Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Poesia

Por Alex Ribeiro

No fim o que restou?

Sentou desolado na sarjeta
Seu espírito parecia dilacerado
Algo que se havia furtado
Que deixara um vazio sem nome

Nunca em toda sua vida pensara
No que lhe ocorrera naquela noite
Esperava de todos uma pedra
Mas o que houve o deixou perturbado

É fácil pensar que seu inimigo
Munido de injúrias e com a bile atacada
Soltasse contra ele dardos
Envenenados de inveja e asco

Aguardava que a amante,
Mulher a qual abandonara na cama,
O difamasse das botinas ao chapéu,
Com a boca salivando ciúmes

Mas seu amigo?
Ele que acompanhara suas dores
Que perambulara pelos bares consigo
Encharcando sua alma?

Esperava que sua mãe lhe lavasse a cara
Que seu irmão o surrasse na rua
Que sua mulher lhe enfeitasse os cornos
Mas nunca, nem em sonho mal sonhado,
A traição de um amigo.

E no íntimo de sua desolação
Na mais profunda indignidade
Só lhe sobrou, desamparado,
O abraço do cachorro.

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Por Leivison Silva

À Margem da Vida (The Glass Menagerie, no original) é uma peça escrita pelo dramaturgo estadunidense Tennessee Williams (1911-1983). Também conhecida no Brasil como “O Zoológico de Vidro”, À Margem da Vida foi publicada em 1944 e encenada, pela primeira vez, no ano seguinte. Ao longo dos anos, ganhou inúmeras montagens e versões cinematográficas e televisivas mundo afora.

O desenrolar da peça é contado por Tom Wingfield, um aspirante a escritor que acumula as funções de narrador e personagem. Sob seu ponto de vista, são apresentados os dramas e esperanças da família Wingfield, cujos membros vivem em bolhas de realidade, e também, na sequência, o rebuliço causado pela chegada de um pretendente, que vai funcionar como um emissário da esfera da realidade.

A controladora matriarca dos Wingfield, Amanda, foi abandonada no passado por seu marido, um funcionário da companhia telefônica que caiu no mundo, deixando-a para trás com os dois filhos do casal, Laura e Tom. O pai, sem nome, só aparece num retrato pendurado na sala do pequeno apartamento dos Wingfield, mas é uma presença forte, sendo constantemente citado e lembrado ao longo da narrativa. Amanda, por causa do abandono do marido, se refugiou na bolha do passado, se pondo a relembrar o tempo em que vivia na pequena Blue Mountain, quando, segundo ela, era cortejada por importantes proprietários de terra e também por filhos de grandes proprietários de terras, e isto tudo ocorrera antes de conhecer o marido que viria a abandoná-la. Nesse aspecto, ela lembra bastante outra personagem de Tennessee Williams, Blanche Dubois, de “Um Bonde Chamado Desejo”, que também vivia das recordações de um passado supostamente glorioso.

Laura, a filha, é uma jovem bastante tímida, nervosa e com autoestima baixa, por conta de um leve defeito físico que tem na perna e que a faz mancar. Como tem dificuldade de se relacionar socialmente, Laura dedica seu tempo a cuidar de sua coleção de animaizinhos de vidro e a ouvir os discos deixados pelo pai.

Para que a filha conquiste sua independência financeira, Amanda matricula Laura numa escola de datilografia. Ao descobrir que a filha só foi a uma aula e nunca mais voltou ao curso, Amanda decide então que o melhor a fazer é casá-la. Para isso, a mãe faz chantagem emocional com o filho Tom para que ele traga algum colega seu do trabalho para ser apresentado à irmã. O eleito é Jimmy, o único com quem Tom se dá bem no trabalho, uma vez que Jimmy tem uma postura bem humorada em relação ao amigo.

À Margem da Vida é assumidamente uma “peça de memórias”, uma vez que a dramaturgia se baseia em acontecimentos reais da vida de Tennessee Williams. Para quem conhece um pouco da biografia do autor, a impressão que fica durante e após a leitura de À Margem da Vida é a de que Tennessee Williams procurou exorcizar alguns de seus demônios através dessa peça, e o fez com muita coragem e brilhantismo, deixando de herança para a humanidade essa belíssima obra.

Tom é uma espécie de alter ego de Teneessee Williams – cujo verdadeiro nome também é Thomas. Laura muito provavelmente foi inspirada em Rose, a irmã de Tennessee Williams na vida real. Rose sofria de esquizofrenia e após passar por vários hospitais psiquiátricos, foi submetida a uma lobotomia, cirurgia que era uma novidade na época. Infelizmente, a lobotomia deixou Rose incapacitada pelo resto da vida. Tennessee Williams nunca se perdoou por ter permitido que seus pais submetessem a irmã a esse tratamento tão invasivo.

Em À Margem da Vida, Tennessee Williams, como o excelente dramaturgo que é, se utiliza de uma linguagem poética e metafórica, trabalhando com símbolos que nos fazem refletir sobre como usamos nosso livre arbítrio. Ele nos chama a atenção sobre o poder que nossas escolhas têm de afetar nossas vidas e as vidas das pessoas a nossa volta. Sobre o preço que a vida nos cobra para que possamos bancar essas escolhas, sobre o ter que abrir mão de certas coisas para se ter outras. E mais. Como passado e presente se interpenetram e se influenciam, nos levando às vezes a recorrer ao escapismo, que são as bolhas de realidade que forjamos, para que possamos suportar a crueza da vida real.

