Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Poesia

Por Jackson Melo

Depois de muito tempo
E de uma longa batalha
Com todo moralismo
Que lhe foi imposto
Ela agora tornou-se livre
De tudo aquilo
Que um dia a prendera

Dizem que ela
Tem que ser recatada
E do lar
Mas não é isso
Que ela quer

Ela quer ser
Seus sonhos
Render-se
Aos seus desejos

Disseram que ela
Tem que ser santa
Que noitada não
Não é coisa de menina

Mas o que ela quer
É se divertir,
Festejar a vida
Aproveitar este presente
Que lhe foi dado

Ela quer viver
Um romance
Passageiro ou não

Ela não quer
Ser entregue ao casamento
Mas, sim, entregar-se a ele

Ela quer tudo
O que pode ter
E mais um pouco
Mesmo que não lhe seja permitido

Afinal,
Ela será dona
Da sua vontade.

Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Resenhas, Teatro

Por Alex Ribeiro

A Tragédia do Rei Christophe é uma peça escrita pelo dramaturgo colombiano Enrique de Buenaventura, e foi a primeira peça a vencer o Concurso Latino-Americano de Obras Dramáticas, concurso este realizado entre 1961 e 1962. Conta a história do ex-escravo haitiano Henri Christophe, que se torna presidente em 1807 e se autoproclama rei em 1811, reinando sobre aquele país até 1820. Fato interessante sobre essa peça é que, no mesmo período, o dramaturgo francês Aimé Césaire criou um texto de mesmo nome, tendo como mote dramático a vida do mesmo personagem histórico haitiano. As coincidências sobre os dois autores não se encerram nesse fato. Ambos têm forte influência do teatro de Bertolt Brecht, e buscam fazer de suas respectivas peças o agente de “conscientização” política e social do público. Buenaventura também recebeu influência de dois brasileiros importantes, Augusto Boal e Paulo Freire. A figura de Christophe é o exemplo perfeito para os objetivos de Buenaventura, já que após lutar pela abolição da escravatura e também pela independência do Haiti, ele trama contra o imperador e se torna o Rei e, também, um exímio tirano. É a concretização do pensamento freiriano, o de que “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”.

Christophe era escravo de um hotel, donde tinha que assistir ao deleite dos donos de escravos que por ali passavam, e que reagiam com violência aos negros, aos abolicionistas e aos republicanos. Após comprar sua própria liberdade, ele entra na luta do povo haitiano por liberdade da colônia francesa e pelo fim da escravatura. Após se destacar nas batalhas lideradas por Jean-Jacques Dessalines, ele se torna general.

Dessalines consegue a proclamação da independência e se coroa rei. Poucos anos mais tarde, Dessalines é assassinado e Christophe é eleito presidente. Nos primeiros anos de seu governo, ele resolve dar um golpe e se proclama rei. Com punhos de ferro, ele explora seu povo para a construção da Citadelle Laferrière, mas isso lhe custa o apoio do seu povo. Pouco a pouco, vê-se abandonado pelos seus e em meio a uma revolução que pretende destroná-lo, ele se suicida.

Christophe é um exemplo claro da análise de Paulo Freire. Se apega ao poder de tal maneira que não mede ações para se manter nele. Mesmo tendo construído um dos mais importantes castelos do Haiti, não deixou de explorar seu povo. Aquilo contra o qual ele lutara para livrar seu país é a coisa em que ele mesmo se transforma. A mão que oprime o povo haitiano. Ainda nessa obsessão, ele não permite que o poder lhe escape das mãos e, estando já com a saúde debilitada, tira a sua vida com uma bala de prata. Seu corpo é fundido ao cimento da Cidadela, como havia ele sonhado dias antes de morrer.

Buenaventura desenha aquilo que se tornaria a América naqueles anos. Onde várias ditaduras militares se instalaram pelo sul do continente, levando seu povo a sofrer nas mãos de despóticos ditadores. Talvez, nesses dias atuais desse Brasil sem rumo, o teatro deva assumir sua persona brechtiana, e trazer à tona as cenas lúcidas de um Buenaventura ou de um Boal. É o teatro assumindo a sua maior potencialidade. A de ser agente de mudança social no seu público. Um teatro sem medo de ser teatro.

