Publicado em Categorias Bergman, Cinema, Cultura, Literatura, Resenhas

Ninguém perturbará a serpente

Por Antônio Roberto Gerin

 Com o intrigante filme O OVO DA SERPENTE (120’), produção EUA/ALEMANHA (1977), Ingmar Bergman, que também assina o roteiro, ao ir em busca de novas perspectivas artísticas, parece sair da curva criativa e estética que marcou sua filmografia até então. Óbvio que esta curva não é tão acentuada assim, a ponto de desfigurar o Bergman original. Sabemos que ele trabalha com o humano. Com os monstros que habitam nossas escuridões. Com as perguntas sem respostas. Neste filme, não é diferente. Sua câmera continua sendo monitorada pela mesma sensibilidade de artista completo que sempre foi. Portanto, o Bergman, de certo modo, permanece intacto. O que nós vamos presenciar em O Ovo da Serpente é algo que escapa das quatro paredes e invade as ruas de Berlim. O isolamento e os cenários intimistas, tão caros a Bergman, não cabem aqui. O que ele faz é inserir suas personagens numa estrutura política, econômica e social à beira do abominável. É Bergman se colocando diante de um mundo em perigosa transformação, com o desafio de entender o que está acontecendo. Tudo acontece porque Bergman é convidado a roteirizar e dirigir este projeto germano-americano, tendo por trás, na produção, o robusto Dino de Laurentiis. E Bergman, depois de muita pesquisa histórica, compõe um painel absurdo de uma Alemanha daquele novembro de 1923. Era a Alemanha se preparando para gestar o ovo da serpente. O nazismo.

Abel Rosemberg (David Carradine) é um trapezista norte-americano desempregado que acaba de chegar a Berlim com seu irmão, Max, e a cunhada, Manuela Rosemberg (Liv Ullmann). O que ele vai encontrar em Berlim não é nada animador. Pelo contrário. A cidade está devastada por uma crise econômica nunca vista antes. A inflação é acachapante, há desabastecimento, a desesperança toma conta da população alemã e, pairando sobre essa dura realidade, um governo inoperante, tão perdido e tão impotente quanto seus governados. É neste quadro de desolação que vemos Abel andar pelas ruas, sem rumo, em busca de bebida e comida. E, para piorar a situação, e este é o início do filme, Abel, ao retornar à pensão onde morava, ao subir as escadas e abrir a porta do quarto, depara-se com o irmão morto. Se antes Abel ainda tinha um referencial, agora tudo parece perder-se de vez. É, pois, com os olhos desse desesperado Abel, abatido pelo medo, que Bergman vai nos mostrar a Berlim de 1923 chocando o seu terrível ovo.

Onde reside a lógica da desintegração da sociedade alemã que possibilitou o surgimento do nazismo? No caso da alegoria trazida por Bergman, que possibilitou que o ovo da serpente fosse chocado? Cada um pode ter a sua resposta, mas acreditamos que todas, de um modo ou outro, convergem para a mesma certeza. A de que tudo era muito óbvio demais para que não pudesse ser percebido.  Como nos mostra Bergman, a membrana transparente do ovo estava lá, e através dela podia-se ver, escancarado, o vulto da serpente, o símbolo de uma dos maiores desastres humanos de que se tem notícia.

Mas há, sim, respostas mais objetivas para explicar tamanha ruptura moral. No caso da Alemanha, a causa do esfacelamento social teve seu início com a humilhante derrota a que foram submetidos os alemães na Primeira Guerra Mundial, incluindo-se aí os acordos absolutamente desfavoráveis impostos aos derrotados. E, na sequência, veio a incapacidade de os alemães se reerguerem economicamente após a guerra. Com isso, a desarticulação econômica, agravada por uma indústria inoperante e uma estrutura de Estado arcaica, levou à desarticulação social. Tudo vira pó. Não há referenciais. Não há sentido de vida. Há apenas os famintos vagando pelas ruas, o medo corroendo a esperança e, como proclama a própria Manuela, “as pessoas perderam o futuro!”. É o que mostra Bergman através de seu personagem principal. Um Abel Rosemberg onipresente, vagando sobre escombros nesta terra de ninguém, esse ser humano sentindo na pele, como judeu, os primeiros ventos fúnebres soprando contra o seu rosto. Ele é a figura que testemunha a maldade se infiltrar no vazio moral e nos escusos interesses políticos que moldariam a Alemanha nas próximas duas décadas, e, como sabemos, brindando-nos com suas terríveis consequências.

