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Por Leivison Silva

O Berço do Herói é uma peça em dois atos, subdividida em dezesseis quadros, escrita em 1963, por Dias Gomes (1922-1999). A primeira montagem da peça deveria ter acontecido no Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro, em 1965, mas acabou sendo vetada na noite da estreia. No ano seguinte, Dias Gomes tentou, então, transformar a peça em filme, chegando mesmo a escrever o roteiro, mas foi interditado mais uma vez pelo governo militar que, na pessoa do general Riograndino Kruel, declarou que “enquanto os militares mandarem neste país, essa peça jamais seria encenada”. Em 1975, Dias Gomes tentou adaptar sua peça para a televisão, sob o título de Roque Santeiro, mudando os nomes de quase todas as personagens e acrescentando tramas paralelas que não existiam na peça original. A novela, que já contava com cinquenta e um capítulos escritos, quase trinta gravados e dez editados, foi proibida de ir ao ar na noite de sua estreia. A justificativa dos censores foi a de que “a novela contém ofensa à moral, à ordem pública e aos bons costumes, bem como achincalhe à igreja”. Proibida no Brasil, O Berço do Herói teve sua estreia mundial somente em 1976, no teatro “The Playhouse”, do Departamento de Teatro e Cinema da Pennsylvania State University, nos EUA. Em 1985, com os ares liberais da Nova República, a novela pôde enfim ir ao ar, tornando-se um dos maiores sucessos da televisão brasileira de todos os tempos, e tornando os personagens tão populares, que Dias Gomes se viu obrigado a reeditar O Berço do Herói, mudando inclusive os nomes originais dos personagens para os novos nomes que eles ganharam na adaptação televisiva.

O enredo de O Berço do Herói se passa em 1960. A peça conta a história de cabo Roque, um pracinha da Força Expedicionária Brasileira que desertou em pleno campo de batalha, mas que, por engano, foi considerado morto e transformado num herói de guerra. Sob a batuta do demagogo deputado federal Chico Malta, mais conhecido como sinhozinho Malta, a cidade natal de Roque, Asa Branca, havia crescido e se desenvolvido em torno do falso mito. Roque ganhou até mesmo uma viúva: Porcina, “a que era sem nunca ter sido”. Porcina era, na verdade, amante de sinhozinho Malta, que forjou uma certidão de casamento entre ela e Roque somente para trazer a amante para perto de si. Porcina havia conhecido Roque de passagem, numa pensão em Salvador, mas nunca fora casada com ele. No entanto, ganhou dinheiro e prestígio vivendo à sombra da mentira articulada por sinhozinho Malta.

Tudo ia muito bem, até o momento em que Roque volta à Asa Branca, quinze anos depois de ter sido considerado morto. Sua presença leva ao desespero as mais ilustres figuras locais, no caso, o Padre Hipólito, uma “figura tão contraditória quanto a própria Igreja Católica”, o prefeito Florindo Abelha, um homem sem personalidade e totalmente subserviente a sinhozinho Malta, e o ambicioso comerciante Zé das Medalhas, que havia enriquecido com a venda de medalhinhas com a efígie do falso herói da terra. Porém, o maior prejudicado com a volta de Roque é sinhozinho Malta, que institucionalizou a mentira para fortificar o mito e tirar vantagens pessoais.

Em O Berço do Herói, Dias Gomes aborda com muita picardia o mito do herói, mais especificamente um herói militar, tema bastante delicado tanto naquela época quanto agora, em 2019. A peça é um belo exemplo da brilhante carpintaria dramática de Dias Gomes, sempre apoiada num texto inteligente, dito por personagens riquíssimos e muito humanos. O Berço do Herói é uma excelente sátira sobre fanatismo religioso, manipulação das massas e sobre o jeitinho brasileiro de certos políticos de se perpetuarem no poder à custa da ignorância de uns e da venalidade de outros. Qualquer semelhança com a atual realidade do Brasil, infelizmente, não é mera coincidência.