Clique aqui para conhecer os textos teatrais de Antônio Roberto Gerin, dramaturgo da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

Publicado em Categorias Cinema, Cultura, Literatura, Resenhas

Falando e cantando, no cinema

Por Antônio Roberto Gerin

O lançamento, em 6 de outubro de 1927, do filme O Cantor de Jazz marca uma das mais profundas mudanças na maneira de se fazer cinema. Foi a passagem do cinema silencioso para o cinema sonoro. E essa mudança não foi apenas técnica. Foi também comercial, porque permitiu aos estúdios atrair um público que agora ia poder acompanhar narrativas que exibiam realidades bem mais próximas do seu dia a dia. Mas a mudança foi, principalmente, artística, talvez o grande desafio desta transição. Agora passava-se a exigir do ator outras qualidades, para as quais muitos dos artistas não estavam preparados e, portanto, viriam a sucumbir nesse processo de transição. Para a exigente sétima arte era preciso agora também saber falar! E bem. Onde o ritmo, a clareza e o timbre iriam se somar à empatia que o ator teria que emprestar à sua personagem. Afinal, tudo é bilheteria! Neste diapasão de ajustes, portanto, aumenta a procura pelo ator completo. Ator que dance, que cante, que fale bem, e que consiga, por tabela, fazer o básico, isto é, interpretar. O saboroso filme CANTANDO NA CHUVA (100’), direção de Gene Kelly e Stanley Donen, EUA (1952), vem justamente retratar esta época de conturbada transição, período que deixou marcas, sejam glórias, sejam fracassos, histórias que permanecem até hoje registradas na memória do cinema. E Cantando na Chuva, espertamente, mais de vinte anos depois da estreia de O Cantor de Jazz, consegue, com um enredo simples, mas pontual, retratar este mundo que, aparentemente, ficara para trás.

Um dos casais mais famosos de Hollywood, da época do cinema mudo, Don Lockwood e Lina Lamont veem suas vidas de estrelas máximas do cinema mudarem radicalmente com o surgimento do filme sonoro. A ansiedade, a dúvida e o medo de arriscar tomam conta do casal que, óbvio, não quer perder a majestade. A ponto de não terem outra alternativa senão embarcarem na nova realidade do cinema, a produção de um longa-metragem sonoro. E é com esta decisão que o filme toma ares de comédia e registro histórico.

A trama é muito simples. Após a decisão de produzir o filme sonoro, vem o primeiro problema. A famosa atriz do cinema mudo, Lina Lamont, tem uma voz estridente, totalmente incompatível com o que se exigia, em acabamento artístico, de um filme falado. Vale lembrar que até então nenhum espectador jamais tivera contato com a voz de Lina. O que fazer? O primeiro passo é o mais óbvio. Contratar uma fonoaudióloga, mas que não viria resolver o problema. E aí a narrativa chega a seu principal momento. Uma atriz iniciante, por quem o grande astro, Don Lockwood, se apaixonara, é contratada para substituir a voz de Lina Lamont. Assim resolve-se um problema, mas cria-se outro. Lina não aceita o namoro do seu par romântico com a tal atriz iniciante. E desconhecida. A guerra está declarada. Fecha-se, assim, o núcleo dramático da narrativa.

O filme, curiosamente hoje um clássico, e por muitos considerado o maior musical do cinema americano, não fez tanto sucesso em sua estreia, a ponto de ter apenas duas indicações para o Oscar, a de melhor atriz coadjuvante para Jean Hagen, no papel de Lina Lamont, e a de melhor trilha sonora. Mas ninguém levou nada e, com isto, Cantando na Chuva, ao lado de Luzes da Cidade e Era uma Vez no Oeste, entre tantos clássicos, entra para o rol dos filmes ignorados pela Academia.

Como o tempo provou, o filme tem qualidades duradouras. É saboroso, é envolvente, é irônico, é sarcástico, tem ritmo, os diálogos, do ponto de vista da dramaturgia, são utilitários, forjados para prepararem a ação propriamente dita, e estas ações nos parecem tão frenéticas que dão a impressão de que elas não têm paciência para esperar a próxima fala. Tudo é muito ágil, sincronizado, distribuído em cenários exuberantes, milimetricamente desenhados, harmonizados por figurinos esfuziantes, sem economia de tons e cores e padrões, onde se canta e se dança, e onde cada movimento é enquadrado numa coreografia precisa e criativa. Tudo preparado para o desabrochar do amor protagonizado por Don e Kathy, um amor de adolescentes, simples e esteticamente perfumado. É Hollywood sendo mais do que nunca Hollywood. Com competência e glamour.

