Publicado em Categorias Cinema, Cultura, Literatura, Resenhas

Uma luta de glórias

Por Antônio Roberto Gerin

NISE – NO CORAÇÃO DA LOUCURA (106’), direção de Roberto Berliner, Brasil (2016), roteiro baseado no livro Nise, Arqueóloga dos Mares, de Bernardo Horta, traz não a biografia da grande psiquiatra brasileira Nise da Silveira e sim apenas um recorte de vida desta grande mulher, com suas lutas para fazer valer suas ideias na defesa do tratamento humanizado da loucura, no Centro Psiquiátrico Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. No entanto, esse recorte é mais que o suficiente para apreendermos a exuberante personalidade de Nise, uma mulher que chegou ao Rio para desafiar um sistema totalmente dominado pela figura masculina no cenário da medicina, e, em particular, da psiquiatria. Portanto, estamos falando de uma mulher pioneira. E o filme traz exatamente esta sensação. A de que sempre vamos precisar de atitudes visionárias para quebrar paradigmas a que a grande maioria das pessoas estão presas, sem questionar, sem analisar os resultados, sem querer inovar. Mas como revolucionar? Revolucionar o quê, quando sabemos que tratar a loucura é mergulhar na escuridão? Nise da Silveira, ao mergulhar na escuridão dos seus pacientes, espertamente levou consigo uma lanterna mágica chamada arte. E aqui está o pulo do gato, que o filme aborda em cenas magistrais, num ritmo narrativo ao mesmo tempo suave e pungente. O que vamos ver é uma declaração de amor ao ser humano.

Nise da Silveira, alagoana de Maceió, nascida em 1905, e falecida em 1999, foi a única mulher na turma de formandos em medicina, pela Universidade da Bahia, em 1926, num total de 157 homens. Esta informação é apenas uma pequena amostra do caráter desbravador desta mulher que revolucionou a psiquiatria brasileira, indo contra os métodos violentos utilizados nos hospitais psiquiátricos para tratamento de esquizofrênicos. Ela preferiu acessar os doentes mentais através da arte plástica, pintura e escultura, a ponto de as belas obras de seus pacientes esquizofrênicos terem dado início à criação do Museu das Imagens do Inconsciente. É pouco?

O filme começa no momento em que Nise da Silveira retoma as suas atividades no Centro Psiquiátrico, após ter passado alguns anos na prisão. Sim, Nise esteve presa por conta de questões ideológicas anticomunistas, tal qual fora Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas e Memórias do Cárcere, e de quem Nise viria a se tornar companheira de prisão. Readmitida ao Centro, e sem chances de impor suas ideias em um ambiente masculino agressivo, sobrou-lhe uma ala abandonada e com pouca relevância na rotina dos tratamentos psiquiátricos. Estamos falando da ala da Terapia Ocupacional, método este que viria, nas próximas décadas, e em função dos sucessos obtidos por Nise, a ter um papel relevante no tratamento de doentes mentais. A partir do instante em que Nise entra naquela sala suja e malcuidada, começa sua fabulosa trajetória de experimentos e observações de seus pacientes na construção do afeto através da pintura e da escultura, além de uma outra alternativa terapêutica surpreendente, o uso da presença dos cachorros como depositários desse afeto.

Mas o sucesso traria a inveja, e os inquestionáveis resultados obtidos por Nise seriam combatidos, de todas as formas, pelos ferozes defensores dos métodos tradicionais de tratamento, como os terríveis choques elétricos e as funestas lobotomias, tão bem retratados – e denunciados – no belo filme Um Estranho no Ninho. Por sorte de Nise, e de todo o seu trabalho, a defesa entusiasmada dos quadros e esculturas por parte do famoso crítico de arte da época, Mário Pedrosa, transformou-se numa grande aliada, possibilitando levar este sucesso para fora dos muros do Centro Psiquiátrico de Engenho de Dentro. Estava eternizado, assim, nas obras de seus pacientes, o grande ser humano que foi Nise da Silveira.

Eternizada em Glória Pires, que conseguiu compor, com competência, a mulher segura, jovial e determinada que tinha sido Nise da Silveira. Nenhuma dúvida a respeito do que a personagem pensava e queria. E esta precisão de construção de perfis se estende a todo o elenco, cujas loucuras, desenhadas com rigor gestual, nos convence e nos comove. Uma nota particular para a concepção de personagem e desempenho de Augusto Madeira, o Lima, enfermeiro brucutu, mesquinho e impaciente, mas que vai sendo modelado dentro da proposta humanista da psiquiatra.