Mas nem tudo está perdido. Existem mentes lúcidas que lutam para que a democracia não saia dos trilhos. É como diz o inspetor Bauer (Gert Fröbe), que representa o Estado alemão titubeante, cujos olhos, tomados de medo, ainda conseguem vislumbrar o perigo do ovo sendo gestado. Diz ele, “tento criar um pedacinho de ordem e de razão no meio do caos”. Nosso inspetor, assim como tantos outros, os artistas, os intelectuais e uma pequena camada social que ainda permanecia lúcida, só conseguiriam resistir até 1933, quando finalmente o nazismo se instala no poder. É quando a serpente rasga a membrana do ovo e começa a rastejar pelos atalhos da história.

Ingmar Bergman refugiara-se na Alemanha, em Munique, depois de ter tido problemas com a receita federal sueca. Provara-se sua inocência, mas, deprimido e abalado, preferiu se ausentar do país. Foi esse pequeno acontecimento pessoal que levou Bergman a um encontro inusitado com Dino de Laurentiis, que resultaria na produção de O Ovo da Serpente. O resultado artístico, dizem, teria ficado um pouco abaixo em relação a muitos de seus principais títulos. Uma obra menor. Pode ser. E uma razão se explica. Em O Ovo da Serpente, Bergman nos apresenta um roteiro tradicional, com começo, meio e fim, dentro, portanto, de uma estrutura de desenvolvimento narrativo bem aristotélico. Uma estrutura não muito afeita aos moldes narrativos utilizados pelo roteirista Bergman, que costuma se desviar do rígido ritmo aristotélico para se debruçar demoradamente, em cenas perfeitas, sobre questões humanas, para ele muito mais importante do que manter o espectador preso a reviravoltas fabulosas como artifício para mantê-lo atento e motivado. Bergman, decididamente, não faz filmes comerciais. Desta forma, o inusitado da carpintaria dramática exigida pelo filme acaba expondo certas fragilidades na preparação do grande clímax. É demérito? Não. Porque Bergman, com sua genialidade, se salva.

Primeiro, basta observar a magistral atuação dos atores, todos. Segundo, vale lembrar que Bergman não nos distrai com detalhes inúteis. E isto fica evidente na atuação de David Carradine, magistral, onde os gestos acabam sendo mais eloqüentes que a fala. A câmera denuncia o olhar atônito de Abel diante do que ele está vendo acontecer. Principalmente, no confronto final, com o médico Hans Vergerus (Heinz Bennent), quando Abel efetivamente descobre o que está acontecendo nos porões da Alemanha, onde já se iniciavam experimentos com seres humanos com a finalidade do domínio político e racial absoluto. O personagem Abel fala pouco, mas ele acompanha toda a dramática situação de Berlim, com suas fomes, com suas injustiças, com a complacência da polícia em não evitar que judeus sejam espancados e mortos, com um judiciário leniente, enfim, com um futuro sem rosto para uma Alemanha inerte, à espera do dia fatal. Abel silencia, porque não há outra forma de gritar. O prato insosso está pronto para ser servido. E os alemães, famintos e desempregados, vão se aproximando e se alistando como garçons. Vão aos poucos trocando a democracia pelo discurso de ódio de um silencioso ditador.

É verdade que os valores morais são intocáveis, sempre. Não são causa nem efeito. Eles pairam acima da lógica da ancestralidade, e são tão invisíveis, que passam despercebidos no dia a dia. Mas são esses códigos intocáveis que permitem uma convivência mínima aceitável entre humanos e sociedades. Portanto, quando esquecemos o outro é porque esses códigos foram violados. E o caos, então, se instalará. E era o que estava acontecendo na Alemanha, naquele novembro de 1923, quando Herr Hitler ensaiava, em Munique, seu primeiro ataque à democracia. É quando saem os valores e prevalecem as ideias. Pior. Ideias em forma de slogans.

