Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Poesia

Por Alex Ribeiro

Todo coração é de vidro
Vidro fúlgido, vidro colorido
Enegrecido, protegido

Mas é um risco e um perigo
O transparente ainda vivo
Que deixa exposto
Pra todo mau gosto
Desprezar sua avidez

Há os que se quebram facilmente
Há os que se enrijecem
Há os que são conteúdo
Há os que são continente

Há o meu, o teu
Translúcido, pungido
Turvo, tardívago

Sístole e Diástole
Pulsante sentimento de vida
Oh, minha querida,
Cuide do meu coração
E da minha ferida.

Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Resenhas, Teatro

Por Alex Ribeiro

A Casa de Bernarda Alba é a última peça escrita pelo poeta e dramaturgo espanhol Federico Garcia Lorca, antes de ser fuzilado pela Guerra Civil que assolou seu país de 1936 a 1939. A peça foi concluída apenas trinta dias antes da sua morte, que ocorreu no dia 19 de agosto de 1936. É a única peça em que Lorca escreveu em prosa, ao contrário das anteriores, todas escritas em verso. A Casa de Bernarda Alba, juntamente com Bodas de Sangue, de 1933, e Yerma, de 1934, compõe a chamada Trilogia de Dramas Folclóricos. Nelas, Lorca aborda questões do cotidiano de pequenas cidades do interior espanhol, tirando da rígida moral dos seus personagens a força dramática e trágica destas peças. Tendo Lorca sido assassinado um mês após a conclusão da peça, ela demoraria pelo menos nove anos para ter sua estreia, que viria a acontecer em Buenos Aires, em 1945, cidade esta em que Lorca vivera por cinco meses, em 1933. Na Espanha, a peça foi encenada pela primeira vez somente em 1964. É uma peça sobre despotismo e liberdade, envolta num véu sensual de desejos reprimidos.

Bernarda é uma viúva que acabara de perder o seu segundo marido. Senhora de posses, numa pequena cidade espanhola, e mãe de cinco filhas solteiras, Bernarda estabelece luto de oito anos e, como regra desse luto, proíbe as filhas de saírem de casa. Além disso, mantém sua mãe, uma senhora de 80 anos, presa num quarto para que a vizinhança não perceba os comportamentos inadequados que ela tem. Além das filhas e da mãe de Bernarda, a criada Poncia é também moradora da casa, e é ela a personagem que joga luz sobre o despotismo de Bernarda, e é quem percebe os conflitos entre as filhas da matriarca.

Angústias é a filha mais velha de Bernarda, e a única do seu primeiro casamento. Por ser filha de um pai diferente das demais, é ela quem herda o maior dote. No entanto, Angústias não tem beleza alguma, e já está com 39 anos. Em virtude do dote, ela consegue um pretendente, Pepe Romano, rapaz de 25 anos, considerado por todas aquelas mulheres o homem mais bonito da cidade. O noivado entre os dois está prestes a acontecer, mas a reclusão começa a trazer os primeiros conflitos dentro da casa de Bernarda Alba. As duas filhas mais novas, Martírio, 25 anos, e Adela, 20, também se apaixonam pelo pretendente da irmã. O rapaz se envolve com a caçula Adela, gerando ciúmes em Martírio que, apesar de querer também roubar o pretendente da irmã, se vê sem coragem para fazê-lo.

Numa noite em que Pepe está viajando, o conflito entre as irmãs explode e, numa tentativa de conter as filhas, Bernarda se lança violentamente contra Adela que, por sua vez, reage à mãe. Adela quer a liberdade, mesmo que para isso tenha um alto preço a pagar. Está lançada a tragédia e outro luto recobrirá a casa de Bernarda Alba.

Adela foi, na casa de sua mãe, a força vital que iluminava a escuridão das mágoas impostas por Bernarda. Seu desejo por viver o amor que matinha por Pepe e pela liberdade de ser como era contrapunha-se a uma mãe que não permitia espaço para a vida. É sim um conflito entre a vida e a morte, e, naquele momento, para Lorca, a vida estava cada vez mais distante de sair vencedora. A tragédia por si só ia se desenhando.

Hoje olhamos com espanto os rumos de nossos conflitos enquanto sociedade, onde os discursos violentos e aprisionadores vão ganhando cada dia mais adeptos. Seria o Brasil uma casa de Bernarda Alba? Seríamos nós pequenas Adelas que lutam pela liberdade? Ou seríamos Lorcas pressentindo a tragédia? Caro leitor, não são perguntas de fáceis respostas. Mas enquanto as respostas não vêm, algo tem que ser feito. Não podemos temer.

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A exuberância da rainha Greta

Por Antônio Roberto Gerin

 Quando se trata de assistir a um filme baseado em fatos históricos, temos, em primeiro lugar, que ficar atentos à veracidade desses fatos. Nem sempre se projeta nas telas o que aconteceu. Então, um alerta. Um filme não é um livro de história. A ficção exige seus voos de cruzeiro. Ela precisa se distanciar da realidade para construir sua narrativa, seus ritmos, suas tensões e seus clímax. O espectador tem que ter a percepção de que ele está assistindo a uma fábula, não a um documentário. Portanto, sugerimos. Nada de comparações. Nada de apontar o dedo. Ah, não foi assim que aconteceu! Neste diapasão, afirmamos que o belo RAINHA CRISTINA (99’), direção de Rouben Mamoulian, EUA (1933), não é diferente. É mais um daqueles filmes que se aproveitam da História para se tornarem um grande filme. Baseado na misteriosa e controversa Rainha da Suécia, que reinou entre 1632 e 1654, em pleno apogeu da guerra dos Trinta Anos, Rainha Cristina está mais preocupado com os dilemas pessoais da soberana do que com os conchavos palacianos. Estes existem, sempre, mas não definem quem de fato foi esta mulher de personalidade poderosa. Cristina foi a rainha que subverteu certos protocolos. Posicionou-se contra o espírito belicoso sueco, contra o uso do povo para fins políticos, ela amava a paz, o conhecimento e a cultura, e desprezava a ignorância. Rainha que após sua abdicação, vagou por trinta e cinco anos por uma Europa que a admirava, que colecionou obras de arte, criou teatros, estabeleceu uma relação íntima com o Vaticano, a ponto de ser uma das três únicas mulheres a estarem enterradas em seus subsolos. Que mulher foi esta, caro espectador?! Só outra mulher, tão sueca quanto, tão misteriosa e tão poderosa quanto poderia encarná-la nas telas. Sim. Greta Garbo.

