Publicado em Categorias Cinema, Cultura, Literatura, Resenhas

Um Sonho de Amor

Por Antônio Roberto Gerin

Inesquecíveis momentos de amor todo mundo sonha em viver. Mas se a realidade não nos oferece de pronto estes doces momentos, vamos atrás de experimentar amores alheios. Afinal, não custa sonhar através dos outros, principalmente quando estes outros são meras personagens de ficção. Neste sentido, os filmes românticos podem ser uma boa pedida. Afinal, eles existem para isso. UMA LINDA MULHER (119’), direção de Gary Marshall, EUA (1990), é uma destas belas oportunidades de tirarmos um pouco os pés do chão e viajarmos em um mundo de fantasias. O filme cumpre à risca esta missão. Não à toa, Uma Linda Mulher é reconhecido como um dos filmes românticos mais completos que o cinema já produziu. Exagero? Se analisarmos a origem do filme, cuja trama inicial pretendia mostrar a dura vida das prostitutas em Los Angeles, uma proposta perigosa do ponto de vista comercial, o que levou Hollywood a mudar os rumos do roteiro, buscando na literatura clássica elementos dramáticos estruturantes para dar consistência à narrativa, e mais, se analisarmos o elenco principal, Julia Roberts e Richard Gere, a trilha sonora, os diálogos, pontuais e ágeis, o roteiro, enxuto e competente, o glamour, e o mais importante, o desfecho genuinamente romântico, vamos entender que os entusiasmos em torno do filme fazem todo sentido. Sim. O filme é quase perfeito. O filme e Julia Roberts. Ah, e Richard Gere!

Sabe-se que à época do lançamento do filme a crítica não foi unânime. Mas mesmo aqueles que torceram o nariz, alguns críticos e periódicos, provável hoje estariam dispostos a reconhecer que podiam ter dado uma nota melhor. Mas é bom lembrar. Por estarmos hoje vivendo em um mundo demasiado perturbado, talvez seja difícil imaginar algum estúdio investindo fortunas nesse tipo de gênero. O sonho precisa de espaço. Ele tem que caber numa possibilidade. Por mais que acreditemos que contos de fadas são ilusões distantes, temos que nos apoiar na crença do sonho possível. É esta possibilidade que os filmes românticos precisam nos oferecer. A ideia de que também nós podemos ser protagonistas de um grande amor. Então fica aí a sugestão. Esqueçamos, por algumas horas, a dura realidade moderna, e resgatemos clássicos românticos, alguns há muito engavetados. Uma Linda Mulher apresenta-se como uma das melhores opções.

O roteiro não é novo, e muito menos original. Revisita histórias e personagens similares oferecidos pela literatura e pelo bom e velho cinema. Uma mulher linda, colocada socialmente em uma situação moral, cultural ou financeira inferior, vê-se, pelas circunstâncias fortuitas da vida, sendo salva por um homem rico, de preferência bonito, que a princípio só tem a intenção de salvá-la, quando, à revelia, ele é violentamente sugado pela paixão. Pronto. O que era para ser o desfile de cenas de puro altruísmo e pequenas doses de heroísmo, transforma-se numa grande ação humana. Afinal, amar é uma das experiências existenciais mais misteriosas e fantásticas que o ser humano pode vir a experimentar. Evidente, o amor, submetido à convivência cotidiana, nos coloca o desafio de transformar impulsos em energia produtiva. Leia-se, renovados esforços emocionais para sustentar uma relação a dois. Sabemos que não é nada fácil. Afinal, depois dos primeiros encantos, vem a razão, que é justamente o dilema de permanecermos, firmes e fortes, a lado do(a) nosso(a) parceiro(a). Mas, não se preocupem. Filme romântico termina sempre um pouco antes. Vai só até o primeiro grande beijo.

Edward Lewis (Richard Gere) é um belo de um poderoso empresário que, lá pelas tantas, foge de uma festa chata e sai dirigindo o supercarro, uma lótus, do seu advogado Barney Thompson (Héctor Elizondo), com a intenção de retornar ao hotel, na sua megassuíte de cobertura, sonhando em colocar os pés para cima, na intenção de descansar de um extenuante dia de trabalho. Só que o megaempresário não sabe dirigir um megacarro automático. Esta é a isca narrativa para que nosso herói romântico vá parar nos bulevares hollywoodianos, onde as prostituas oferecem seus serviços. Mas ele não está à procura dos tais serviços. Ele só quer que alguém dirija o carro automático e o leve para o hotel. E eis que uma linda mulher, Vivian Ward (Júlia Roberts), aparece na calçada da vida para salvar aquele empresário tão inepto. Ela senta ao volante e dispara pelas ruas de Hollywood! E assim se inicia uma grande e bem contada história de amor. Só que antes do amor, haverá um desfile de preconceitos, arrogâncias e, como não poderia deixar de ser, o protagonista, nosso herói, vai passar por uma profunda transformação interior, que irá prepará-lo para o mega beijo final.

