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 Uma história verde triste

Por  Antônio Roberto Gerin

Não existe na indústria cinematográfica cartão de visita mais vistoso do que o Oscar de melhor filme. GREEN BOOK (130’), do diretor Peter Farrelly, EUA (2018), tem esse cartão. Levou a estatueta, em 2019. Um dos bons indícios de que Green Book agrada são os aplausos que tem recebido ao final de algumas sessões de cinema. Vemos o espectador torcendo para que tudo dê certo e termine em mais uma inesquecível história de amizade, neste caso, entre um pianista negro e seu motorista branco. É um filme sobre o racismo. Nos Estados Unidos. Em plena década de 1960. Racismo, sabemos, é temática recorrente em Hollywood. Sempre rendeu bons filmes. E continuará rendendo, já que esta chaga social e suas tristes ramificações são um tema inesgotável. E doloroso, porque nos traz a percepção de que atitudes racistas nunca deixarão de existir. E de fato parece ser difícil extirpá-las, uma vez que o preconceito está atrelado a movimentos que têm por base a maldade humana. Quase que faz parte da genética. Mas o diretor Peter Farrelly, bem a seu estilo, nos salva de toda e qualquer angústia. Ele foge às dores e toma, de forma segura, a direção do cômico. O público, então, poderá rir. E ao final, aplaudir.

O que chama a atenção em Green Book é a ousadia da narrativa. Ela apresenta um motorista branco conduzindo um pianista negro pelas cidades do sul dos Estados Unidos. É querer briga! E esta parece ser a proposta do filme. Tanto é verdade que o pianista seleciona um sujeito truculento, pau pra toda obra, para ser seu motorista e guarda-costas. Se o norte dos Estados Unidos é mais tolerante à presença do negro, vamos para o sul, o velho e derrotado sul da outrora Guerra da Secessão! Lá eles não escondem a intolerância. Lá eles segregam. Lá eles determinam qual é o lugar do negro. O título do filme faz referência às normas compiladas que definem como os afrodescendentes devem se comportar por aquelas bandas. Que restaurantes frequentar, em que hotéis dormir. É o livro verde, o terrível Green Book. Portanto, descer para o sul, sendo conduzido por um motorista branco, foi a ousadia do negro. Uma ousadia e tanto, diga-se. O que nos leva a ficar esperando por um filme chocante, bárbaro e único. No entanto, a ousadia se transforma em armadilha quando o filme foge do trágico e envereda para o humor. O que leva o roteiro, a nosso ver, a tropeçar nas próprias pernas.

Donald Shirley foi um pianista americano, de origem jamaicana, um virtuose do piano que fez muito sucesso nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960, mas que continuou ativo como músico nos anos seguintes, até vir a falecer, em 2013. É inquestionável a importância deste homem no mundo da música clássica, ainda mais sendo um negro se apoderando de um instrumento tipicamente branco e europeu, o piano. Não é pouca coisa. Seria ótimo se o filme tivesse dissecado este desafio. Mas o objetivo é outro. Fazer um recorte racista da turnê de Don Shirley pelo sul dos Estados Unidos, tendo Tony Vallelonga como seu motorista e protetor. Portanto, distanciando-se do negro, o filme passa a tratar de outra questão, mais divertida. Deixa falar e agir o truculento e superficial, mas simpático e engraçado homem branco.

O ítalo-americano Tony Vallelonga, interpretado por Viggo Mortensen, trabalhava como segurança em uma casa noturna, no centro de Nova Iorque, que, por sinal, chamava-se Copacabana. O negócio fechou para reforma e Tony fica temporariamente desempregado. E assim o roteiro prepara nosso brucutu para ser contratado pelo refinado pianista Don Shirley (Mahershala Ali) para uma turnê de oito semanas pelo sul dos Estados Unidos. Trafegam de cidade em cidade, o pianista cumpre a agenda musical, e, como é de se esperar, logo surgirá algum problema relacionado ao racismo. É a hora de Tony Vallelonga entrar em ação e impor a justiça.

