Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Poesia

Por Alex Ribeiro

Eu sou homem e o que me difere?
Dos bichos, dos monstros famintos?
Sou homem porque submeto
Outros bichos submeto
A natureza a meu bel prazer.

Mas por homens sou também
Submetido, humilhado
Então, em que diferimos
O bicho lá confinado no chiqueiro
E eu aqui, na rua 20, lote 16?

Ah, que desastre essa humanidade
Tão desumana, tão selvagem
Em sua covarde exploração
Quem é o presidente? Senão um homem
Como eu, como o Tadeu ali na esquina
Como qualquer outro
Mortal.

E eu aqui consumindo arte
Cultura, revista, sexo e protesto
Para quê? A quem pertence
Meu destino?
A Deus onipresente, onipotente?

Então por que é que Deus é
Tão calado. Diz-me
Quem cala consente, então,
Deus consente em tudo que aí está.

Ou então Deus está demasiado ocupado
Para lidar com insignificâncias
Humanas
Gosto mais desse Deus. Ausente.
Assim somos todos responsáveis
Pela mazela que criamos.

Assim sendo o silêncio de Deus
Nós homens não somos nada
Além de vis criaturas
Bichos selvagens e vaidosos
E nos matamos uns aos outros
Em nome da mediocridade.

Viva são Jair
E toda sua ignorância!
Viva a sociedade suja, linda e hostil
Viva, enquanto for possível
Antes que os bichos verdadeiros
Tomem sua carne apodrecida e perfumada.

Ah, pobre sou eu no cárcere
Ser homem e não ser bicho
Quando tudo em mim é bicho
Até mesmo minha mais nobre vontade
De não ser bicho.

Somos bicho homem
E matamos disfarçadamente
Assassinos
De nossa carne.

Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Resenhas, Teatro

Por Leivison Silva

Electra é uma tragédia em ato único, escrita pelo dramaturgo grego Eurípides (484 a. C. – 406 a. C.). A famosa personagem, filha do rei Agamêmnon e da rainha Clitemnestra, já havia sido retratada anteriormente por Ésquilo (525 a. C. – 455 a. C.), nas Coéforas, que faz parte de sua trilogia Oréstia. Também Sófocles (496 a. C. – 406 a. C.) viria a escrever uma tragédia com o nome da personagem.

Na versão de Eurípides, a peça começa com o personagem Trabalhador nos contando os antecedentes da tragédia. Electra fora forçada por Egisto, seu padrasto, a se casar com um simples camponês, no caso, o Trabalhador. Egisto temia que, se Electra se casasse com um nobre, os possíveis filhos desse casamento poderiam querer vingar a morte de Agamêmnon, pai de Electra. O Trabalhador, no entanto, se apiedou da princesa Electra e jamais a tocou.

O irmão de Electra, Orestes, que havia sido exilado por Egisto ainda na infância, volta a Argos acompanhado de seu amigo, Pílades, para vingar a morte de seu pai. Electra e Orestes se encontram, mas a princípio não se reconhecem. Um velho preceptor de Agamêmnon, que ajudara a salvar Orestes de Egisto, é chamado e reconhece Orestes, apesar de terem se passado muitos anos desde a última vez que o vira. Ajudados pelo Velho, Electra e Orestes planejam a morte de Egisto.

Orestes e Pílades se infiltram no acampamento de Egisto, que saíra do palácio para um bosque, a fim de oferecer sacrifício para as divindades. Orestes mata Egisto e volta à casa de Electra com o cadáver. Electra, por sua vez, exige que os dois matem também Clitemnestra. Orestes hesita em matar a mãe, mas Electra, tomada pelo ódio e pela mágoa de ter sido obrigada a sair do palácio para viver numa simples choupana, o convence a fazê-lo.

Electra manda chamar Clitemnestra sob o pretexto de que estava com um bebê recém-nascido em casa e que precisava da ajuda e da experiência da mãe para proceder aos ritos referentes ao décimo dia de vida do suposto filho. Clitemnestra cai na armadilha e vai ao encontro da filha. Após um embate entre as duas, Clitemnestra é morta por Orestes, que enterra uma faca na garganta da mãe. Imediatamente, Orestes e Electra se arrependem de terem matado a própria mãe. Mas, ao final, são absolvidos de seu crime pelos Dióscuros, que eram os espíritos de Castor e Pólux, irmãos de Clitemnestra e Helena. Os Dióscuros julgam que Clitemnestra recebera uma punição justa.

Vê-se claramente na tragédia de Eurípides que os humanos não são mais um mero instrumento da fatalidade cega. Pelo contrário. Estes têm muito mais autonomia do que nas tragédias de Ésquilo, por exemplo, e são-nos apresentados de maneira mais humana e apaixonada. Embora sejam citados ao longo do texto, os deuses e oráculos em Electra não têm um papel tão determinante no desenvolvimento da ação.