Vale a pena desenhar, mesmo que com imprecisões, a árvore genealógica do filme. Para tanto, vamos nos apoderar de alguns livros e filmes clássicos.

O livro, e depois o filme, Orgulho e Preconceito é o primeiro que nos vem à mente. A escritora Jane Austen, evidente, não construiu um conto de fadas à la Disney. E se o fez, já que o que vemos é o mega aristocrata Mister Darcy se casando com a pobretona Elizabeth Bennet, não nos parece ser esta a principal intenção da autora. O filme A Noviça Rebelde é outro exemplo de como contrastes sociais, econômicos e culturais podem ser anulados por um grande amor. O livro e filme O Grande Gatsby é outro conto de fadas, mas um tanto às avessas, já que leva ao trágico. E assim podemos ir caminhando por uma bela linhagem de contos, romances e óperas – La Traviata, por exemplo -, até chegarmos ao maior deles, o conto que impregna toda a cultura ocidental naquilo que temos de mais precioso, que é a possibilidade, mesmo que ínfima, de escaparmos ao nosso mísero destino. Falamos da maltratada e resiliente órfã Cinderela.

Mas vamos à principal influência, de onde o filme bebeu boa parte de sua estrutura. O belo musical My Fair Lady, lançado no cinema em 1964, um conto de fadas que estranhamente não se completa, talvez porque seja um conto de fadas que não consegue tirar os pés do chão, e que, por isso, faz a vida continuar. Culpa de Mr. Higgins, um professor de fonética que, mediante aposta com seu amigo Pickering, tira das ruas a inculta e miserável florista Eliza Doolittle e a transforma, em seis meses, numa princesa. Só que o professor Higgins não consegue sonhar. Um arrematado egoísta, que assumiu idealizar a mãe como a mulher perfeita, o que faz dele um empedernido solteirão. O arco do seu personagem é muito achatado, portanto, não possibilitou a transformação que o fizesse levar sua Eliza para o altar. Mas o nosso filme Uma linda Mulher vem corrigir este grave defeito. Diferente de seu congênere, Edward Lewis, o empresário tímido e inseguro no amor, se deixa passar pela necessária transformação para, assim, cair romanticamente nos braços da outrora prostituta Vivian Ward.

É bom lembrar ao espectador que a verdadeira origem de Uma Linda Mulher, e também, e principalmente, do musical My Fair Lady, vem um pouco antes no tempo, em 1913, quando o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw lançou uma de suas obras primas, Pigmalião. Que, por sua vez, é inspirado em Metamorphoses… Vamos parar por aqui. Como se vê, a cultura é uma grande massa que se fermenta a cada vez que surge um grande artista, o que nos leva a admitir que nada se inventa, tudo se fermenta. Na busca, claro, sempre, de um novo sabor.

Enfim. Pena que o filme Uma Linda Mulher não teve continuação. Primeiro, para “continuarmos” a admirar a beleza de Júlia Roberts e, por tabela, a beleza e o charme, à la Clark Gable, de Richard Gere. E, segundo, para ver se este conto de fadas vai mesmo continuar sendo um conto de fadas nos próximos anos. Não é impossível, mas difícil, nós sabemos disso. Mas, discussões à parte, o que interessa mesmo para um conto de fadas é chegar até o beijo. A partir daí, caberá a nós idealizarmos nosso próprio beijo, sobre o qual se fundará nosso projeto de vida afetiva. Sim. Não há nada de errado em sonharmos! Em nossa essência, somos seres utópicos. Precisamos idealizar, imaginar, acreditar. Afinal, precisamos de uma certa utopia para nos mantermos vivos e podermos seguir adiante com nossa grande missão humana, que é amar.

