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Por Antônio Roberto Gerin

Tartufo, o hipócrita, tartufo, aquele que finge santidade para espalhar suas maldades, tartufo, aquele que tem a habilidade de fazer os outros pensarem que ele é exatamente aquilo que ele não é, santo! E se faz passar por santo justo para tirar proveito da bondade, do sincretismo e da ingenuidade do outro. Alto lá! Quando se fala em tirar proveito, fala-se em tirar, primeiro, a mulher do outro, depois, os seus bens! Eis, pois, Tartufo, a maravilhosa peça de teatro escrita por Molière, e levado ao palco, pela primeira vez, em Paris, no ano de 1664, sob o absolutismo monárquico de Luiz XIV, o rei Sol. Diante de uma caracterização tão precisa e tão forte da hipocrisia religiosa e moral, é quase dispensável dizer que a montagem de 1664 – particular ao rei, diga-se – causou furor nas hostes eclesiásticas e em seus respectivos devotos. O espetáculo não pôde ir a público, sob a alegação de que teatro não é lugar para pregar (ou despregar?) o evangelho. Molière tentou novamente em 1667, inclusive alterando o nome da peça, mas em vão. Só em 1669, com as benesses do rei Luiz XIV, é que o espetáculo subiu aos palcos, definitivamente, resgatando seu nome original, Tartufo.

Tartufo é um ninguém que vaga pelas ruas de Paris à procura de uma presa para as suas espertezas. E logo encontra em dona Pernela, e no seu filho, o burguês Orgonte, a oportunidade de se arrumar. E a trama ganha contornos cômico-dramáticos quando Orgonte, abduzido pela santidade de Tartufo, convida-o para vir morar em sua casa. Está armado o circo dos horrores, numa dimensão bem humana, encaixando as questões sociais e econômicas da época às relações de família, onde algumas pessoas enxergam o que querem, sem conseguir enxergar o que devem. Neste caso, enquanto a farsa não se resolve, a narrativa segue seu caminho, em ritmo de poesia e métricas, as rimas exalando humor e a hipocrisia ganhando expressões cada vez mais absurdas. E reveladoras.

O texto teatral Tartufo divide-se em quatro atos, o suficiente para Molière ir construindo o perfil tartufiniano do seu personagem. No primeiro ato, a reação da família à presença de Tartufo, capitaneada pela debochada empregada Dorina, e a tentativa, em vão, de alertar dona Pernela e Orgonte das intenções do intruso. No segundo ato, Orgonte vai adiante com sua devota cegueira, oferecendo a mão da filha, Mariana, então noiva de Valério, a seu venerado hóspede. No terceiro ato, a máscara começa a cair. As intenções de Tartufo se revelam para os que já sabiam delas, portanto, apenas vem a confirmação, acentuando, no jogo dramático, a estultícia de Orgonte, que não só resiste às revelações, como dá mais um passo, agora o fatal, que é a de entregar os seus bens ao espertalhão. Por último, o quarto ato, o desfecho, que não se revelará aqui, mas que, por uma razão que logo será explicada, merece um parágrafo único.

A censura, em quaisquer de suas formas mesquinhas, sempre existiu. Afinal, a censura é inerente ao poder. Será sempre necessário dominar o contrário. E Molière, com suas peças de costumes, aprazia-se em alfinetar, nos palcos, os traseiros das duas classes sociais que já começavam a entrar em choque àquela época, fins do século XVII. Falamos da burguesia emergente e da aristocracia decadente, pratos cheios para o arguto e perseguido Molière. E sobrava quem para proteger o dramaturgo, diretor e ator Molière? O rei, seu mecenas. Exaltar o rei é a garantia de proteção aos ataques dos ofendidos. E com o texto teatral Tartufo não foi diferente, pois o quarto ato registra muito bem esta atitude, digamos, um tanto esperta, de Molière, de bajular o rei, alçá-lo à condição de sábio mediador, mas que entendemos ser a única saída que ele tinha para continuar de pé, com seu teatro. Ao ler o quarto ato, o leitor logo perceberá as tais manobras políticas de Molière.

A arte tida como clássica perpassa pelos tempos, incólume, denunciando o presente como se a ele pertencesse. Em outras palavras, toda obra clássica tem que ser necessariamente moderna. E Tartufo, com suas artimanhas morais, com seu jogo de mentiras, com sua sede por riqueza e poder, define, em parte, o que é o homem moderno, apegado às pequenas hipocrisias como forma de alcançar seus objetivos e neles sobreviver. Como preço a pagar por tais hipocrisias, é preciso ao homem moderno se fingir de morto, ou sonso. É preciso abraçar a ingenuidade, permitir, em outras palavras, que algum Tartufo entre em sua casa. E o Tartufo, descolado na vida, escolherá sempre as famílias ingênuas. E assim é. Família ingênua, pátria ingênua!

