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Tudo em nome do amor

Por Antônio Roberto Gerin

 O emblemático filme FACE A FACE (130’), de Ingmar Bergman, Suécia/Itália (1976), além de dar continuidade às temáticas preferidas do diretor sueco, a velhice, a morte, a opressão, a arte como fonte de redenção, a relação mãe e filha, a mulher, o casamento, o sexo…, não que Bergman passe ao largo destas temáticas, mas, nesta obra, em específico, nos parece que ele se dobra à sua biografia, colocando na tela sintomáticos indícios de que elegeu este filme para falar um pouco de si mesmo. E mais. Colocou seus gritos e sussurros na interpretação exuberante de Liv Ullmann, com quem, sabia Bergman, podia contar para expressar em cores vivas sua infância opressiva de menino solitário. Não é autobiografia. São pinceladas aqui e ali, que o espectador, sutilmente, irá percebendo. Portanto, não é um Bergman nu. Digamos, um Bergman insinuando alguma nudez. Disfarçada em arte. Disfarçada em Liv Ullmann.

Jenny Isaksson (Liv Ullmann em um de seus melhores momentos, ganhadora de vários prêmios mundo afora por este papel, inclusive a indicação ao Bafta e ao Oscar, de melhor atriz, em 1977), é uma médica psiquiatra que se vê às voltas com seus fantasmas do passado, os quais passam a atormentá-la, a ponto de vir a tentar o suicídio. Socorrida, enquanto se debate entre a vida e a morte, vai revivendo pedaços de infância. Revê sua inconclusiva relação com os pais, mortos por acidente quando ela ainda tinha nove anos, e também sua confusa convivência emocional com a avó, por quem fora criada e com quem mantinha uma relação disfarçada pelo manto da gentileza, mas que, na verdade, tecia invisíveis teias de domínio, opressão e ódio. E tudo, evidente, vai desembocar numa atitude redentora de percepção do que de fato ocorrera com ela ao longo de sua vida. É o encontro consigo mesma. Temporário, esse encontro? Ou definitivo? Melhor, caro espectador, não nos fazer tal pergunta. Encontrar-se consigo mesmo é uma atitude muito individual, afinal, cada um de nós tem a sua expectativa sobre as possibilidades de ressignificar a própria história.

A partir da breve sinopse acima, podemos antever a estrutura narrativa do filme. A princípio, Face a Face fora concebido para a televisão e, por isso, dividido em quatro episódios. Logo em seguida, Bergman viria a compilar tudo em um filme que, felizmente, ao herdar a estrutura da montagem original, favoreceu o ritmo narrativo da trama.

A primeira parte da narrativa é conduzida a partir dos influxos emocionais de uma de suas pacientes, Mary. Perceptiva, com uma simples frase sobre as precárias condições internas de Jenny, “Pobre Jenny!”, Mary parece rasgar a terra para que as lavas de um vulcão invisível jorrem sobre o cotidiano da psiquiatra. Jenny está só. Os avós viajaram. O marido, sempre ausente, também viajou. E a filha está a passeio em um acampamento. Mas Jenny conhece alguém disposto a ampará-la, o doutor Jacobi. Só que, nesse meio tempo, ela vê seu espaço sendo ocupado por agentes delirantes que irão desestabilizar seu mundo interior, culminando com a tentativa de suicídio.

A segunda parte inicia-se com a personagem agora no hospital. É a hora de o Bergman roteirista ressuscitar os fantasmas desenhados durante a infância solitária, opressora e afetivamente confusa de Jenny (e de Bergman?). É a hora dos delírios propriamente ditos, projetados numa parede de ferro, com a marca indelével do passado. É como se a personagem ficasse parada, deitada na cama, sedada, e por trás do biombo a sua narrativa inconsciente explodisse em vivências reais, sempre na busca de compreender o que, para nós, já adultos, parece inexplicável. Afinal, o que fazer com a nossa infância?

Recuperada, já pronta para sair do hospital, vem a terceira parte, a conclusiva, a catártica, quando Bergman traz a narrativa para o consciente e tudo é dito com clareza e discernimento. Aos gritos, e com muita dor. Muita dor, sim, porque esta é a maneira de nos conhecermos, quando nos encontramos com nós mesmos numa encruzilhada da qual só conseguiremos sair se tomarmos a decisão correta. Enquanto não a tomarmos, os caminhos ficarão ali, nos levando para lugar nenhum.

Esta terceira parte, vale destacar, é uma belíssima e rara sequência de exposição psicológica, em que o roteirista Bergman, enfiando com toda a força a caneta no papel, marca encontro com a própria história. E, diga-se, uma história meramente humana, que pode ser calçada, como uma luva, em infinitas histórias escritas por cada um de nós. A essência do humano não está na sua originalidade, mas na sua honestidade em repetir os ecos, muitos deles arquetípicos, que nos fazem parecer imensamente iguais e previsíveis. A individualidade está em como cada um de nós ouve e reage a estes ecos. É como nós reagimos às nossas dores é que nos faz únicos e verdadeiros.

E vem o desfecho para Jenny. A percepção de si mesma. É quando as coisas são colocadas nos seus devidos lugares, que é quando se descobre qual o papel de cada agente na formação da nossa história. É quando Jenny dá nome aos seus fantasmas. E vem o espanto. É quando se percebe que tudo, tudo mesmo, é feito em nome do amor. E este é o limite da nossa percepção. O de ter que compreender que, em nome do amor, tudo vale. Inclusive o erro.

É hora, então, de Jenny se levantar e retomar seu trabalho no hospital psiquiátrico. Um novo ser humano? Bem, se é novo, não sabemos. Mas diferente, é bem provável. Que algo ao menos tenha mudado, o suficiente para que nossa infância nos assuste um pouco menos. Se assim for, significa que estamos preparados para receber a próxima dor.

