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Por Antônio Roberto Gerin

Manoel Antônio Álvares de Azevedo (1831-1852) foi, antes de tudo, o grande poeta romântico de sua geração. Mas ele não foi apenas o poeta. Macário, escrito pouco antes de morrer, é sua primeira e única dramaturgia, onde ele deixa antever o grande dramaturgo que poderia vir a ser se não tivesse morrido antes de completar vinte e um anos de idade. Foi, ainda, romancista e ensaísta, portanto, um currículo invejável para quem viveu tão pouco. Escrevera toda sua obra em pouco mais de três anos, dos dezessete aos vinte. Esta precocidade nos chama a atenção para o que ele poderia ter sido como artista e intelectual. Como assim, poderia ter sido? Ele foi. Esta é a questão. O pouco que produziu revela uma obra portentosa e que é objeto de admiração e estudo até os nossos dias. São admiráveis o vigor criativo e a pulsante poesia que transborda de seus escritos, uma força criativa quase inexplicável para um jovem que já dominava o grande conhecimento e que, ao frequentar o curso de direito no Largo São Francisco, era tido como um aluno brilhante e insuperável. Sua morte precoce veio apenas, e lamentavelmente, interromper a trajetória de um dos nossos grandes artistas em um país que começava a construir sua literatura e sua história cultural. É, pois, Álvares de Azevedo, uma de nossas primeiras luzes literárias, cujo brilho intenso ainda hoje nos ilumina.

Macário é antes de tudo um testamento de vida. E pode ecoar como um grito de desespero diante do abismo da morte. Sua narrativa gira em torno dos pensamentos e conflitos existenciais da personagem Macário que, eis a sacada de Álvares de Azevedo, se cinde em outras personagens, como espelhos que defletem uma alma atormentada, embebida do pessimismo e do ceticismo tão característicos aos românticos daquela época, frente a um eu tão exacerbado que o poeta absolutamente não sabe o que fazer consigo mesmo. É quando ele grita. “Por que viver se o coração é morto?”. Esta cisão de que falamos acima se dá nas personagens Satã, que traz a Macário o aviso de que a vida está no agora, e o limite dela é o pecado do amor. E, em outra personagem, Penseroso, o contraponto exato de Macário, que transfere para ele, Penseroso, a obrigação de morrer. Macário sobrevive, tão somente para perambular pela vida.

A poesia subverte a realidade. Ela canta os males da alma, mas não os espanta. Portanto, a poesia é traiçoeira, é a amante que se levanta da cama com um punhal na mão. E Álvares de Azevedo, pelo que se depreende da sua personagem Macário, nunca conseguiu tirar a faca das mãos de sua sedutora. Preferiu desistir dela desistindo da vida. E isto tanto é verdade que ele mesmo, Macário, afogado em seu romantismo suicida, revela, através de seu alter ego Penseroso, toda a sua dor. Diz ele. “Parece que no coração humano há um instinto que o leva à dor, como o corvo ao cadáver.”.

Uma última sugestão antes de encerrar esta breve resenha. Um conselho para os que amam a poesia e/ou para os que apenas amam a lucidez. Leiam Macário como um testamento de uma época em que nossos homens começavam a sonhar em projetar um país tão jovem e tão imenso na sua busca por uma identidade genuinamente brasílica. Álvares de Azevedo compunha seu caminho através de sua genialidade, nos legando uma obra que é nossa, e que não pode ser esquecida, sob pena de nos perdermos em nossa não identidade. É nos reconhecermos em nossos grandes artistas que nos reconhecemos em nós mesmos. Como cidadão ligado a uma pátria, e como ser humano se lançando na eternidade.

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Sucesso de primeira

Por Antônio Roberto Gerin

 CÃES DE ALUGUEL (99’), com direção de Quentin Tarantino, EUA (1992) é o primeiro filme dele, Tarantino. Primeiro? Sim. Mas… Primeiro, e já tão bom?! Pois é. O cara começa lá em cima, já nos oferecendo uma obra seminal, onde estão pontuadas já algumas marcas tarantinianas que fariam a fama de Quentin. Talvez, desconheço, nenhum outro diretor tenha começado sua carreira cinematográfica com tanto ímpeto. Que o catapultasse à fama quase imediata, a despeito da fraca bilheteria. Nem mesmo um Ingmar Bergman alcançou esta proeza. Mas, o que é que Bergman tem a ver com este sanguinário Tarantino? Nada. Exceto por duas razões. Os dois são brilhantes no que fazem. E, acima de tudo, apesar de os dois trilharem caminhos estéticos totalmente opostos, eles se encontram por uma qualidade que lhes é peculiar e quase imbatível. A genial capacidade de esgrimirem diálogos. Habilidade comum, com fins diferentes. Tarantino se vale dos diálogos cambaleantes e recheados da ideologia pop para preparar a violência brutal. Bergman, do contrário, usa diálogos sutis e pungentes para preparar a dor incontida. Fora, pois, as preferências, não podemos negar que em ambos a palavra e a imagem andam de mãos dadas, numa generosa oferta à grandeza da sétima arte.