Outro ponto que chama bastante a atenção nessa peça é seu final. Ao invés de serem cruelmente punidos pelos deuses, Electra e Orestes são “apenas” obrigados a saírem de Argos para sempre, e assim, longe da terra natal, prestarem contas às suas consciências pesadas por seus atos. Inclusive a culpa é retirada dos irmãos e atirada em Apolo, por tê-los induzido a cometer o crime de matricídio. A absolvição de Orestes fora dada após o julgamento ocorrido no tribunal do Areópago, em que os votos contra e a favor da condenação empataram, e a deusa Atena deu seu veredito em favor de Orestes – daí vem a expressão “voto de Minerva”, nome romano de Atena. Os Dióscuros ainda determinam que Electra se case com Pílades e aconselham Orestes a ir até a cidade de Atenas para escapar das Fúrias, benevolência esta pouco comum nos deuses apresentados nas tragédias gregas em geral.

Em suma, caros leitores, temos em Electra, de Eurípides, um clássico do teatro mundial, e também um registro do alvorecer da racionalidade para o mundo ocidental, quando a vontade humana passou a sobrepujar os desígnios divinos. Leitura indispensável para os amantes do teatro.

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A ameaça da memória

Por Leivison Silva

Rebecca, A Mulher Inesquecível (130’), EUA (1940), é o primeiro filme dirigido por Alfred Hitchcock (1899-1980) em Hollywood. Estrelado pelo grande ator inglês Laurence Olivier (1907-1989) e pela atriz Joan Fontaine (1917-2013), o enredo de Rebecca, A Mulher Inesquecível foi baseado no livro homônimo de Daphne Du Maurier (1907-1989), romance esse que, especula-se, seria um plágio do romance “A Sucessora”, da escritora brasileira Carolina Nabuco (1890-1981), publicado quatro anos antes da versão de Daphne. Polêmicas à parte, a estreia de Hitchcock nos Estados Unidos não poderia ter sido melhor. O cineasta, que já tinha uma carreira bem-sucedida e consolidada na Inglaterra, sua terra natal, conseguiu criar um thriller psicológico irresistível. Rebecca, A Mulher Inesquecível fez bastante sucesso na época de seu lançamento, ganhando, inclusive, o Oscar de Melhor Filme daquele ano, sendo, assim, o único filme do Mestre do Suspense a ser premiado nessa categoria.

A personagem de Joan Fontaine, cujo nome, curiosamente, não é falado em nenhum momento do filme, trabalha como dama de companhia da senhora Van Hopper (Florence Bates), quando conhece, em Monte Carlo, o ricaço George Fortescue Maximilian De Winter (Laurence Olivier). Os dois passam a sair juntos e se aproximam, até que Maxim pede a moça em casamento. Casados, eles vão para Manderley, a suntuosa casa de campo de Maxim. Chegando a Manderley, a nova senhora De Winter é recebida com relutância pelos criados, em especial pela Sra. Danvers (Judith Anderson), a rígida governanta da casa, que idolatra a memória de Rebecca, primeira esposa de Maxim, e não aceita que aquela nova mulher, que está chegando, ocupe o lugar de sua amada patroa.

A nova senhora De Winter sente-se intimidada pela governanta, que a coage e enche sua cabeça de dúvidas e temores, fazendo-a se sentir indigna de Maxim. Soma-se a isso a falta de delicadeza de Maxim e, principalmente, a onipresença de Rebecca, com quem é sempre comparada por todos os que conviveram com a morta. Ao longo da ação, a nova senhora De Winter vai descobrindo os segredos pavorosos que as paredes de Manderley guardam, em especial sobre a inesquecível Rebecca. E é justamente quando o cadáver de Rebecca é encontrado, que o filme dá um giro de cento e oitenta graus.

A bela fotografia em preto-e-branco, premiada com o Oscar de Melhor Fotografia de 1940, e os cenários grandiosos, com sombras fantasmagóricas projetadas nas paredes, criam uma atmosfera tensa e opressiva. Mesmo as externas de Manderley têm um ar sombrio. A trilha sonora, composta especialmente para o filme por Franz Waxman (1906-1967), encaixa-se à perfeição nesse mosaico, dando o tom certo para cada cena.

Dentre excelentes atuações, duas se destacam: Joan Fontaine e Judith Anderson. A postura encurvada de Joan Fontaine na primeira metade do filme deixa sua personagem ainda mais vulnerável e frágil, nos dando a impressão de que a personagem está sendo realmente esmagada pela memória de Rebecca. É bem interessante ver a trajetória da personagem, a princípio caminhando tímida e deslocada pelos cenários suntuosos e, aos poucos, mais confiante, madura e assumindo o seu lugar de direito, de legítima senhora De Winter. Já Judith Anderson deu à sua assustadora Sra. Danvers uma frieza calculada na voz, pontuada por oportunos olhares alucinados. A relação doentia de carrasco e vítima entre as duas personagens é um dos pontos altos do filme.

Rebecca, A Mulher Inesquecível é um clássico do Mestre do Suspense, que, com suas reviravoltas surpreendentes, nos mantém ligados na tela até o último segundo. Filme indispensável para todos os amantes da sétima arte.

Clique aqui para conhecer os textos teatrais de Antônio Roberto Gerin.