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Por Alex Ribeiro

És meu pequeno frasco de veneno
Que foi deixada num refrigerador qualquer
Que agora está diante de mim tentadora
Admiro-te então nesse fim de dia

O vento bate em teu corpo molhado
Eu contorno teu corpo com a ponta dos dedos
Aprecio todos os contornos de tuas curvas
Seguro-a decididamente em libido

Quanto mais te conheço sei de teu conteúdo
Aquilo que quero consumir sem pudor
Embriagar-me, enlouquecer-me em ti
Viciar-me no sabor do perfume que tu tens

Quando tua boca vermelha encontra meus lábios
Sinto-me tomado apreciando teu mel
A envolvo quero tê-la pra mim
Enquanto teu veneno me conduz ao meu fim

Beijo tua boca e encharco meu peito
Sinto estar num palácio de Deus
Enquanto meu tato descobre tua geografia
Deixo que tua alma seja uma estrela guia

Morro no veneno de teu conteúdo
Escorro meu ser no teu tudo
Morro vivendo pra tua alma
Assim sorrio enquanto a solidão desaba.

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Por Antônio Roberto Gerin

Mário Prata faz parte da geração de dramaturgos que surgiram em fins da década de sessenta, em um momento de forte censura cultural, agravada pelo AI-5, instrumento maior de repressão do regime militar instaurado no Brasil a partir de 1964. Junto com Mário Prata, podemos mencionar outros autores que a partir de então passam a marcar a tumultuada cena dramatúrgica brasileira, entre eles, Lauro César Muniz, Leila Assunção, Consuelo de Castro, Antônio Bivar… Todos bravamente seguiram escrevendo seus textos na opressora década de setenta, atitude esta que viria a ser conhecida como “teatro de resistência”. Desde garoto, Mário Prata já manifestava sua intimidade com a escrita. Uma escrita recheada de humor irreverente, o que acabaria se tornando sua marca de estilo ao longo de sua trajetória literária. E, por curiosidade, não fosse o sucesso da sua primeira peça teatral, O Cordão Umbilical, talvez não existira o dramaturgo Mário Prata. Funcionário do Banco do Brasil, cursando Economia, diante do sucesso, aos vinte e quatro anos, abandona tudo para se dedicar exclusivamente a escrever. Falando de um país em que a literatura não sustenta o artista, eis um ato de coragem, e a certeza na sua vocação de escritor. Para garantir o sustento, foi buscar alternativas de ganho, atuando não só como dramaturgo, mas também como cronista em jornais e periódicos, novelista, em que conheceria logo o sucesso, em 1976, com Estúpido Cupido, da Rede Globo, andou por várias emissoras de televisão e jornais, principalmente em O Estado de São Paulo, consolidando, assim, sua fama como um dos mais versáteis autores nacionais da segunda metade do século XX. É neste percurso vitorioso que surge uma de suas obras basilares, levada aos palcos em 1983, com estrondoso sucesso. Estamos falando de Besame Mucho.

Quando resolveu escrever Besame Mucho, fruto de uma encomenda por parte do grupo Mambembe, à época, de certo modo Mário Prata se vê às voltas com a pergunta que todo autor se faz quando vai iniciar um novo projeto. Sobre o que escrever? Política? Já não era a temática da vez. Afinal, já era o início da década de 1980, o país, sob o governo do presidente Figueiredo, vinha passando por uma gradual distensão política que levaria ao fim da ditadura em 1985, e, por este motivo, as questões políticas, que tanto preocupavam os artistas, já não provocavam tantos ecos. Neste sentido, na busca por novas temáticas, a proposta de Mário Prata para Besame Mucho foi pontual. Como ele mesmo revelaria, procurou trabalhar com outras formas de repressão, e estas repressões ele foi buscá-las dentro do cotidiano da classe média. Religião, sexo, amor, culpa, eis o que agora importava, já que as preocupações políticas não eram mais tão urgentes.

A trama gira em torno da trajetória de vida de dois casais, Xico e Olga, Tuca e Dina, iniciando-se no ano de 1962, o ano da formatura, quando os quatro ainda moravam no interior paulista, em Albuquerque. Este é o momento cronológico de pensarem no que fazer de suas vidas. O ponto de contato entre os casais são os dois, Xico e Tuca, cuja amizade perdura ao longo do tempo. Enquanto Tuca, com Dina, continuam no interior, Xico e Olga se mudam para a cidade de São Paulo. Vão, todos, cuidar da vida. Vão estudar, sonhar, casar, construir suas carreiras profissionais, terem filhos, cada um tentando lidar com suas heranças de culpa, a busca incessante, quase obsessiva, pelo sexo, que parece não se realizar por completo, as crises de criatividade, e, no fim das contas, veem-se tentando salvar seus relacionamentos, esmagados sob o peso do cotidiano. É assim que chegam ao ano de 1982, passando, portanto, por duas décadas de autoritarismo. E chegam com o sentimento de que nada se resolveu, de que tudo parece continuar na mesma. Só que agora é chegado o momento de encararem seus fracassos. Esta é a tragédia que a comédia Besame Mucho oculta.