Tudo isto, o que é dito acima, quem nos mostra é Bergman. Estamos apenas traduzindo em palavras fáceis aquilo que vem embutido numa dinâmica oculta, mas inexorável. É esta inexorabilidade do destino de uma nação que torna o filme O Ovo da Serpente assustador. Uma nação cega e surda, desesperada e sem rumo, chocando, silenciosamente, seu futuro desastre humano.

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Por Alex Ribeiro

Ah! A saudade…
Esse sentimento silencioso
Que vai ocupando os espaços
Da casa e do peito vazios

Que leva-me para longe,
Para os braços que me esperam
Num leito que pede o meu corpo
Numa pele que meu tato envolve

Que oferece o gosto suave do lábio
O perfume doce daqueles cabelos
O olhar que repete Capitu
O estado poético do encontro
Adiado pelo tempo

Ah! Saudade, sentimento vil,
Armadilha para corações distantes
Filme nonsense de um francês apaixonado
Ribalta para um homem solitário

Será verdade todo esse sentimento?
Ou armadilha de um coração que se vê só?

Ah, saudade! Quantas distâncias em teus encantos
Quantos silêncios em tua presença
Quantas ausências dentro de ti.

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O que fizemos com as nossas vidas?

Por Antônio Roberto Gerin

Com SARABAND (111’), SUÉCIA (2004), seu último filme, Ingmar Bergman não deixaria escapar a oportunidade de nos oferecer mais uma de suas obras-primas. E que obra-prima! Vamos ver um Bergman em estado puro, sem nos poupar o que há de mais obscuro e devastador no ser humano. O ódio entranhado na pele envelhecida como um troféu de vida sem afetos, sem cuidados, obsessivamente construída em cima de pequenos rancores que, como pedrinhas, foram sendo espalhados ao longo do caminho. À medida que Bergman vem recolhendo estas pedrinhas, vão emergindo na tela os fantasmas que habitaram sua filmografia ao longo de seu trabalho como roteirista e diretor. Talvez no anseio de saber ser este seu derradeiro filme, Bergman nos prepara cuidadosamente cenas antológicas, como a nos dizer, olha, eis o meu último filme! Sim. Saraband é seu último grito.

Marianne (Liv Ullmann) e Johan (Erland Josephson) são os personagens, marido e mulher, do belíssimo filme Cenas de um Casamento, de Bergman, lançado na Suécia em 1972, e que conquistou, à época, grande sucesso. Agora, trinta anos depois, em Saraband, a mesma Marianne, (novamente Liv Ullmann) resolve visitar Johan (novamente Erland Josephson), seu ex-marido. É, para ela, uma decisão difícil, já que há riscos de se ressuscitarem antigas dores e mágoas. Mas o impulso fala mais alto, e Marianne bate à porta do chalé de Johan, isolado numa ilha distante, no meio da mata. A presença de Marianne na casa do ex-marido vem transformar a rotina quase monacal daquele lugar em uma teia destrutiva de horrores. Os conflitos estão todos ali. Feito lenha empilhada, à espera do fogo. E conflito é assim, como a lenha. Só precisa que alguém acenda o pavio. Este é o papel que Marianne vai desempenhar na estrutura narrativa de Saraband. Encarregada de transportar os conflitos ao longo da trama, sua tarefa é incômoda e cada vez mais dolorosa. Mas Bergman, infelizmente, não oferece a Marianne outra escolha.

