Publicado em Categorias Contos, Cultura, Literatura

Por Geraldo Lima

“Como nessa gente sadia, forte, alegre, tudo está equilibrado, como em suas almas e cérebros tudo está aplainado e concluído.”

           (Tchekhov – Uma crise)

 Uma enfermidade de gente deitada ali, onde, há pouco, o sol se esparramava todo, ilha de luz convidando ao exílio, ao evadir-se do mundo. Agora a penumbra serve de esconderijo, e o corpo mescla-se ao turvo, deixando quase de existir. Não há mesmo o aonde ir. Nem mesmo o pensamento escapa da jaula do crânio. Criar musgo, fundir-se ao piso, deixar que o ser míngue, — respiração quase nenhuma, dando conta, no entanto, ainda da presença de uma alma no corpo.

O baque seco duma bola contra o muro arranca-a desse estado de falência múltipla.    

Outra vez a vontade de fumar, irredutível. Por mais que resista, dizendo a si mesma que não moverá um músculo sequer para atender aos apelos do cérebro, acabará flagrando-se com a carteira de cigarros na mão, cheia de culpa, salivando, trêmula, e, nesse ínfimo intervalo de tempo, entre o mover da mão e a espera aflita dos neurônios, ensaiará ainda uma resistência, tépida, mais rendição que luta.

Por que promete a si mesma que lutará contra tudo e todos se, no fundo, sabe que lhe faltará a energia e a obstinação necessárias? Se vai recuar diante dos primeiros sinais de realidade brutal e inane, por que então se colocar em guarda contra moinhos de vento? Mário sempre lhe cobrava uma atitude mais firme, uma tomada de decisão que não sucumbisse aos primeiros apelos da desrazão. Durante anos e anos suportou a corrosão do seu discurso, a impiedade dos seus gestos pulverizando as manhãs e os anoiteceres.

É mesmo a figura inteiriça de Mário que brota do nada e põe-se diante dela derramando palavras por todos os orifícios. Quer subjugá-la, deixá-la paranoica, convencida de ser realmente um ser fraco e inviável. Num repetir incessante, esvazia-a de si mesma. Quer que ela se purgue por sua entrega aos afagos da morte, por seus passeios para além dos escombros da realidade. Difama-a perante o mundo inteiro. O grande canalha, tão resoluto, sem lacunas, sem brechas por onde a dúvida e o desespero possam penetrar. Pudesse, expunha num outdoor minúcias da sua vida, dando conta das inúmeras vezes em que ela caiu sob o peso da cruz que carrega, segundo ele, sem motivo algum.  Caiu e teve de se levantar sozinha, sempre, sempre, porque esperar por um Simão aqui, nessa via-crúcis cotidiana, nesse cilício, seria perda de tempo, não é, Mário? Não é, seu grande crápula?! Sabe que é inútil se indignar assim: ele já se encontra a léguas de distância, surdo como sempre a todos os seus gritos.

A bola bate de novo no muro, estrondosa. É assim quase todos os dias, mal escurece. A meninada parece não ter outra diversão senão essa. O diabo é que vez ou outra a bola acha de cair no seu quintal. Então já viu: se ela não apanha a infeliz e a joga de volta para os meninos, logo um deles se atreve a saltar o muro para apanhá-la. Tem xingado, esbravejado, feito papel de louca, mas parece que nada disso tem adiantado, já que continuam invadindo o seu espaço e troçando da sua cara.  Mas agora está disposta a enfrentar tudo isso. Está mesmo disposta a dar um fim a tudo, tanto à voz  de Mário, — voz de lanho que lhe flagela os ouvidos — quanto a esse tormento de menino gritando e saltando o muro.

Ah, que esforço tem feito para reter na mente os derradeiros fios de razão. Entre uma pane e outra, põe-se num labor intenso, dando nova feição à casa, espanando os móveis, trocando cortinas, afugentando insetos.  Súbito, desperta-se para o óbvio: precisa varrer a imagem de Mário da sua mente; depois de tantos anos, ele ainda está aí dizendo o que ela deve ou não fazer. É uma questão de saúde!  Há um desejo profundo de recuperar a ordem e a clareza. Nesses momentos, sentindo-se dona dos próprios atos, planeja abandonar o cigarro, mentaliza mesmo todo o processo, e chega a jogar fora o maço que acaba de comprar. Quer se livrar de tudo o que a oprime, principalmente da voz de Mário. Espera, ao final de tudo, ter enterrado para sempre essa voz vazia e seca.

Saudade mesmo é da gata que sumiu há mais de um mês. A gata que miava do lado de fora quando retornava dos longos passeios pelos quintais da vizinhança. Espera ainda que ela retorne e arranhe, aflita, o verniz da porta. É tão fraca, tão pusilânime, que vai deixar que ela entre como se nada tivesse acontecido.

Acaba de abandonar a área de quase-trevas e busca desesperada pela carteira de cigarros. Encontra-a metida no vão da estante, num lugar onde ela costuma esconder todas as outras. Sabe que, no fundo, tudo não passa de um jogo. E tem blefado o tempo todo, jogando com os limites da lucidez e da demência. Porém já não tem tanta certeza de quem está decidindo as regras desse jogo. Pode muito bem ser ela ou outra que a corrompeu nos mínimos detalhes, fazendo com que se mova fragmentada e sem memória. Quando foi mesmo que escondeu essa carteira? Tem quase certeza de que foi há pouco tempo, quase, quase, mas pode ser também que já estivesse aí há dias, ou meses! E deve haver outras tantas escondidas por aí — centenas! — entre vasilhas, roupas, móveis e enciclopédias.