A estrutura narrativa de Cães de Aluguel é simples, e nada original. Um velho gângster contrata seis bandidos para executarem um grande roubo de diamantes numa joalheria. E já está determinado. A operação dará errado, com mortes de bandidos, policiais e civis. Alguns dos assaltantes sobreviventes retornam à base, um velho depósito abandonado, onde, de forma linear, a narrativa se desenvolverá. Linear, porque tem, na sequência, o começo, o meio e o fim. Mas Tarantino utiliza-se dos flashbacks para desenhar o perfil psicológico e biográfico de cada personagem bandido, de forma a entendermos o porquê do comportamento de cada um deles, naquele depósito, após o fracasso. Tudo girará em torno de uma única questão, que motiva a narrativa e dá a ela perspectivas dramáticas imprevistas. Imprevistas? – questionaria o espectador. Em se tratando de Tarantino, sabemos o que vai acontecer. Vai espirrar sangue pelas paredes! Sim, vai jorrar sangue pelo chão, mas não precisamos contar como. O que vale dizer, e não é spoiler, é que entre os seis bandidos há um alcaguete. Alguém avisara a polícia do assalto. E a eficiente polícia americana chegará ao local bem na hora em que botam as mãos nos diamantes.

Como dito acima, Cães de Aluguel é o primeiro filme de Tarantino em que se denota a antecipação estilística de um dos grandes artistas do cinema moderno. Está ali a estética do sangue. E o sangue, neste filme, acaba se transformando numa personagem silenciosa, estampada nas camisas branco-avermelhadas dos bandidos.

Outra característica a se ressaltar é a manipulação do cotidiano como forma de manifestação natural da violência, como se, ao se discorrer de uma forma errante sobre uma música da Madonna, Like a Virgin, estaríamos desprezando o impacto da violência na história da humanidade. A humanidade sempre foi violenta, e nossos arquétipos, com nossos pesadelos dos tempos das cavernas, denunciam o mundo violento em que nossos antepassados viveram. Sendo, ao longo dos milênios, apenas domesticados por regras civilizatórias. Mas a violência nunca saiu de nós, é o que os filmes de Tarantino nos avisam. Por isso que, ao assisti-los, eles não causam tanto prazer.

Para encerrar, apenas mais uma das tantas características desta estética de violência na cinematografia de Quentin Tarantino. O duelo. Todos conhecem esta prática aristocrática da defesa da honra, que depois seria transportada para o velho oeste, onde fez história em cenas icônicas espalhadas pelo gênero faroeste, fazendo a delícia apoteótica de muitos bangue-bangues. Ficando com apenas um exemplo, a cena final de Era uma Vez no Oeste, em que finalmente Harmônica (Charles Bronson) vai prestar contas com o seu passado ao duelar com Frank (Henry Fonda). Só que Tarantino sofisticou esse duelo e deu a ele toques bem mais violentos. Agora não se trata de defender a honra. Não se trata de combinar o local onde se dará o duelo. Com testemunhas previamente acordadas. Não. O duelo em Tarantino é espontâneo, movido pelo impulso da sobrevivência, dentro de uma circunstância dada, geradora da tensão, portanto, deste impulso. E mais! Tarantino aboliu as distâncias. Não há como errar. Em algumas cenas, a arma está já espetada na carne. Só falta explodir. Enfim, na dinâmica da disputa, para que alguém viva, alguém terá que morrer.

Mas onde está a diferença com os antigos duelos? A quantidade de sangue? Sim. Por que agora os duelos são múltiplos! “A” aponta a arma para “B”, que está apontando para “C”, que aponta para “D”, cuja arma está apontada para a cabeça de “A”.  Não é o duelo final de Cães de Aluguel, aqui omitido, para não darmos spoiler. Enfim, não são mais duelos, portanto. Agora são duelos multiplicados em “trielos”, “quadrielos”, ad infinitum! Caro espectador, quer coisa mais deliciosa do que esta…?!

