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Por Alex Ribeiro

Prometeu Acorrentado é uma tragédia grega escrita por Ésquilo, por volta de 458 a.C., encenada pela primeira vez no festival de tragédias, acontecido em Atenas, naquele ano. Festival este que era parte de uma espécie de ritual religioso, que se realizava naquele tempo, onde os dramaturgos apresentavam trilogias de tragédias para toda a pólis. A influência religiosa sobre as tragédias gregas é significativa. A própria organização dos festivais tem muito mais de religioso do que de artístico, uma vez que são derivações das festas dionisíacas, celebrações de agradecimento pelas colheitas daquele período. É sob esta influência que Ésquilo escreveu tragédias que tinham como temas e personagens centrais as divindades gregas. Neste contexto, Prometeu Acorrentado tem uma característica particular. Todas as personagens são divindades, com exceção da mortal “Io. Não foram encontradas características como essas nas demais tragédias gregas a que temos acesso, o que nos leva a concluir que o dramaturgo possivelmente tinha a intenção particular de revelar e exaltar o poder divino, de forma incontestável. Esta característica está presente inclusive na maneira grandiosa com que falam as personagens, onde a dramaturgia se revela em forma sobre-humana.

Por celebrar as divindades no concurso de dramaturgos, Prometeu Acorrentado, evidente, faz parte também de uma trilogia. No entanto, das 90 tragédias escritas por Ésquilo, Prometeu Acorrentado é uma das 13 que se conservaram por inteira até a atualidade. Dentre as obras destruídas, de que algumas restaram apenas fragmentos, estariam as outras duas tragédias sobre o titã Prometeu, formando, em sequência cronológica, a trilogia Prometeu Portador do Fogo, Prometeu Acorrentado e Prometeu Libertado.

Zeus fica furioso ao descobrir que Prometeu roubou o fogo divino e levou-o aos homens. Como punição, ordena que o titã seja acorrentado numa montanha afastada, na região da Cítia. Lá ele tem os cravos fixados na rocha, através das mãos de Hefesto. Prometeu então começa a cumprir aquela sentença que durará séculos. Mas não deixa de ser estimado entre as divindades e recebe a visita das Oceanides, filhas do deus dos mares e do próprio Oceano, e por último de “Io”, ambos compadecidos do destino de Prometeu.

Mas Prometeu não se abate com o castigo que lhe foi imposto. Pois sabe que Zeus precisará de seus poderes. Prometeu tem o poder de saber as coisas que acontecerão nos futuros mais longínquos. Ele sabe quando será libertado e, também, quando Zeus será destronado. E é isso o que mais irrita o todo poderoso do Olimpo. Zeus está preocupado por não ter a informação fundamental para a manutenção do seu poder. Afinal, quem o destronaria? Com isso, Hermes, o arauto dos deuses, é enviado para dizer a Prometeu que, se ele se curvar e pedir perdão, Zeus irá suspender o castigo. A negativa de Prometeu gera um agravo ao seu castigo. Todas os dias, uma ave de rapina irá comer seu fígado, causando uma dor terrível, mas à noite o fígado se reconstruirá para ser novamente devorado no dia seguinte, e assim pela eternidade.

O nome Prometeu significa “aquele que vê antes”, e isso é o que move a trilogia de Ésquilo. Prometeu já sabia de tudo que aconteceria a ele, mas também sabia tudo que se passaria com Zeus. A fonte maior de poder de Prometeu está no conhecimento, na sua habilidade de saber o que vai acontecer. Talvez este seja o grande impacto da trilogia de Prometeu, se conectar ao leitor, que também tem a ânsia pelo conhecimento do futuro. Ao mesmo tempo, deixa-nos uma mensagem clara. Que o conhecimento pode nos mostrar possibilidades, e estas possibilidades nos dão a chance de escolher. Exaltar um deus tirano, nos humilhar perante ele? Ou resistir à sua pesada punição até que ele caia do seu trono? Fazer o bem aos homens, mesmo sabendo que será preso por isso, ou deixar que o fogo seja apenas um privilégio dos deuses? Parece-nos que a tragédia grega tem muitos pontos parecidos com política brasileira. E talvez seja isso, caro leitor. Estamos em meio à uma tragédia tupiniquim. E assim ecoa o grito trágico. Prometeu livre!