Independente de ter merecido ou não ganhar o Oscar, Green Book é um filme que vale a pena ser visto. Basta não criar a expectativa de que encontrará discussões complexas nesta delicada questão da segregação racial. É apenas um filme bem feito, que usa uma temática espinhosa para criar situações de riso, construindo, com isso, um roteiro, eis a armadilha, convulsivamente episódico. Fica claro que o filme não tem pretensão nenhuma de ir a algum lugar. E aqui reside sua honestidade narrativa.

Para finalizar, vamos dar uma rápida olhada no arco da personagem Tony Vallelonga. O arco é definido pela trajetória da personagem ao longo da narrativa, que é quando ela começa de um jeito e termina de outro, geralmente transformada. Para melhor. Pois, se analisarmos esta trajetória, vamos ver um Tony Vallelonga bem no início do filme jogando no lixo, com nojo, os dois copos usados por dois negros na cozinha da sua casa. E ao chegarmos ao final do filme, vamos ver o agora amável Tony recebendo na sala da sua casa, em noite de natal, de braços abertos, o agora amigo e solitário negro, o pianista Don Shirley. Podemos nos perguntar a razão de tamanha transformação. O filme nos sugere a resposta. A de que o homem branco é, definitivamente, um cara bacana. Pena que ser bacana não é o suficiente para ajudar a reverter a triste chaga social do racismo que assola os rincões abastados (ou não) mundo afora. Para mudar a lógica do racismo teria que mudar o roteiro do filme. Não é possível, o filme já está pronto. E ganhou o Oscar.

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Por Alex Ribeiro

Um dia fui criança
Que corria, que brincava
Que sorria a inocência
Nas coisas simples do meu dia

Um dia fui criança e não sabia
Do mundo que me esperava
Enquanto crescia, crescia…

Tantas obrigações vieram
Com os números de minha idade
Tantos sonhos não cabiam
Nas páginas da minha agenda

Eu era uma criança
E não sabia
O mundo me cobrava e
Eu sofria, sofria

E então viver é ser pontual
Cumprir à risca o ritual
Acordar, correr, trabalhar
Correr, almoçar, correr
Trabalhar, correr, descansar

Então corria para viver
Vivia para correr
Corria para sempre trabalhar
E vivia trabalhando

Ai de mim um pequeno atraso
Ai de mim um erro repentino
Ai de mim reclamar das horas de
Trabalho, trabalho, trabalho…

Eu sou criança e não sabia
Que o trabalho acaba
Com nossa vida singela
E suga nosso tempo,
Nossa saúde
Até deixar-nos tão sós
Tão anônimos, tão sós…

Um dia irei morrer
Um dia perderei tudo
E me substituirão no trabalho
E serei esquecido
E tudo será em vão

E serei de novo criança
Que brinca no chão
Sem obrigação, sem exigência
Sem o que me tira a existência.

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Por Leivison Silva

Casa de Bonecas é uma peça em três atos, escrita em 1879 pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906). Encenada pela primeira vez no Det Kongelige Teater, em Copenhague, na Dinamarca, Casa de Bonecas causou muita polêmica na época por questionar a hipocrisia reinante nas convenções sociais do casamento e o papel da mulher na sociedade. Além das inúmeras montagens teatrais, Casa de Bonecas ganhou várias versões cinematográficas e televisivas ao longo dos anos.

A peça conta a história de Nora, uma dedicada mãe de família e dona de casa, que é tratada pelo marido, Helmer, como uma criança grande. Helmer, no entanto, ignora o fato de que foi Nora quem proveu o sustento da família na época em que ele esteve doente. Nora havia feito um empréstimo, usando o nome de seu falecido pai, e agora pagava a dívida com pequenas economias, sem que seu marido soubesse. Tudo ia bem até que o advogado Krogstad, que trabalha no mesmo banco que Helmer, se vê prestes a perder seu emprego.