O cinzeiro transborda, denunciando as inúmeras vezes em que ela recuou, quebrando a promessa de abandonar o vício. Tudo, tudo transborda. A voz de Mário também tem vindo com mais frequência à sua mente, num martelar corrosivo, purulento. Parece também que hoje os meninos estão gritando mais, numa zoeira infernal.  Mas está preparada para o caso de a bola cair dentro do seu quintal. Está preparada para tudo, para a vida e para a morte. Para a enchente e para a manhã de sol espocando na janela.

Ouve súbito baque de pés aterrissando no chão do quintal.

Já esperava por isso. No vão da mente, turva e desassossegada, tudo está planejado. Nunca, nunca agiu com tanta lucidez assim. Voz alguma poderia fazê-la recuar agora, e pela primeira vez irá ao cerne da questão. Vai insurgir-se contra esses mandos que, mesmo depois de anos, ainda teimam em reverberar pela casa.

Contaminada por essa certeza, vai à cozinha e apanha a faca.

Ao abrir a porta, surpreende o menino tentando escalar de volta o muro, tentando retornar à vida, à claridade da rua, ao sol da infância.  Mais alguns passos e poderá alcançá-lo em pleno desespero de pássaro tentando atravessar o vidro da janela.

Este conto faz parte do livro Baque [LGE Editora].

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

Publicado em Categorias Cinema, Cultura, Literatura, Resenhas

Um épico brasileiro

Por Leivison Silva

Deus e o Diabo na Terra do Sol (120’), Brasil (1964), é um clássico do cinema nacional, dirigido pelo grande cineasta brasileiro Glauber Rocha (1939-1981). Símbolo máximo do Cinema Novo, movimento cujo lema era “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”, Deus e o Diabo na Terra do Sol foi efusivamente aclamado pela crítica em seu lançamento e chegou a concorrer à Palma de Ouro, no Festival de Cannes, em 1964. O filme é presença garantida nas listas de melhores filmes brasileiros de todos os tempos.

Deus e o Diabo na Terra do Sol conta a história de Manuel (Geraldo Del Rey), um vaqueiro que, após um desentendimento sobre a partilha injusta do gado com o coronel Moraes (Milton Rosa), para quem trabalhava, acaba matando-o, e tem que fugir pelo sertão com sua esposa, Rosa (Yoná Magalhães). Em seu caminho, o casal encontra o religioso Sebastião (Lídio Silva), o “Deus Negro”, de quem Manuel, à revelia de Rosa, se torna seguidor. Ela percebe que as promessas do beato não podem solucionar, na prática, os problemas das pessoas que o seguem. Sebastião, uma óbvia analogia à Antônio Conselheiro (1830-1897), era uma figura indesejada para os latifundiários da região, que contratam Antônio das Mortes (Maurício do Valle) para matá-lo, e a todos os seus seguidores. No entanto, Sebastião é morto pelas mãos de Rosa, revoltada, após o beato exigir que Manuel sacrificasse uma criança. Antônio das Mortes e seu grupo matam todos os seguidores de Sebastião. Apenas Manuel e Rosa sobrevivem ao massacre.

O casal volta a vagar pelo sertão, até encontrar o bando de Corisco (Othon Bastos), o “Diabo Louro”, um ex-integrante do bando de Lampião. Manuel vê no cangaço uma oportunidade de mudar de vida, porém, mais uma vez se deixa levar, agora por um turbilhão de violência, e é Rosa quem o chama novamente à razão. Uma vez que não existe mais o beato Sebastião, a grande ameaça para a elite local agora é Corisco. Antônio das Mortes é contratado, então, para dar um fim no cangaceiro. O filme termina com a icônica cena do casal protagonista correndo pelo sertão, em direção ao mar.

Com um enredo envolvente e bem amarrado, e fazendo uso de arquétipos tipicamente brasileiros, Deus e o Diabo na Terra do Sol contrapõe o messianismo e o cangaço, além de retratar, sem eufemismos, a miséria do sertão nordestino em contraste com a resiliência de sua gente que, mesmo sendo explorada, pisoteada e saqueada, não perde a capacidade de sonhar. Manuel, por exemplo, sonha em ter, um dia, sua própria criação de gado.

As críticas literais e subentendidas em Deus e o Diabo na Terra do Sol, onde são exibidos os abusos de poder, característicos da nossa cultura política, lamentavelmente continuam atuais, o que denota a força e o alcance artístico de Glauber Rocha. Mas antes que o sertão vire mar e que o mar vire sertão, cabe a nós, como artistas, nesse nosso papel de agentes de transformação, dar voz àqueles que são calados pelas mãos pesadas de uma sociedade injusta e preconceituosa, em que, até hoje, infelizmente, estamos inseridos.

Clique aqui para conhecer os textos teatrais de Antônio Roberto Gerin.

Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Poesia

Por Jackson Melo

É cedo aqui na roça
O dia ainda nem raiou
E já e hora de levantar

Um café meio amargo
Mas bem quente
Pros sentidos despertar

Um pão amanhecido
Pra esse velho homem
Ou seria um pão velho
Pra esse amanhecido homem?

A enxada
Companheira de labuta
Todo dia tenho que afiar

Agora já é hora de sair
Mas antes, não me esqueço
Sem nunca falhar

Um beijo e cheiro na morena
E nos meus filhos
Pra não esquecer que tenho
Pra quem voltar.