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 Uma rapsódia de amor

Por Antônio Roberto Gerin

O filme BOHEMIAN RHAPSODY (135’), do diretor Bryan Singer, Reino Unido (2018), tem sido visto por milhares de admiradores daquele que foi um dos maiores performistas a subir nos palcos da música rock e pop. Nem se trata de colocar Freddie Mercury ao lado de um Michael Jackson, ou Madonna, só para ficar nestes dois. Cada um deles é. E Freddie era, é e, se depender dos fãs, será por muito tempo um destes artistas venerados pelo que eles simbolizam de sucesso, magia e, às vezes, de trágico. O filme, no entanto, não é propriamente uma biografia de Freddie. Aliás, passa um pouquinho longe. O filme se propõe antes a narrar a empolgante e às vezes conturbada trajetória da banda Queen, desde seu início, em 1970, até a morte de seu fenomenal frontman, em 1991. Sabemos que a banda não é só o vocalista. Quando se fala de rock, fala-se também do instrumental que dá o ritmo frenético, embala e leva ao delírio multidões que lotam estádios de futebol. Mas de nada valerá tanta virtuose sem aquele que move a multidão e retroalimenta seus delírios, E, neste quesito, Freddie Mercury era quase imbatível. E ele, como artista, era tão visceral, no palco e fora dele, que acabou por antecipar o seu fim. E aqui reside talvez o sucesso, a empatia e a força narrativa do filme. Não é um filme sobre Freddie, ou sobre a banda Queen, em que pese o roteiro se debruçar, à exaustão, sobre estas duas imagens. O filme trata mesmo é da busca frenética e obsessiva pelo sonho de ser o que se nasceu para ser. Freddie era a música e tudo que girava em torno dele apenas servia para reafirmar o que ele sempre soube. Que sem música não há vida. Tanto não há, que ele morreu por ela.

Neste diapasão, o filme começa e termina com um dos momentos mais emblemáticos da banda. Sua participação, em julho de 1985, no Live Aid, que aconteceria em Londres, no antigo estádio de futebol, Wembley. E logo ficamos conhecendo como a banda se formou, seu início, as dificuldades em se firmarem no mercado fonográfico, as primeiras composições, os primeiros sucessos, as turnês, as conturbadas relações interpessoais, leia-se, as dificuldades de Bryan May (Gwilym Lee), John Deacon (Joseph Mazzello) e Roger Taylor (Ben Hardy) em lidarem com as tempestividades de Freddie, e mais, o afeto que existia entre eles e que os unia, e um Freddie que não era apenas uma estrela, que tinha plena consciência da sua importância como artista e como provedor de sucessos, mas que se afundava, perpassando por sua sexualidade, no mundo insuportável da solidão. E nesta solidão, ele encontrava apenas uma luz. Acolhedora. E que viria a ser seu grande amor. Mary Austin.

Dispensamos aqui tecer maiores discussões sobre o filme propriamente dito, inclusive sobre os questionáveis ajustes temporais em prol de uma linha narrativa mais sensacionalista e dramática. Um roteiro precisa de clímaxes e anticlimaxes, o tempo todo, e nisto o roteirista abusou, nos colocando, os fãs que sempre querem saber da verdade, em sérias dúvidas sobre o que realmente é verdadeiro. Tirante as obviedades, aquilo de que já sabemos e que é inquestionável, ficam-nos, à medida que o filme vai se desenrolando, as perguntas. Isso aqui que estão nos mostrando é verdade? De fato, tiveram que vender a Kombi para arrecadar dinheiro para o lançamento do primeiro disco? Existiu de fato Kombi? Quem primeiro ficou sabendo da AIDS? E quando? Jim Hutton (Aaron McCusker) foi mesmo garçom? O que for que viermos a perguntar, uma coisa é certa. Em que pese não se tratar de uma biografia minuciosa do homem e ser humano Farrokh Bulsara (Freddie), portanto, para além do artista, de uma coisa temos certeza e nos encanta. O amor de Freddie (o incomparável Rami Malek, com grandes chances de levar o Oscar de melhor ator) por Mary (Lucy Boynton).