Krogstad pede a Nora que interfira a seu favor junto ao marido, ameaçando contar a Helmer sobre o empréstimo que ele lhe fizera, bem como sobre Nora ter falsificado a assinatura do pai nas promissórias, já que este havia morrido dias antes de ela contrair o empréstimo. Acuada, Nora pede a Helmer que conserve o emprego de Krogstad no banco, mas ele se recusa, dizendo que o emprego será dado à senhora Cristina Linde, uma antiga amiga de escola de Nora que havia ficado viúva e viera pedir ajuda a Helmer, justo no momento em que ele será nomeado diretor do banco.

Krogstad é demitido, e não conseguindo convencer Nora a influenciar o marido a nomeá-lo para um alto cargo no banco, ele escreve uma carta a Helmer revelando tudo o que Nora fizera. Após seu reencontro com Cristina, com quem tivera um relacionamento antes desta se casar, Krogstad decide voltar atrás em sua atitude contra Nora, mas Cristina o dissuade dessa ideia, sugerindo que vira muitas coisas naquela casa e que o melhor é Helmer saber de tudo.

Na noite do baile à fantasia, Helmer recebe uma carta que contava o que Nora tinha feito e, ressentido e preocupado em manter as aparências, acusa-a de não ter princípios e a proíbe de educar os filhos. Logo em seguida, ele recebe uma carta de Krogstad, que devolve as promissórias. Helmer se acalma e perdoa Nora, mas ela já não é mais a mesma. Nora compara o comportamento de Helmer com o de seu pai e, cansada de ser tratada como uma bonequinha de luxo, devolve-lhe a aliança e decide ir embora, deixando para trás os filhos e sua posição social.

Ibsen teve a sensibilidade de antecipar uma questão que pautaria aquele final do século XIX e todo o século XX, a emancipação da mulher. O dramaturgo norueguês pode ser considerado um pioneiro do feminismo, rompendo, com Casa de Bonecas, as barreiras sociológicas de seu tempo, uma época em que a mulher não tinha vida fora do casamento. Mesmo hoje, final da segunda década do século XXI, a mulher que opta por não se casar ainda é vista por muitos homens e, pasmem, por outras mulheres, como uma coitada, já que ela não foi suficientemente boa para ser escolhida por alguém. Isso, infelizmente, ainda existe, e em todas as classes sociais.

Ibsen foi bastante hábil em trabalhar a polaridade de sua heroína que de uma menininha indefesa passou a ter que ser uma leoa para ver os seus direitos reconhecidos. No início da peça, Nora é apresentada como uma mulher frágil, fútil, infantil até, que se submete docilmente às arbitrariedades e indulgências do marido. No final, somos brindados com um forte e lúcido discurso de empoderamento feminino, com Nora tomando as rédeas de sua vida em suas mãos e disposta a enfrentar tudo e todos pelo direito de pensar e agir de acordo com a sua vontade. Um tapa na cara da sociedade machista e opressora.

Embora muitas coisas tenham mudado na relação da sociedade com a mulher, nestes cento e quarenta anos, ainda é comum ver, nos dias de hoje, a mulher ganhando menos que o homem para exercer a mesma função. A mulher sendo discriminada na hora de ser promovida no trabalho. Não podendo ela vivenciar plenamente sua sexualidade, sob pena de ser rotulada com nomes os mais chulos possíveis. Isto sem falar nas inúmeras vítimas de feminicídio que, portas adentro de lares tradicionais e politicamente corretos, têm suas vozes caladas pelas mãos de homens que se esquecem da premissa mais básica da humanidade, a de que todos nós, homens e mulheres, somos iguais. Eis a questão. Ibsen pode estar bem distante no tempo, mas seu texto, na voz de Nora, ainda ecoa fortemente.

Casa de Bonecas é um clássico do teatro mundial que vale muito a pena ser lido e encenado em todos os tempos, inclusive, e talvez, principalmente, no tempo atual, em que, a despeito de todas as conquistas das últimas décadas, muitas mulheres, diferente de Nora, ainda não têm coragem de buscar o seu lugar ao sol e, por isso, se submetem a serem tratadas pelos homens como bonecas. Ou coisa bem pior.

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