Cristina tinha apenas seis anos de idade quando foi, após a morte do pai, Gustavo II, coroada rainha da Suécia. Herdeira única, educada desde bebê para ocupar o trono, o fez com total desenvoltura e competência. Foi amada e admirada por seus súditos. No entanto, já na fase adulta, preferiu a mulher à rainha, o ser humano ao símbolo, as artes e o conhecimento à espada. Suas opções e opiniões pessoais começaram a entrar em embates com seu papel de rainha. Preocupada que estava com o domínio bélico sobre a Europa, a nobreza sueca não teve tempo de olhar para onde a rainha queria de fato conduzi-los. Desde muito cedo se viu envolvida com as questões da Corte, por quem sacrificou sua infância, adolescência e boa parte da juventude, o que torna compreensível seu desejo de abdicar ao trono e se dedicar àquilo de que realmente gostava. Apesar das objeções da nobreza sueca, assim o fez, em 1654, quando tinha apenas vinte e oito anos de idade.

Os assuntos de casamento, sexualidade e romances são tratados no filme de uma forma muito criativa e saborosa. Uma das obsessões de qualquer dinastia é deixar sucessor, portanto, gerar rebentos. Em se tratando de rainhas, a cobrança é ainda maior. Em muitos momentos, os súditos esquecem da rainha e miram na mãe. Com Cristina não foi diferente. Ela conviveu com esta pressão durante todo o seu reinado. Instada a se casar com seu primo, o príncipe e herói nacional Carlos Gustavo (Reginald Owen), ela não perdia a oportunidade de declarar sua objeção ao casamento. Tanto suas posições no assunto eram verdadeiras que nunca se casou e nunca teve filhos. Portanto, não deixou herdeiros. E havia ainda uma razão urgente na pressão pelo casamento da rainha. Sem casamento não haveria filhos, e sem filhos seria o fim da dinastia Vasa. E foi o que aconteceu.

Uma pequena cena, logo no início, dá a ideia exata da personalidade da rainha. Cansada das pressões palacianas, disfarçada de homem comum, sai com seu fiel ordenança, a cavalo, pelo gélido interior da Suécia. É quando se depara com uma carroça atolada numa vala. De cima do cavalo, ela comandou e instruiu, com voz de ferro, como aqueles homens deveriam agir para desatolarem a carroça. Um exemplar típico da mulher (moderna) se misturando ao seu ofício.

E agora a parte sexual e romântica. Nesta mesma cavalgada, disfarçada de homem, como foi dito, ela chega a uma estalagem, onde vem a conhecer seu grande amor, Antônio (John Gilbert), o Conde de Pimentel, enviado espanhol para a Corte Sueca, que viera tratar justamente do casamento entre Cristina e o rei espanhol, Felipe IV. O conde não imaginava que estava se envolvendo com a rainha, fato que tomaria conhecimento quando viria a se apresentar, em Estocolmo, em audiência, com a própria! Uma sequência de cenas impagáveis, as da estalagem, principalmente aquela em que é obrigada a dividir a cama com o estrangeiro.

O que nos chama a atenção, na composição do enredo, são as surpreendentes coincidências pessoais entre Greta Garbo e a rainha Cristina. Greta parece sentir-se tão bem no papel que seu repertório corporal e oral parece não ter limites. E as semelhanças são várias.

Primeira, a nacionalidade sueca. Greta Garbo, com certeza, ainda menina, nos bancos escolares, tomara conhecimento da vida pública e pessoal da rainha. Que deleite não deve ter sido para ela, longe da pátria, rever pessoalmente essa figura histórica determinante para o seu país. Outra semelhança está em que ambas desistiram cedo de suas vidas públicas para se dedicarem à vida privada. Cristina tornara-se rainha aos seis anos e teve que abrir mão de sua vida pessoal. Não suportou, precisou abdicar, aos vinte e sete anos. Greta Garbo abdicou de sua carreira de atriz aos trinta e seis. Por motivos muito parecidos. Morte prematura do pai e investimento contumaz na construção de sua carreira de atriz. Antes dos vinte, já era admirada. Aos vinte e um já estava em Hollywood, onde imediatamente lhe estenderam o tapete vermelho da fama. E todas as responsabilidades decorrentes dela. Não teve tempo para respirar. Recolheu-se, então, por traz de sua imagem de atriz fenomenal que, como nenhuma outra, mostrava tanta intimidade com as câmeras. Mas, por razões estas e outras, preferiu ficar longe delas.

E as semelhanças prosseguem. O olhar artístico e humano, a fuga ao casamento, as incertezas sexuais, fica-nos, enfim, a impressão de que Greta não precisou fazer o menor esforço para encarnar Cristina. Ilusão, sabemos. Nada é mais penoso do que ser exuberante a cada filme, a cada flash, mesmo para quem já carrega a exuberância desde sempre. Greta, mais do que qualquer outra atriz à época, sentiu o peso de ser rainha.

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