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Um filme sensível à dor

Por Antônio Roberto Gerin

O sensível filme MOONLIGHT (115’), com direção de Barry Jenkins, EUA (2016), rodado em apenas 25 dias, estrelado somente por atores negros, e aclamado pela crítica especializada, foi o vencedor do Oscar 2017. Só isto é motivo para assistir ao filme. Se merecia ganhar? Sim e não, não e sim. Polêmicas à parte, mais uma razão para assistir ao filme e compará-lo com La La Land, seu forte concorrente à estatueta de melhor filme. Enquanto em La La Land temos uma narrativa leve e ágil de perseguição aos sonhos, e, bingo!, seus protagonistas conseguem realizá-los, portanto, um hino ao sucesso nestes tempos de ondas de desânimo que assolam a humanidade, Moonligth prefere ir na contramão da realidade glamourizada. Em Moonlight não cabem sonhos. Sequer há tempo para eles. O que resta é juntar os estilhaços de realidade caídos ao chão e sair caminhando pela vida, sempre cuidando para não pisar nos cacos de vidros. Não há esperança na dor. E Moonlight tem este compromisso com o espectador. Não mentir. E ele não mente.

Mas há outras razões para assistir a Moonlight. Tendo sido baseado numa peça de teatro inédita, In Moonlight Black Boys Look Blue, de McCraney, Moonlight ganhou também o Oscar de Melhor Roteiro adaptado. Isto nos dá a aparente certeza de estarmos diante de uma narrativa bem estruturada, que embasa um roteiro consistente, e que nos coopta e nos mergulha em um sutil estado de compaixão. Moonlight ganharia também o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, que foi para Mahershala Ali, estupendo em seu papel de amparar o arredio e perseguido garoto Chiron. E olha que Mahershala só participa do primeiro terço do filme!

Moonlight narra a trajetória solitária de um garoto negro, Chiron, nascido dentro da Miami dos anos 1980, de família desestruturada pelas drogas. Desde cedo se descobre homossexual, e com isso sofre constantes achaques físicos e emocionais dos colegas de escola. Submete-se a tudo de forma silenciosa e resignada. Este é o perfil social a que Chiron está condenado. Passar pela vida o mais invisível que puder, sem vislumbrar qualquer perspectiva de salvação. Sem muita opção, acuado, chega o dia da vingança contra o chefe da gang do colégio. Leva a melhor, mas não tem nenhum ganho com isso. Pelo contrário. Negro e pobre, é logo trancafiado em um reformatório. Na vida adulta, passa a comandar o tráfico de drogas em Atlanta, herdado de um antigo protetor. Esta é a trajetória simplificada deste herói anônimo. No entanto, não é a droga e seus desdobramentos que interessam ao filme. O que Moonlight quer é nos convidar a acompanhar o silencioso sofrimento que impregna, como um terrível estigma, a alma de Chiron. E nos dar a triste notícia de que ele levará este sofrimento vida afora. O desfecho ainda deixa no ar uma esperança. Mas Chiron, adulto, nos parece, já nasceu condenado.

A narrativa se divide em três momentos, como se fossem três atos de uma peça teatral. Esta estrutura formal, aliás, está clara. O protagonista pequeno, depois adolescente, e, por último, adulto. A grande sacada do filme, e aí entra a mão do diretor, é que os três atores que representam as três fases da vida do protagonista conseguem manter a linha exata da construção da personagem, numa rigidez de perfil que só mesmo uma boa direção de atores e uma composição consistente de personagens conseguiriam atingir. Apesar de serem três atores totalmente diferentes – nenhum dos três acompanhou a filmagem dos outros dois -, fica-nos a nítida impressão se tratar da mesma pessoa. O filme não se perde no fio condutor da dor. Ele, pelo contrário, a sacraliza.