O ponto final da peça se concluiria pelos desfechos dos dois relacionamentos, no ano de 1982. No entanto, o que seria o fim se torna o começo. Esta é a estrutura concebida por Mário Prata. Narrar a história dos dois casais de trás para frente. É o que ele faz. Com propriedade. A narrativa é dividida em quadros, e cada quadro vai recuando dois anos no tempo, sempre anos pares, portanto, com seu início em 1982, até finalizar, no baile de formatura, em 1962. O antes vai explicando como se transformaram no depois. É o retorno às raízes, como diria Mário Prata, para tentar entender o que de fato aconteceu. Afinal, sabemos, logo no primeiro quadro, quais são os desfechos. Agora, a curiosidade do leitor vai sendo alimentada pelos desdobramentos, em cronologia inversa, das causas.

Mário Prata faz valer suas habilidades de escritor para conduzir o entrecho, usando o humor inteligente e cáustico como arma de estilo. E para dar o sabor cômico e realista, ele vai permeando os diálogos e as situações com cenas picantes, seja pelas falas e atitudes sexualizadas dos dois casais, seja pela saborosa intervenção do casal de contrarregras, quando, a cada passagem de quadro, eles vão trazendo ao conhecimento do público o feroz jogo sexual que acontece, entre os dois, nas coxias. Esta talvez seja a grande sacada que faz de Besame Mucho um texto bastante original. Enquanto as histórias dos casais, como dito, são narradas numa cronologia inversa (fim, meio e começo), o envolvimento sexual do casal de contrarregras é narrado na ordem natural, (começo, meio e fim), o que nos faz entender por que cabe a estes a responsabilidade (e oportunidade) de encerrarem o texto (e o espetáculo).

Mário Prata, com Besame Mucho, um grande sucesso de público, já em 1983, quando de sua primeira montagem, dirigida por Roberto Bomtempo, que assina também a montagem de 2011, conforme pode se ver na imagem escolhida para ilustrar esta resenha, consegue traduzir, com pontualidade e humor, as desilusões da classe média naqueles fins de ditadura, a mesma classe média que havia ido às ruas, em princípio da década de 1960, pedir a intervenção militar pela salvação da família e da pátria, e que agora, num ciclo cruel, veem-se, vinte anos depois, no mesmo lugar. Eis o resumo histórico da função política da classe média, chancelado nas páginas de Besame Mucho. Agora, após digeridas  as desilusões, é preciso recomeçar. Novamente.

A perspectiva do recomeço é pincelada por Mário Prata no segundo quadro, o de 1980, quando ele faz alusões a esta mesma classe média querendo agora abraçar uma nova ideia política. Esta ideia é representada pelos movimentos dos trabalhadores na década de setenta, que iria desembocar na criação do Partido dos Trabalhadores, que passou a atuar fortemente na política desde então. Eram novos anseios, a esperança da ascensão econômica, o orgulho de ser brasileiro, agora envoltos em outras cores.

No entanto, o que parecia ser o recomeço, passa a ser a antecipação de uma nova realidade política brasileira pós Partido dos Trabalhadores. A classe média, na sua busca por ser um agente decisivo na construção de um país desenvolvido e livre, rebela-se mais uma vez. Portanto, seu dilema, retratado em Besame Mucho, continua. Enquanto a classe média não tiver a noção exata de que um país tem que ter um povo, esta classe irá pular de galho político em galho político, sem conseguir ser agente do seu próprio destino. É preciso ter a noção profunda e cívica de que não há nação sem povo. E o mais importante. A de que povo não pode ter umbigo. Se ficar olhando para o próprio umbigo, nunca contemplará o horizonte, o futuro. Talvez seja isto que a classe média brasileira nunca entendeu. E é por isso que Tuca e Dina precisaram se refugiar na fantasia para conseguirem encontrar sua explosão sexual. Assim como Xico e Olga precisaram se refugiar na mentira para sustentarem suas autoestimas. Atitudes como estas, de avestruz, vão levar, com certeza, e sempre, a um novo e perigoso ciclo político. E mais uma vez a noção de povo se perderá.

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