O filme se desenvolve dentro de uma estrutura narrativa muito interessante. Ele é dividido em dez capítulos, além do prólogo e do epílogo. Portanto, no todo, Saraband compõe-se de doze partes narrativas. O título do filme, Saraband, remete às Sarabandas, um tipo de canção que se espalhou pela Europa, cujo ritmo, sincopado e triste, rege a atmosfera emocional do filme e estabelece seu desenho de dança. E é exatamente isto que queremos enfatizar. A narrativa assenta-se na estrutura de uma dança. E numa dança que se dança aos pares. Isto quer dizer que cada uma das dez cenas será representada tão somente por duas personagens. Apenas o prólogo e o epílogo serão apresentados unicamente por Marianne que, como já foi mencionado, está encarregada de conduzir a narrativa.

E não são muitas as personagens do filme. Apenas quatro. Além de Marianne e Johan, já apresentados, compõem a trama o filho de Johan, Henrik (Börje Ahlstedt), e sua filha Karin (Julia Dufvenius), neta de Johan. São estas quatro personagens que vão se alternar, aos pares, na sequência das dez cenas. Evidente, o primeiro par a se apresentar será Marianne e Johan, na cena inicial do reencontro entre os dois, onde já se estabelecerão os elementos dramáticos que motivarão o desencadear dos conflitos familiares.

Vale lembrar, ainda nos referindo à estrutura narrativa do filme, que o segredo do sucesso do roteiro está justo no encaixe perfeito desta sequência de cenas aos pares, encaixe extremamente utilitário do ponto de vista da dramaturgia, porque ele vai permitir a Bergman ativar, com eficiência artística, as conexões já estabelecidas, a priori, nas relações de família. O que o encadeamento de cenas faz é atribuir a cada integrante seu papel na dinâmica dos conflitos. E, sem dúvida, já adiantando para o espectador, esta genial estrutura vai permitir assistirmos a uma das mais tenebrosas cenas de relação familiar de que o cinema tem notícia. Falamos do encontro entre Johan, pai, e seu filho, Henrik, cena onde a humilhação é apresentada em sua mais vil roupagem, o cinismo. Outras cenas se seguirão, no mesmo cruel diapasão, ressaltando aqui o núcleo mais terrível, que são as cenas entre a desamparada Karin e seu pai incestuoso, Henrik. Acorrentada emocionalmente a ele, ela clama por liberdade. Este é o grito primal que empurrará o drama para seu clímax. Eis, então, a estrutura do filme. Possibilitar que nos encontremos frente a frente, aos pares, com a nossa miserabilidade. Sem subterfúgios. Sem uma terceira personagem que nos ampare.

Ingmar Bergman, como em outros de seus filmes, também neste, Saraband, volta, maldosamente, a nos alertar. A verdade nos ronda, sempre. E esta é a nossa sina. A de ter que encará-la, mais cedo ou mais tarde. Enquanto não a encaramos, ela se transformará em nossos fantasmas. Aliás, fantasma pode nos parecer um termo abstrato, mas não é. Ele define tudo aquilo que não queremos enxergar. E por não querermos enxergar, restará à nossa verdade nos rondar, nos perturbar. E como salvo conduto, para nos protegermos do medo de que ela apareça, preferimos nos esconder atrás de pequenos ódios e rancores. É isto que fazemos no nosso dia a dia. E este será o nosso erro. O de não percebermos que a verdade jamais irá embora. E que, portanto, só ela poderá nos libertar.

Em suma, aqui está o tinhoso Bergman. Em sua trajetória como artista, tanto insistiu em nos fazer enxergar as nossas verdades, que passamos a ter medo dele. Quem assistiu a seus filmes Persona (1966) e a A Hora do Lobo (1968), perceberá a verdade nos cercando, como lobos famintos. Mas é ainda uma verdade perturbadora, sem a ameaça do ataque final. Em Saraband, não. É quando Bergman perde a paciência e nos joga na cara a que fim levam relações construídas à base de ódios e rancores. É termos que olhar para trás e perceber que é exatamente só isto que nos restam, ódios e rancores. Tantos! Mas aí já estaremos velhos e muito fracos para conseguirmos removê-los. Nunca vamos poder ver o que de bom existia por trás destes sentimentos. É isto que Saraband nos mostra. E foi este o último aviso de Bergman. Cuidar para que não nos transformemos em fantasmas de nós mesmos. Teremos sido seres humanos incompletos.

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