E é justo dedicar um parágrafo para nomear os atores que formaram o premiado elenco de Moonlight. A fase infância de Chiron foi representada por Alex Hibbert, a fase adolescente, por Ashton Sanders, e a adulta, por Trevante Rhodes que, a princípio, havia se candidatado para o papel adulto de Kevin, que viria a ser entregue a Andre Holland. Falta mencionar o garoto Jaden Piner no papel infantil de Kevin, amigo de Chiron. Não temos o nome do ator que fez o papel de Kevin adolescente. E temos ainda a atriz inglesa Naomie Harris que, após muito relutar, acabou aceitando o papel da mãe de Chiron, a drogada Paula E no papel de Tereza, namorada de Juan, casal que acolheria o menino Chiron, Janelle Monáe, que não pensou duas vezes em aceitar o convite. E, por fim, no papel de Juan, o premiadíssimo Mahershala Ali, conhecido por representar Remy Danton em House of Cards. Uma salva de palmas!

Quanto ao ritmo, ao desfecho, à edição, à mão contida do diretor, dando mais chances às sutilezas que ao espetaculoso, bem, aí vai do gosto de cada um. Para a finalidade a que o filme se propõe, a opção do diretor, a nosso ver, foi acertada. Ele nos oferece a mágica simbologia da dor através do silêncio. Um silêncio, aliás, que grita.

Em suma. A grandeza de certos filmes não reside no furor criativo das técnicas nem na conturbada proposta de seu conteúdo. Há filmes que apenas se apropriam da realidade como um cúmplice fiel que o ajudará a chegar ao outro lado da vida, sem que para isso precise macular a beleza de ser humano. Moonlight é destes filmes. Que apenas se prestam a nos humanizar.

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Por Alex Ribeiro

Essas tardes são saudade
Da varanda do quinto andar
O pôr do sol faz-se pintura
Dessas tardes de saudade

A brisa fria e franca
Transporta o aroma da sua pele
Eu a sinto no intenso da minha falta
Nessas tardes de saudade

Da lembrança revivo o mais belo
Os beijos, nossos cúmplices
Seu sorriso, minha salvaguarda
Daquelas tardes de saudade

Tudo isso tão secreto
Minhas tardes de saudade
Na verdade só sou
Só, saudade.

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Por Alex Ribeiro

Um filme visceral

Estômago (113’) é uma produção Brasil/Itália (2007), do diretor Marcos Jorge, aliás, seu longa-metragem de estreia. E que estreia! Como diz a expressão popular, pelos vários cantos desse Brasil, “chegou metendo o pé na porta!” Se você, caro leitor, é um desses transeuntes internéticos que às vezes está à procura de um bom filme para se deleitar, provavelmente já esbarrou em alguma lista de excelentes filmes a serem vistos. Ah, as famigeradas e polêmicas listas! Pois bem, Estômago está em muitas dessas listas de filmes brasileiros que são recomendados pelos amantes da sétima arte. Além disso, está entre os cem melhores filmes de produção tupiniquim, segundo a Abrancine, associação de críticos de cinema brasileiros. É, portanto, um filme que caiu nas graças da crítica. Mas, e o público? Esse costuma ser mais generoso, visto que seu objetivo maior é consumir as belas experiências que um filme pode lhe proporcionar, e neste sentido Estômago é, também, bem visto pelo público. E o que faz de Estômago um bom filme? Uma combinação de vários elementos dá a ele um tempero agridoce e que leva o filme do belo ao grotesco na medida certa, aflorando no seu espectador uma série de sensações viscerais. Estômago brinca com os nossos instintos e por isso o seu tempero artístico é doce e amargo. Se estamos falando de instintos, teremos aqueles que vão nos levar à criação, ao amor, ao sublime, através da força de Eros. Mas também à destruição, agressão, ao grotesco, desta vez, por Thanatos. Portanto, se você está a fim de consumir um filme que te surpreenda com saborosas sensações, apresentamos a você Estômago.