E mais. Somos convidados a participar da magia do cinema, com sua maquinaria, seus artifícios e seus sonhos improvisados. O cinema despontando para aquilo que, industrialmente falando, ele foi construído. Uma máquina de cuspir sonhos, num imenso e insustentável parque de diversão.

Antes de finalizar, precisamos falar do sapateado e, em seguida, do momento icônico do filme, em que Gene Kelly protagoniza uma das cenas mais vistas e admiradas, e hoje marcada indelevelmente no imaginário dos cinéfilos mundo afora.

O sapateado é essa coreografia falada com os pés, com as pernas, com o corpo e com a sensibilidade de quem extrapola os limites artísticos da desenvoltura e da forma. E esta magia dançada é reservada para os momentos de pico dramático, seja de tensão, seja de expectativa, seja de efusiva alegria e de profundo afeto. Não há saída senão se encaminhar para o centro da cena e sapatear a ilusão de que estamos num mundo fictício demais para ser verdade. E tudo é conduzido por uma trilha sonora escolhida na ponta do dedo, genialmente sintetizada para moldar a atmosfera de grandeza da sétima arte. Não há, nos parece, novidades técnicas e estéticas em Cantando na Chuva. E não precisa. O filme é a própria expressão de como o cinema é voraz quando se trata de produzir encantamento.

Antes de chegarmos à cena icônica de cantando e dançando na chuva, precisamos também falar das cenas hilárias. O grotesco, a leve pantomima, até o pastelão, tudo é colocado num caldeirão de risos comoventes e, diria, até provocantes. Retrata-se um tempo de ouro que ficou para trás. O ponto alto do humor acontece na cena em que Lina Lamont, a gralha incorrigível, vai tomar aulas de dicção e coleciona desastres de interpretação oral. Chega a nos lembrar a famosa Eliza Doolittle (Audrey Hepburn), do maravilhoso musical My Fair Lady, que seria lançado doze anos depois, em 1964. Na sequência, há ainda a aula de dicção de Don Lockwood, o charmoso e empático declamador de falas, uma cena cuidadosamente construída com a ajuda impecável do seu amigo Cosmo Brown (Donald O’Connor), cuja vivacidade e desenvoltura mímica ditam o ritmo do filme.

Só mais uma! A cena de amor final do filme, em que Lina não consegue falar ao microfone escondido entre os arbustos, colocado ali, com disfarce, para captar as suas falas. A despeito das hilárias intervenções do diretor, nada se resolve. “Fala para o arbusto!”, grita ele. No que ela, magistralmente, responde. “Eu não posso amar um arbusto!”.

E, por fim, a cena histórica que dá nome ao filme. Don Lockwood, tomado de extremo afeto e alegria, consumado de amor por Kathy (Debbie Reynolds), após tê-la deixado em casa, debaixo de muita chuva, se põe a se extravasar numa dança de sapateado tão perfeita, que nos parece interminável. Tudo o que desemboca nessa construção coreográfica impagável foi demonstrado acima. É a consequência de um cuidado artístico! Então, encerramos este parágrafo com um detalhe do final da cena de Gene Kelly, em que ele é afrontado pelo policial. Lembra-nos Charlie Chaplin, com a inconfundível presença ameaçadora do policial em muitos de seus filmes. Eis o encontro sutil entre duas épocas, o cinema mudo de Chaplin e o cinema sonoro de Gene Kelly.

E, para encerrar, vemos agora o filme se encaminhando para o seu final, numa sequência demorada de musicais, o filme dentro do filme, sequência esta de quase quinze minutos, talvez muito tempo em relação à duração total do filme. Mas não diria que seja cansativa, e tampouco desnecessária. A esta altura, a dramaturgia do filme já estava se esgotando, clamando pelo desfecho. O que nos leva a aceitar que a longa cena de exuberantes números musicais vem preparar o desfecho muito bem arquitetado, quando Lina Lamont é desmascarada diante do seu público. Fica estabelecido, assim, o encontro definitivo com a verdade. Aliás, conceito este muito caro a Hollywood. Dê a cada um os aplausos que lhe cabem. THE END.

               Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.