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 Uma ficção real

Por  Antônio Roberto Gerin

O filme O ENCOURAÇADO POTEMKIN (73’), de Sergei Eisenstein, Rússia (1925), é, antes de tudo, um clássico. O resto, o que dizem dele, nada altera esta condição. O filme é panfletário? Ideológico? Não. Por uma razão simples. Se é arte, não é panfleto político, pois, se é panfleto, não será arte. São propostas incompatíveis, mesmo que o filme, neste caso, venha a tratar de uma temática profundamente política, a revolta de um povo contra a opressão sem limites de um regime secularmente implacável. Agora, querer encontrar no filme propósitos de propaganda política é forjar uma ideia de arte com a qual Sergei Eisenstein não compactuava. O propósito do diretor era outro. Mostrar a realidade cotidiana do humano dentro do conceito do oprimido versus opressor, mesmo que este conceito viesse a servir, como uma luva, ao ideário revolucionário russo. A forma desmedida com que a milícia czarina reprimiu, em junho de 1905, o apoio dos cidadãos de Odessa à revolta dos marinheiros do navio de guerra russo Potemkin revela que, independentemente de onde sopram os ventos, o poder sem limites tem que ser combatido, sempre. E a Rússia daqueles tempos, tardiamente ingressada no sistema de produção capitalista, e que já dispunha de uma classe operária volumosa, mostrou rapidamente sua impaciência com os velhos mecanismos de opressão. Nessa batuta, Sergei Eisenstein desenha nas telas, em 1925, uma réplica emocionante dos acontecimentos de 1905, um prelúdio da revolução bolchevique de 1917, da qual Sergei Eisenstein seria um entusiasta de primeira hora. Sim! Eisenstein era um revolucionário. Mas era, antes de tudo, um artista. E, ao ser um artista, ele podia falar de qualquer coisa, mesmo daquilo em que ele tanto acreditava.

O filme parte de um mote simplíssimo, essencialmente humano. A fome. Necessidade primária, portanto. Capaz de mover, de forma implacável, essa tensa e exuberante narrativa. Os marinheiros comiam sopa de carne podre e se revoltaram por isso. Os oficiais reprimem a revolta do jeito que eles sempre fizeram, com a submissão física. E com a morte, se preciso for. Estava armado assim o cenário para que a engrenagem do motim começasse a se movimentar rumo à tragédia. Até chegar ao ingrediente essencial para o sucesso da revolta. O mártir, aquele que dá sua vida pela causa. O marinheiro Vakulinchuk é executado pela guarda e seu corpo é exposto no porto de Odessa como símbolo da mais emblemática opressão. A de alguém que é morto simplesmente por querer comer uma sopa.

O que nos chama a atenção em relação à estrutura narrativa é que não existe uma personagem que movimenta a trama. A personagem é o povo. Este é o ideário socialista, o povo como a personagem da História. Ele só vai precisar de uma razão para agir. E a razão, como dito, foi a sopa. Feita de carne podre. Que leva os marinheiros a confrontarem o comando opressor do navio, que os leva a se apoderarem do navio, a fundearem o navio no porto de Odessa, cuja coragem, simbolizada pelo martírio de Vakulinchuk, leva-os a receberem a adesão em massa da população e, finalmente, na sequência, o massacre, numa memorável sequência de cenas nas escadarias de Odessa. E o ponto de tensão do filme chega a seu pico quando o encouraçado se prepara para enfrentar a esquadra do Czar. Não há recuo. Os pistões das máquinas a vapor do navio batem sincronicamente seu ritmo nas águas do Mar Morto, rumo à batalha inevitável. Resta ao espectador ficar ouvindo a batida tensa dos pistões. É o povo em marcha. É quando o povo se transforma em personagem. E quando o povo se transforma em personagem, sabe-se, a historiografia conta-nos repetidas vezes, não há quem o detenha.

Sergei Eisenstein foi o precursor de um cinema feito essencialmente de imagens geradoras de tensão. Aquela situação em que o espectador mal tem tempo para respirar, sem poder jamais tirar o olho da tela. Era ainda 1925, estamos falando do cinema mudo, que utilizava os intertítulos para narrar os acontecimentos principais, mantendo assim o espectador dentro da sequência dramática do enredo. Mas Eisenstein levou ao extremo a função da imagem como a grande voz narrativa. Fez com que as imagens fossem, na sua duração, repetição e ritmo, geradoras de tensão. Eis a grande sacada. É preciso antes de tudo prender a atenção do espectador, e fazê-lo, de preferência, se contorcer na cadeira, prendendo o próximo suspiro. Este é o cinema de Eisenstein. Cada imagem está terrivelmente ligada à seguinte, de forma que o espectador mal terá tempo para respirar. Numa situação passiva, o espectador é flagrantemente sequestrado pelas imagens. Eis o que nos legou Eisenstein. E a Sétima Arte agradece.

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Por Alex Ribeiro

A dor mal cabe no peito
Tamanha é a tristeza,
E a alegria, minúscula
É do tamanho de um instante
Se perdendo por entre os dedos

A tristeza é maior do que a gente
É um fardo pesado,
Que se arrasta sofrendo
Ou que nos afunda no mar

Ela às vezes sucumbe o homem
Hora ou outra se alimenta de nós
Às vezes, dos outros ela vem
Sem cerimônia me refém
Numa bússola sem norte

Será ela que desgasta nossa alma
Assim como os anos em meus ossos?

É um vício, já disseram
Está nos versos, nos poemas
Nas músicas, nos dilemas
No sistema nervoso central

Na central da minha vida
Pequena e sentida.

Alex Ribeiro