Já em Cães de Aluguel, Tarantino nos traz esta deliciosa orgia de horrores, que se perpetuará em outros de seus filmes, com a ressalva para o grande múltiplo banho de sangue a ocorrer no subterrâneo de uma taverna francesa, em Bastardos Inglórios. Na verdade, Tarantino soube, como ninguém, escolher os ingredientes narrativos certos para alcançar seus fins estéticos. E ele sabia o que fazer já quando se propusera a rodar o seu primeiro filme. Não à toa, Cães de Aluguel é o que é: um filme para ser assistido. E cultuado.

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Por Alex Ribeiro   

A Mandrágora é uma comédia de Nicolau Maquiavel, escrita por volta de 1520, período este em que o autor, muito conhecido por sua obra política, estava radicado em San Casciano, em Florença, na Itália. A criação de A Mandrágora, considerada sua melhor comédia, sucedeu à sua grande obra, O Príncipe, num momento em que Maquiavel se dedicava ao que chamou de distrações literárias. A peça teve estreia em 1520, na Casa de Bernardino di Giordano, passando nos anos seguintes por Veneza e Roma, todas com sucesso grandioso. No Brasil, a peça teve sua primeira montagem em 1963, e recentemente ganhou montagem do Grupo Tapa (foto), de São Paulo.

Maquiavel não dava tanta importância às suas criações dramatúrgicas, visto que seu grande objetivo era a vida política e, com isso, consequentemente, tinha maior apreço pelas suas obras que tratavam deste assunto. Apesar disso, A Mandrágora tem um valor histórico e estético importante, visto que quebra com algumas estruturas dramáticas da comédia daquele período. Maquiavel não faz as concessões a que estavam acostumados os comediantes de até então, que após dar boas gargalhadas ao público, voltavam para finais harmoniosos, normalmente finalizando a peça com um casamento. O autor cria, sem medos, uma estrutura dramática que revela o comportamento obsceno da Igreja Católica e desnuda a corrosão da moral do seu tempo, culminando num final totalmente novo, onde o casamento é por completo arruinado.

Calímaco é um jovem que acaba de regressar de Paris e chega a Florença para conhecer a beleza de uma mulher, cuja fama atravessara as fronteiras dos dois países. É Lucrécia a bela mulher, esposa de Messer Nícia, um velho advogado, abobalhado, porém, muito rico. Nosso jovem protagonista se vê apaixonado pela belíssima dama, e se angustia com o desejo de tomá-la em seus braços. Porém, duas coisas o impedem. Lucrécia ser casada, e ter uma conduta retíssima, difícil de se convencer a qualquer ato que fuja à sua conduta moral rígida, orientada pelo Frei Timóteo.

É em Ligúrio, sujeito conhecido como parasita em Florença, que Calímaco acha apoio para conquistar a mulher que deseja. O primeiro, homem de amizade e confiança de Messer Nícia, sabe que este está louco por ter filhos com Lucrécia, mas tem falhado angustiosamente. É a partir daí que ele vai convencer Nícia a deixar outro homem deitar-se com Lucrécia, que sob o efeito da mandrágora preparada por Calímaco, passará a dar filhos ao Messer. Tudo está combinado, só resta convencer Lucrécia.  E é nesse momento que entra o papel corrupto da igreja na pessoa do Frei Timóteo. Seduzido pelas promessas de Calímaco, ele convence Lucrécia e sua mãe Sóstrata a sucumbir ao plano de Ligúrio. E eis que nossos protagonistas se encontram, não como um belo casal direito, mas, sim, como um par de amantes ardentes.

O riso é também garantido em Maquiavel. Ao ler e assistir a A Mandrágora, o leitor poderá se deleitar, assim como o faz nas comédias tanto de Shakespeare como de Molière. Mas o que mais nos impacta é como Maquiavel nos conduz para a corrosão da moral sem que ao menos tomemos consciência disso. De repente, estamos ali diante de valores deteriorados e mantidos por pura aparência. E esse é um dos papéis da arte, desnudar, esteticamente, aquilo que mantemos nas aparências. Maquiavel, talvez por estar em contato íntimo com o poder, desnudou, com maestria, aquela Florença. E nos convida a desnudar também o nosso tempo, os nossos príncipes em seus palácios, em seus tribunais, em seus púlpitos e, vejam só, em seus tronos em suas salas de estar.

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