Um dos jornais de grande circulação catalogou este amor como “estranho”. Estranho? Como assim…? Por acaso existe amor estranho? Ou… Por que seria estranho? Só porque, dentro da sua bissexualidade, Freddie optou por vivenciar sua homossexualidade? E não poderia se comportar como “hétero”, isto é, amar uma mulher? A ponto de ele – eis a estranheza! – ter-lhe deixado a fortuna?

Talvez a grande dignidade de Freddie fora ter respeitado a mulher Mary, e nisto reside a grandeza do seu amor, assentada no caráter, portanto,  na lealdade à vida do outro. Mesmo tendo se afastado de Freddie, após ter ele assumido diante dela sua bissexualidade, e ter-se casado com outro homem e tido dois filhos, Mary nunca abandonaria Freddie. Foi, sim, um amor eterno, pois ele existiu até que a morte os separasse! Foi, pois, um destes amores para ficar, ternamente, no imaginário do público. Não nas páginas dos jornais.

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Por Antônio Roberto Gerin

Vassa Geleznova é uma peça de teatro escrita (e reescrita) pelo dramaturgo russo Máximo Górki, portanto, um texto que possui duas versões, situação esta rara na literatura. A primeira versão data de 1910, época pré-revolucionária, em que as primeiras tentativas de implantar a revolução socialista na Rússia haviam fracassado. Depois Górki voltaria a reescrever o mesmo texto, agora em 1936, conseguindo terminá-lo um mês antes de sua morte. Esta versão seria encenada, pela primeira vez, em Moscou, ainda no mesmo ano, em outubro de 1936. Não só pela distância no tempo, já que vinte e seis anos separam uma versão da outra, tampouco pelos momentos históricos, tão distintos, o que se pode dizer é que as duas versões são tão diferentes, inclusive o protagonista, que não cabe qualquer tipo de comparação entre as duas obras. Aliás, o ato de comparar, que poderia ser um referencial construtivo, acaba, na maioria das vezes, sendo pernicioso, e o é ainda mais quando se trata de produtos artísticos. Neste caso, a leitura de que trata esta resenha refere-se à segunda versão, com tradução, para a língua portuguesa, de Eugênio Kusnet e Fernando Peixoto, em 1967.

Máximo Górki foi um revolucionário de primeira hora. Nasceu pobre, vagou pela Rússia czarista, foi preso várias vezes, viu de perto a opressão ao povo russo, levada a cabo por uma estrutura de Estado corrupta e uma burguesia aproveitadora e inepta. Por sua militância e pela força de sua escrita, voltada a uma leitura crítica e lúcida das condições sócio-econômicas de seu país, Máximo Górki acabou se transformando num dos mais festejados intelectuais russos das primeiras décadas do socialismo soviético. Era amigo pessoal de Lênin, que via em Górki o “anunciador de tempestades”. A despeito de tudo, independente do que se pode discutir de ideologias e posições políticas acertadas ou equivocadas, o que sobra de Górki é sua genialidade, expressa numa das maiores obras primas do teatro mundial, “Os Pequenos Burgueses”.

Vassa Geleznova é uma empresária do ramo do transporte marítimo. Tinha no marido um homem inepto, beberrão e devasso, que estava prestes a sofrer um processo judicial por abuso de menores. Vassa via neste processo a hecatombe moral e social da família. Friamente ela aconselha o marido a se suicidar, como a única forma de livrar a todos da vergonha. O que Górki faz é aproveitar-se de uma trama simples e familiar, em que estão envolvidas personalidades múltiplas e opostas, para discutir o porvir de uma nova Rússia, livre da opressão, do parasitismo e da corrupção. Estabelecer o contraponto deste desenho cabe, de um lado, à matriarca, Vassa Geleznova, burguesa e conservadora, e, do outro, à sua nora, Raquel, revolucionária e paladina dos novos tempos. Só que Górki não poupa ninguém. Nem a insensível teimosia de uma, tampouco a ilusão ideológica da outra. A diferença é que Vassa representa o que é, e Raquel, o que pode vir a ser.

Enfim, os tempos sempre serão incertos, já que o homem transfere para as relações sociais e políticas aquilo que lhe é inerente, que é justamente a sua imprevisibilidade. Mas uma coisa é certa. O homem sempre buscará o melhor para si, a que chamamos de mudança, e nesta busca por mudança ele sempre encontrará alguém que se oporá a ele, acintosamente. Eis a interminável dialética. Seja o que for, em Vassa Geleznova, Górki representou um momento único na história russa, transformando o que ele próprio viveu e defendeu em pura obra de arte.

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