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As mentiras verdadeiras

Por Antônio Roberto Gerin

É aparentemente complicado falar de uma obra literária sem se deter em quem a escreveu. Falar do texto teatral O Pato Selvagem sem mencionar Ibsen? É consenso. Conhecendo a vida do artista melhor apreenderemos sua obra. E Henrik Ibsen é um exemplo desta simbiose entre criador e criatura. Sua obra está intimamente associada ao que ele pensava e como agia. Fez de sua arte um compêndio de pensamentos e atitudes que pudesse levá-lo a compreender melhor o mundo em que vivia. E transferia estas compreensões para as suas obras. Não à toa, Ibsen foi o grande dramaturgo do seu tempo e, ao morrer em 1906, deixaria um legado artístico imensurável. Alguns de seus textos, inclusive, vieram cercados de muita polêmica. Sua fala teatral mexia com a sociedade norueguesa, para Ibsen, atrasada e historicamente subserviente. Os embates foram tão fortes que Ibsen, voluntariamente, viria a se exilar na Itália, depois na Alemanha, em Munique, ficando dezessete anos longe do seu país. O Pato Selvagem, escrito em 1884, sob alguns aspectos, pode ser considerado a grande realização de Ibsen. Estão ali condensadas as suas principais virtudes como dramaturgo. Mais que isso. O Pato Selvagem resume a preocupação de Ibsen com as vulnerabilidades humanas – leia-se, mediocridades -, tão suscetíveis à tirania da mentira. E é sobre as mentiras e suas maldições que Ibsen gosta de escrever. Para ele, trilhar o caminho da verdade é a única forma de se estabelecer relações humanas saudáveis. Mas, uma vez construída a mentira, sair dela pode levar ao trágico. Ibsen nos alerta. Pensemos duas vezes antes de mentir, pois, uma vez criada a mentira, alguém se tornará vítima dela.

No contexto acima, podemos dizer que O Pato Selvagem, sob o ponto de vista de sua construção narrativa, gira em torno de uma mentira. É o punhal fincado no coração do modelo familiar burguês, modelo este que define a paternidade como uma atribuição intransferível. E se a paternidade for transferida? Bem. Problema sério, que precisará ser resolvido. Com outra mentira.

Hjalmar Ekdal é um fotógrafo, e está prestes a fazer uma grande descoberta, aliás, descoberta que ele exatamente não sabe bem o que é. Enfim, um gênio que a humanidade ainda não descobriu. É casado com Gina Ekdal, a mulher ideal para retroalimentar as ilusões do marido. Com ela tem uma filha, Hedvig, que se derrama de amores e admiração pelo pai. Mora também na casa o pai de Hjalmar, o velho Ekdal, antigo sócio de Werle, o industrial de usinas. Fora Werle quem arquitetara, no passado, as mentiras que levaria o velho Ekdal para a prisão. E, mais tarde, a mentira, aquela da paternidade, que causaria a tragédia irreparável. Tudo, pois, caminha em pleno equilíbrio, o cotidiano se sustenta nos disfarces, com aparências saudáveis, até que Gregers Werle, o filho do industrial Werle – aquele! -, desce lá de cima das usinas, onde esteve isolado por anos e vem fazer o quê? Dizer as verdades.

Uma das questões que se coloca em relação ao papel da literatura, o teatro em específico, é a de como sangrar as verdades sem que elas assustem o leitor – e o espectador. Sem que se transforme num compêndio de denúncias. Talvez seja este um dos dilemas do realismo, escola literária do século XIX, na qual Ibsen atuou como grande mestre. E acreditamos que este deva ter sido também o dilema do Ibsen realista. Afinal, o que se ganha com revelar a verdade? Como fazer prevalecer a verdade se o homem tem na mentira seu álibi moral? Sendo assim, até onde não seria melhor viver na mentira, que traz a paz aparente, do que insistir na verdade, que traz o peso insuportável da responsabilidade?