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Por Alex Ribeiro

Uma cidade, um café, um encontro

Ela sonhou com viagens
Com um lugar mais justo
Com uma taça de vinho
Músicas tranquilas embalando a noite

Sentado à sua frente estava ele
Um homem apaixonado e cego
Que ela achava muito ingênuo
Mas que de certa forma
Parecia-lhe encantador
Esse homem, cada dia mais próximo
Foi se inserindo na pintura
Ganhando espaço cada vez maior
Um personagem na vida dela.

Matrimônio, uma casa, solidão

Quantos outonos vieram
E a vida dela perdeu a cor
Estava cansada, excessivamente casada
Não lia mais poesias
Não sonhava, nem sorria
Apenas permanecia ali esperando
As lágrimas daquelas nuvens cinzas
Que caindo sobre a vidraça da janela
Traziam um encanto à casa
Que se destacava sozinha, num lugar distante.

A doença, o medo e a despedida

Uma tarde não voltou pro trabalho
Em casa, não reconheceu o seu quarto
Se viu num lugar completamente estranho
Não conhecia os rostos amigos

Seus piores pesadelos nasciam
Das paredes, do chão, dos cantos escuros
Tudo foi aterrorizante
E, pra ela, aqueles pequenos minutos
Foram o maior abandono de sua vida
Ela foi levada, não mora mais aqui
Seu novo endereço é a casa de saúde

Epílogo, pétala, enfim liberdade.

Agora ela não existe mais
Ela que sonhou com um lugar melhor
Com a justiça guiando todos os passos
Com roseiras no jardim, na primavera
Pra ela tudo fora outono
Tudo foi cinza, numa nuvem de lágrimas

Partiu sem conhecer
Sem ter a liberdade de voar
Por ter-se submetido a ficar
Como uma pétala arrancada
Ela se foi rápido demais
As almas sensíveis nascem para a liberdade
E só assim que elas podem
Só assim que elas são
Enfim partiu em liberdade
Pela primeira e única vez.

Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Resenhas, Teatro

Por Leivison Silva

O Preço é uma peça em dois atos, escrita pelo dramaturgo estadunidense Arthur Miller (1915-2005), mais conhecido no Brasil pelas obras “A Morte de um Caixeiro Viajante” e “As Bruxas de Salém”. Lançada em 1968, O Preço conta a história do reencontro dos irmãos Victor e Walter Franz, que não se viam desde a morte do pai, há dezesseis anos.

Victor, um policial prestes a se aposentar, havia tentado entrar em contato com Walter, um médico bem sucedido e com prestígio social, para juntos decidirem o que fazer com os velhos móveis da família, agora entulhados na cobertura de um prédio antigo, no centro de Nova York, prédio que seria demolido em breve, para a construção de um novo edifício. Uma vez que Walter aparentemente havia ignorado o chamado do irmão, Victor e sua esposa, Esther, vão à cobertura para receber Gregory Solomon, um velho avaliador e comprador de móveis usados.

Quando a negociação entre Victor e Solomon está quase fechada, Walter aparece. Sua chegada inesperada transforma o que seria uma simples transação comercial num acerto de contas com o passado. Transcorridos dezesseis anos, um rio amargo de ressentimentos se formou entre os irmãos Franz e o reencontro obriga Victor e Walter a se confrontarem com o passado e com as consequências das escolhas que cada um deles fez para suas vidas.

O Preço tem um quê de autobiográfico. Arthur Miller reverenciava seu irmão mais velho, Kermit. Após a quebra da bolsa de Nova York, em 1929, a família perdeu quase tudo e Kermit deixou seus estudos na New York University para ajudar no sustento da casa. Arthur Miller pôde continuar com sua educação, graduando-se, em 1938, na Universidade de Michigan.

No caso da peça, foi Victor quem abriu mão do seu sonho para cuidar do pai falido, enquanto Walter escolheu escapar da vampirização emocional paterna para terminar sua formação e se realizar profissionalmente.

Walter traíra sua família seguindo suas ambições? Victor se traíra por ter ficado para cuidar do pai? Quem teve a vida mais bem sucedida? Walter, com seu dinheiro e prestígio, ou Victor, com seu casamento estável? Walter vive com o peso da culpa por ter-se omitido da verdade sobre a condição econômica do pai, enquanto Victor convive com a frustração de ter desperdiçado sua juventude para sustentar um pai que tinha perfeitas condições, inclusive financeiras, de se manter e até mesmo de ajudá-lo a concluir os estudos. Apesar da torcida de Esther para que Victor e Walter se reconciliem, nada que os irmãos digam ou façam vai mudar o passado ou afetar o futuro, pois o preço em questão já foi pago há muito tempo.

Arthur Miller foi bastante feliz ao escolher o nome da peça, pois ao mesmo tempo em que o “preço” do título pode se referir à oferta irrisória que o astuto Solomon faz a Victor pelos móveis da família, pode também, e principalmente, se referir ao preço que temos que pagar pelas escolhas que fazemos para nossas vidas. Através do contraste entre os destinos que cada irmão traçou para si, Arthur Miller põe na mesa também a questão da sobrevivência na grande selva que é a sociedade capitalista. Os sonhos são sufocados pelas exigências da vida prática e para se “vencer” na vida é preciso, muitas vezes, se cobrir com o manto do individualismo e ignorar certas demandas sentimentais que fazem parte das relações humanas.

Entre outras coisas, esta é uma peça que mostra bem o poder que a memória tem de revelar ou distorcer a verdade. Basta o leitor ver o rumo que as vidas de Victor e de Walter tomaram e tirar suas próprias conclusões. Mas fique atento a um detalhe. Nem sempre as coisas são como pensamos que elas foram.

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