), direção de Ingmar Bergman, Suécia (1969), nos coloca diante de um dos grandes dilemas humanos, qual seja, a necessidade (e a dificuldade) de expressarmos o que sentimos, de trocarmos experiências com outras pessoas e, acima de tudo, de nos sentirmos próximos e seguros na companhia de alguém. Trata este filme, simplesmente, das relações. Mas que relações? De amizade? De afeto? Sexo? Negócios, o quê? Todas. Desde que duas pessoas se encontrem e se comprometam, reciprocamente, a dividir algo no cotidiano, está estabelecida a relação. Agora, quais serão as consequências dessa aproximação, aí já é outra história. E essa é a história que o filme vai nos contar.

O filme A Paixão de Ana, como o nome já revela, traz a paixão de uma mulher por um homem. Ou dois? Espera! Uma coisa de cada vez. Aqui, no recorte do filme, estamos falando de uma relação de amor entre duas pessoas para lá de adultas, portanto, que já trazem para a nova relação um histórico de vida, quer dizer, outros amores.

Andreas é um divorciado que se isolou numa ilha para lamber as suas dores de divorciado. Pouco fala a respeito, pouco se sabe da sua relação anterior. Mas nem precisa. É um homem solitário, disponível e arredio. Contraditório, portanto. Certo dia, uma tal de Ana (a sempre maravilhosa Liv Ullmann) aparece em sua casa pedindo para usar o telefone. Gentilmente ele cede. E, disponível, escuta a conversa da moça. E para piorar, transtornada com a conversa ao telefone, ela esquece a bolsa na casa de Andreas. Ele, mais uma vez disponível, vasculha a bolsa da moça e encontra a última carta que o ex-marido enviara para ela. E, novamente disponível, Andreas lê a carta alheia. E descobre que a relação de Ana com o ex-marido morto era para lá de desconfortável. Clamava por rompimento. O nome do ex-marido? Andreas.

Max Von Sydow, em mais uma atuação impecável, é o nome do ator que Bergman escolheu para interpretar o personagem Andreas. Prestem atenção! Não é o Andreas ex-marido morto. É o Andreas divorciado, que veio se isolar na ilha. Portanto, eis Ana às voltas com os seus dois Andreas, simbolizando a dificuldade de se livrar do passado, do Andreas antigo, e de se entregar ao presente, ao Andreas atual. Maravilhosamente, é desta dificuldade de nos movimentarmos, de elaborarmos o que aconteceu e de nos disponibilizarmos para a próxima relação que trata o filme. Será que o Andreas atual herdará os conflitos do Andreas antigo? Caro espectador, quem somos nós senão formiguinhas, talvez fadados a carregar, vida afora, nossas dores emocionais? Ou existenciais, para sermos um pouco mais amplos?

Esta é a questão. Vamos acumulando dores, elas passam a nos pertencer, e como não conseguimos nos livrar delas, somos obrigados a dividi-las com o outro, com o próximo com quem vamos nos relacionar. Será que o outro vai aceitar? E você? Vai acolher as dores do outro? Essa reciprocidade nos parece cruel. Ao não conseguir se livrar dos seus fantasmas, a relação entre Ana e Andreas, o atual, vai se encaminhando para mais um desastre.

Ingmar Bergman utiliza-se do close para deixar escapar para o espectador, de uma forma até invasiva, os tormentos de suas personagens.  Diria que Bergman leva a técnica do close ao extremo, como se, ao fechar um pouquinho mais a câmera, ele quisesse cair diretamente dentro da alma da personagem. E consegue. O que faz de A Paixão de Ana um filme para se ver com muita atenção e colocar em uso uma ferramenta que o espectador tem à sua disposição. A sensibilidade.

Para nos ajudar a despertar nossos sentidos, temos a magistral fotografia de Sven Nykvist. Aqui, em A Paixão de Ana, com sua fotografia poderosa e multicolorida – ah, vermelhos! -, Nykvist está mais inspirado do que nunca. Prestem atenção nas sombras, nas luzes brancas, nas vibrações de cores em tons entre claros e escuros. A título de exemplo, e para fins de aguçar a curiosidade do espectador, vamos ficar com uma única cena fotográfica. Aliás, duas!

Quase ao final do filme, há a cena da briga do casal.  Bergman contrasta dolorosamente os olhos azuis de Liv Ullmann com o vermelho-sangue do seu lenço amarrado à sua cabeça. Imperdível! Depois vem a cena seguinte, após a briga violenta, quando o mesmo lenço vermelho, agora caído ao chão, é transformado, simbolicamente, no sangue que podia ter sido derramado quando Andreas tenta acertar Ana com um machado. Uma pequena pincelada de sangue sobre o branco da neve!

A Paixão de Ana é um daqueles filmes de Bergman que teve pouca divulgação comercial, mas que não o faz menos brilhante e nos leva a compará-lo, em arte e emoção, com os melhores trabalhos da filmografia do diretor. A arte não está diretamente ligada ao comércio, como se fosse uma garrafa de refrigerante. Pode não ser vendida, nem precisa ser consumida. Mas, enquanto arte, sobreviverá para o deleite de alguém.

Ao nos brindar com mais uma narrativa sobre as relações humanas, envolvendo não só o tumultuado encontro entre um homem e uma mulher, mas principalmente revelando como reagimos em relação a nós mesmos, o que irá, com certeza, afetar o outro, Bergman nos faz ver, com crueza, que nossos comportamentos perpassam por um universo de energias produzidas fora do nosso controle e vontade. É como se navegássemos à deriva, sem saber o que nos espera atrás da próxima onda. Tendemos a esperar sempre pelo trágico. E este é justo o mistério que nos envolve. E nos atormenta. A grande capacidade que temos de fazermo-nos vítimas de nós mesmos. Vitimando, com isto, o outro.

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