Enfim, a verdade, segundo Ibsen, ressurge da mentira desmascarada. Eis o grande teatro! Mas há o risco. Desmascarando uma mentira, poderemos encontrar outra, na camada inferior. E mais outra. Neste caso, não seria melhor pararmos de remexer nosso solo existencial e nos mantermos na superfície, protegidos pela mentira? Afinal, fazer prevalecer a verdade exige muita coragem. O teatro, enclausurado, fará isto por nós. Gritará a verdade que não vamos ouvir. Ademais, enquanto o teatro não vier para as ruas, estará tudo bem. Se vier, a gente chama a polícia e o enclausura novamente. Ou expulsa. Como fizeram com Ibsen, obrigando-o a se submeter ao autoexílio. Ibsen é a prova maior de que a verdade não tem lugar neste mundo. No máximo – e olha lá! -, nas salas de teatro.

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Uma viagem onírica pelo universo de Kurosawa

Por Leivison Silva

Sonhos (120’), Japão/EUA (1990), é um filme dirigido pelo mestre do cinema japonês Akira Kurosawa (1910-1998), um dos diretores mais importantes da história do cinema mundial. Com um roteiro baseado em sonhos que o próprio Kurosawa teve em diferentes momentos de sua vida, Sonhos foi financiado por Steven Spielberg, George Lucas, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, admiradores do grande cineasta japonês.

O filme é composto por oito episódios oníricos independentes, mas que dialogam entre si. São eles: “Um Raio de Sol Através da Chuva”, um menino que desobedece a mãe e vai para a floresta, onde assiste, escondido, à cerimônia de casamento das raposas, mas é descoberto por elas e deve arcar com as consequências; “O Jardim dos Pessegueiros”, durante o Festival das Bonecas, os espíritos das árvores devastadas aparecem para um menino e culpam a família do garoto por ter cortado todos os pessegueiros do jardim; “A Nevasca”, um grupo de montanhistas é surpreendido por uma nevasca, sucumbindo um a um, até que o último sobrevivente é atraído por uma Yuki-onna – espírito da neve do folclore japonês; “O Túnel”, um comandante, retornando da Segunda Guerra Mundial, atravessa um túnel e se depara com os espíritos dos soldados de seu batalhão, mortos em combate; “Corvos”, um estudante de artes visuais passeia pelas pinturas de Vincent van Gogh (1853-1890), interpretado no filme pelo diretor Martin Scorsese; “Monte Fuji em Vermelho”, a erupção da mais famosa montanha japonesa causa a explosão de usinas nucleares e apenas cinco pessoas sobrevivem; “O Demônio que Chora”, um mundo pós-holocausto nuclear habitado por demônios de diferentes castas; e “A Aldeia dos Moinhos D’Água”, um turista visitando um vilarejo, onde encontra um velho habitante local que fala do respeito que o homem deve ter pela natureza, e onde também presencia um alegre e colorido cortejo fúnebre.

Kurosawa está presente em cada sonho, sendo representado no filme por uma espécie de alter ego. Nas duas primeiras histórias, vemos um Kurosawa criança, interpretado por Toshihiko Nakano no primeiro sonho e por Mitsunori Isaki no segundo. Do terceiro em diante, o Kurosawa adulto é interpretado por Akira Terao.

Com poucos diálogos e focando bastante no visual, Sonhos é repleto de referências e arquétipos da cultura japonesa. O que vemos na tela é um desfile de imagens belíssimas, apoiado numa fotografia de encher os olhos, além de figurinos, maquiagem e coreografias impecáveis, tudo isso ao som de uma envolvente trilha sonora.

Cada sonho, sendo que alguns deles mais parecem pesadelos, vem recheado de símbolos e todos eles, em maior ou menor grau, é perpassado por uma mesma temática: o cuidado e o respeito que o homem deveria ter com a natureza que o sustenta. Servir-se dela sem agredi-la, e usar sua inteligência não para destruir, mas sim para trazer mais beleza e bem estar ao mundo. Uma reflexão bastante pertinente para esse começo de século. Concorda, caro leitor?

Sonhos é uma obra-prima do cinema. Poética e contemplativa, que hipnotiza, encanta e leva à reflexão. Indispensável na coleção de qualquer amante da sétima arte.

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