À Margem da Vida é um clássico do teatro mundial que vale a pena ser lido por todos e não apenas por pessoas ligadas ao teatro.

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É possível viver sem o afeto da mãe?

Por Antônio Roberto Gerin

 Um filme que se propõe a narrar o cotidiano de uma personagem tem, necessariamente – não obrigatoriamente – que passar pelas relações familiares. É o que acontece com o convincente e premiado filme LADY BIRD – A HORA DE VOAR (95’), direção de Greta Gerwik, EUA (2017), que vai contando, num tom bastante realista, os conflitos e dilemas da adolescente Christine McPherson. O filme ganha em emoção e consistência quando se detém, sem nenhum pudor, na conturbada relação mãe e filha, conflito, aliás, recorrente na maior parte das famílias normais. Pois, onde tem conflito, geralmente tem mãe. Em Lady Bird não é diferente.

Uma jovem, mentalmente efervescente, está em busca do seu caminho no mundo e passa pelos sentidos da vida numa atitude de contestação e reposicionamento frente ao que lhe é determinado. Mas o que é realmente importante para uma jovem inquieta, que precisa o tempo todo dar cotoveladas para poder expressar as suas vontades? Sim, as vontades… Mas que vontades? Ora, tudo aquilo que está diretamente ligado ao futuro da jovem adolescente, claro. E seu futuro é ir pra Nova Iorque, numa universidade lá qualquer, mas em Nova Iorque. Ponto. Lady Bird  dará quantas cotoveladas forem necessárias pra chegar à costa leste!

Aliás, temos Saoirse Ronan, indicada ao Oscar como melhor atriz, no papel da Lady bastante Bird! Perfeita!

Mas antes de Lady Bird conseguir o que quer, partir de Sacramento em direção ao futuro luminoso de Nova Iorque, a adolescente precisará lutar em várias frentes de batalha. Ela ainda não tem dezoito anos e há questões urgentes a serem resolvidas. Amizade, namoro, sexo, sua relação com a mãe dominadora… ufa, que batalha! Mas Catherine, nossa heroína, que se autodenomina Lady Bird, não fugirá à luta.

Tudo começa pela família. É dentro dela que nascem as coisas boas e as coisas não tão boas. É na família de Lady Bird que está o pai condescendente e amoroso, porém, fraco. É nela que vive o irmão chato que faz da namorada seu alter ego de chatice. E é nela, por toda parte, onipresente, feito um fantasma invisível, que reina a mãe. Ah, a mãe, a que controla, a que determina, a que faz valer os decorados e a que dita as malditas regras, obrigando a que nossa protagonista, a Lady, redobre esforços na tentativa de caminhar no mundo com as próprias pernas. Ela não quer viver nesse interior mesquinho, Sacramento. Ela sonha com o brilho de Nova Iorque, onde, ela sabe, poderá voar para além dos horizontes da mãe.

Agora vamos para algo mais interessante, sexo. Ah, este sim dá um certo trabalho, já que descobrir a sexualidade exige renúncias perigosas e um parceiro ideal de primeira viagem. E Lady Bird bem que tentou! A primeira noite quase que necessariamente seguida do primeiro engano. Não é um fracasso, é apenas uma desilusão. Foi bom, Lady? Bem… Não se preocupe, caro espectador. Nossa Lady Bird seguirá seu voo na direção para onde aponta a sua vontade. Perde-se uma batalha, não a guerra.

Amizade. Utilizada no filme como válvula de escape em somatizações sociais, tais como a alimentação excessiva, as risadas fáceis e nervosas, e os sonhos impossíveis de afeto verdadeiro. Esta é a amizade dos excluídos. É que a oferta não é tão abundante para uma menina com severas restrições às convenções sociais. Prefere, por isso, amizades marginalizadas, no papel de uma menina obesa e carente, com quem divide seu tempo e seu espaço.

E, por fim, a universidade. A vida profissional. O desenho do futuro. A luta para conseguir vaga numa delas, o caminho a ser aberto para que lá na frente a vida possa se encaixar nos trilhos da funcionalidade. Uma luta e tanto, diga-se. Mas o que a determinada Lady Bird não consegue? Tudo, menos uma coisa. O afeto da mãe.

Reside aqui, caro espectador, a crueldade do filme. Vamos sempre nos deparar com a ideia perfeita veiculando o amor perfeito. Se é mãe, ama, esta é a ideia perfeita. E esta máxima, sem dúvida, está quase perfeita, se ela não perpassasse pela condição de que amar a mãe é fazer as vontades da mãe. Sem esta condição, não tem afeto recíproco. Portanto, não há liberdade no afeto materno. Há prisão. Há condição. Assista, caro espectador, ao filme Lady Bird para ter a certeza de que sem afeto é possível seguir adiante. Pode ser mais pesado, mas nunca uma impossibilidade. Bem. É o que imaginamos, pois, da forma como o filme termina, a pergunta é inevitável. É possível viver sem o afeto materno?

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