Marcos Jorge não poderia ter estreado tão bem se não contasse com um belo roteiro em mãos, e foi exatamente isso que o roteirista Lusa Silvestre lhe ofereceu. Lusa apresentou a Marcos um de seus contos, Presos Pelo Estômago, e a partir dele um trabalho árduo de três anos deixou o roteiro pronto para que Estômago ganhasse as telas. Eis aqui um dos grandes méritos do filme. A forma com que ele vai nos apresentando o protagonista Raimundo Nonato, com suas particularidades, é o grande achado do roteiro. Há algumas críticas de que ele seja didático em excesso, e que tenha muitas cenas escatológicas, porém, isso não chega a comprometer o filme, que faz questão de balancear alguns excessos com surpreendentes e refinadas cenas.

Vamos agora ao nosso protagonista, o anti-herói Raimundo Nonato (João Miguel). Migrante nordestino, um tipo brasileiro bem marcado no nosso arquétipo nacional, o personagem de João Miguel não se apresenta como mais uma caricatura do nosso cinema. Pelo contrário, dentro daquele dócil e ingênuo homem tem uma força passional capaz de detonar tragédias, e é isso que ele vai nos revelar durante o filme. Não à toa, João Miguel ganhou vários prêmios de melhor ator com esse filme, o que não é nenhum exagero, visto que sua construção deixou Raimundo Nonato escancaradamente humano, no belo e no grotesco. De rapaz dócil, o aprendiz de cozinheiro se torna presidiário, de Raimundo, já no presídio, ganha a alcunha de Alecrim. Esta é a transformação que o filme de Marcos Jorge permite ao ator João Miguel, que não decepciona. Mas o caminho até Raimundo se tornar o Alecrim é longo. Recém-chegado ao sul, Raimundo é explorado por seu primeiro empregador, Zulmiro (Zeca Cenovicz), que o ensina a fazer pasteis e coxinhas. Das coxinhas Nonato chama a atenção de um dono de um grande restaurante, o italiano Giovanni (Carlo Briani), que lhe oferece um emprego e ensina a Raimundo Nonato a arte da culinária. Junto a este primeiro quadro temos a presença avassaladora e glutona da prostituta Íria (Fabiula Nascimento), por quem nosso protagonista se apaixona perdidamente.

Um segundo momento, narrado em paralelo com a chegada do nosso Raimundo, se dá quando Nonato chega ao presídio para cumprir pena por seu crime. Crime este até o momento desconhecido do espectador. Ali, ele vai parar na cela presidencial, aquela cela onde o chefão do presídio se aloca. E quem é o Chefão? Bujiú (Babu Santana) é o dono do pedaço, figura que passa a exercer sobre Nonato a mesma influência que o chef Giovanni tivera no passado. Porém, se Eros era o regente do italiano, Thanatos dá o tom que Babu traz à cena visceralmente. Eis que agora nosso anti-herói se torna Alecrim, o cozinheiro oficial do preso mor. Vale ainda uma menção ao belo Paulo Miklos. O titã que já havia surpreendido como ator no filme O Invasor, não deixa a desejar em nenhum momento. Como se vê, um elenco recheado de excelentes nomes das nossas artes cênicas, que foram escolhidos com muito esmero, segundo relata o próprio site do filme.

Enfim, temos em Estômago um filme que dá sabor em assistir. Além do belo roteiro, belo elenco e da direção precisa, vários takes brincam com a ilusão gustativa do espectador quando nosso protagonista exibe suas iguarias e sua habilidade em prepará-las. Poderíamos fazer uma análise profunda do nosso protagonista, principalmente quanto à noção de identidade que ele vai forjando de acordo com as experiências pelas quais vai passando. Mas, é melhor que o leitor descubra por si mesmo o quanto o filme e o próprio João Miguel têm o tempero na medida para nos servir um belo prato artístico. E, em tempos emblemáticos como os que estamos vivendo no Brasil, Estômago pode nos dar a pista de quais são as passionalidades que nos fazem estar cotidianamente em embate com nossos pares. Talvez Thanatos esteja mais presente, desequilibrando o tempero. O certo é que um aroma de morte vem acompanhado por um banquete de más intenções preparado em tramas palacianas. Iremos nos servir desse prato asqueroso? Que o rejeitemos visceralmente!

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