A história das grandes mulheres brasileiras tem em Nise um dos seus grandes pilares. E a força desta mulher vem do que ela nos ensinou. É nossa obrigação enxergar o humano na sua vasta escuridão. E dar a ele um pouco de luz. Luz de Nise da Silveira.

Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.

Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Poesia

Por Alex Ribeiro

Jogou-se de cabeça à procura de amor
Deu sangue, seus olhos
Sua carne já dura pelos encalços da vida
Seus pés que caminhavam em círculo
Seus braços abraçados e cansados de carregar solidão
Suas lágrimas desperdiçadas a ponto de secá-las
Seu sorriso, que era bonito na infância e agora rígido
E seu coração
perdido de mão em mão
até parar em alguma gaveta.
Dançou, dessa forma, vazio de si
Dançou perdido
A última dança, do amor.

Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Resenhas, Teatro

Por Alex Ribeiro

Lisístrata é uma peça do grande dramaturgo grego Aristófanes, escrita por volta do século V a.C. Ao contrário de alguns dos seus famosos contemporâneos, como os tragediógrafos Sófocles e Eurípedes, Aristófanes dedicou sua dramaturgia à comédia. Naquele tempo, a comédia surgia como uma manifestação popular e menos elitizada do teatro, onde os conteúdos remetiam à ridicularização de figuras de poder. Figuras estas como as dos políticos, filósofos, e até mesmo dos dramaturgos da época. Assim, a comédia acabava por cumprir uma função social bastante pungente, pois se utilizava do cotidiano das cidades-estados da Grécia para fazer uma análise ácida da realidade que as circundava, desmistificando e questionando os rumos que aquelas sociedades estavam tomando. As comédias de Aristófanes questionavam fortemente as relações de gênero e a Guerra do Peloponeso que, então, assolava a Grécia. O valor literário dessas comédias, que perpassaram os séculos até os dias de hoje, se dá pela atemporalidade dos seus questionamentos, e Lisístrata passa a ser, no século XX, uma obra de expressão e reafirmação do movimento feminista.

Lisístrata está diante de uma Grécia enfraquecida pela guerra. As invasões bárbaras estão cada vez mais próximas, e os homens, maridos dessa Grécia, estão se matando numa guerra que envolve as cidades de Atenas, Esparta, Corinto, entre outras. A atual situação faz com que a personagem principal comece uma mobilização entre as mulheres para encerrar a guerra. Ela articula uma grande assembleia, onde pretende alcançar uma solução que traga os maridos de volta para seus lares, com um acordo de paz selado entre as cidades. Na assembleia, comparecem mulheres de todas as cidades-estados envolvidas na guerra e, ao comprarem a ideia de Lisístrata, vão executar o plano de paz.

Por se tratar de uma comédia, Aristófanes se utiliza de meios engraçados para colocar o plano de Lisístrata em ação. Ela planeja uma greve de sexo até que a guerra se encerre e a paz volte a pairar pela Grécia. Poderia se tratar de uma simples brincadeira, mas, além disso, Aristófanes escancara o poder de articulação e organização das mulheres, que eram completamente subjugadas e excluídas das decisões importantes daquela clássica sociedade. Isso potencializa o empoderamento feminino da peça, revelando que, mesmo tendo uma única possibilidade de êxito, a mobilização feminina consegue alcançar o seu objetivo e trazer a paz para suas respectivas cidades.

Lisístrata passa a ser uma obra fundamental, não apenas pelo seu valor histórico e artístico, mas pela profunda capacidade crítica que contém sua dramaturgia. É a grande armadilha da comédia, revelando-se de maneira magnífica. Ao desarmar-nos no leve riso que oferece, ela nos arrebata com seu nocauteante poder de denúncia. O impacto que nos causa, ainda nos dias de hoje, faz alimentar as forças daqueles que esperam por mudança, ou que temem pela perda de direitos que lhes custaram muito a conquistar. Na figura da mulher grega, Aristófanes mostra que se há uma única possibilidade, ainda assim haverá como e por que lutar. Num Brasil como o nosso, Lisístrata é a voz que ecoa para além dos palcos. É a voz que nos encoraja a olhar e a lutar contra as nossas mazelas.

Clique aqui para conhecer os textos teatrais de Antônio Roberto Gerin, dramaturgo da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.