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Por Geraldo Lima

[NO VÃO DO MASP I]

Atravessamos a Paulista de mãos dadas e seguimos em direção ao MASP.  Da calçada até o vão do museu – e daí até a bilheteria – foi um pulo. Pressa desnecessária: àquela hora da manhã, não havia fila ainda. A alegria, no entanto, durou pouco: assim que pedi os dois ingressos, o senhor do outro lado do vidro respondeu que o sistema estava travado. Deve voltar logo, tentou parecer otimista e evitar, talvez, algum princípio de revolta.

Em busca de cumplicidade para a minha frustração, voltei-me para a mulher ao meu lado. Ela, porém, já estava distraída, observando algumas pessoas aglomeradas, de modo meio caótico, lá na outra ponta do museu. A movimentação era intensa. Dava para ver crianças, jovens e adultos migrando incessantemente de um grupo para o outro, aparentemente focados em algo muito importante. Que será aquilo?, perguntei-lhe. Estão trocando figurinhas da Copa, você acredita? Claro que eu acreditava. Mais do que ser “o país do futebol”, éramos, naquele momento, o país-sede da Copa do Mundo, e tudo agora girava em torno desse evento esportivo.

Lembro-me de ter iniciado, na Copa de 94, um álbum de figurinhas, mas desisti logo em seguida. Não tenho – e creio que nunca terei – a paixão e a persistência que movem os colecionadores. Você coleciona alguma coisa? Não me respondeu: já havia se desinteressado pela agitação dos colecionadores e ouvia um músico de rua que tocava um contrabaixo acústico na calçada. A música chegava fraca ali onde estávamos, mesmo assim era possível distinguir, em meio aos ruídos de carros e vozes humanas, os acordes pulsantes de um jazz. Nem ousei lhe dirigir a palavra naquele momento: mesmo conhecendo pouco ainda da sua pessoa, da sua natureza humana, sabia-a amante da boa música. Era uma mulher sensível e inteligente, isso eu pude perceber tão logo iniciamos a conversa num bar da agitada Vila Madalena.

[NA AGITAÇÃO DA VILA MADALENA]

Estávamos em mesas separadas, mas a distância entre elas era mínima.  Tanto que a conversa de um grupo acabava invadindo o espaço do outro, transformando o ambiente num burburinho infernal.

Eu não estava nem um pouco interessado no papo dos meus companheiros de mesa. Aquela existência bovina, como dizia um amigo poeta, me entediava. Conhecera-os no Curso de Formação de Novas Práticas Bancárias na Era Digital e, paulatinamente, ia descobrindo que, entre nós, havia muito pouco em comum. Vez ou outra achava graça de alguma piada só para não parecer deslocado e chato. Queria era escapar daquele atoleiro verbal, – impossível, impossível, parecia me dizer uma voz encurralada dentro da minha cabeça: todas as rotas de fuga estavam tomadas por aquele falar incessante e vulgar.

Temendo que notassem a angústia e a aflição do meu olhar, desviei-o para o lado esquerdo sem outra intenção senão a de me pôr a salvo. Foi nesse instante, numa sincronia perfeita, como se houvéssemos ensaiado, que nossos olhares cruzaram-se. Sorri para ela. Ela sorriu de volta. Houve um primeiro momento de hesitação, de quase desistência, mas logo esticamos o pescoço e entabulamos uma conversa meio trôpega e ainda sem rumo. Pelo jeito, sentia-se sufocada também pela conversa banal que rolava na sua mesa. E fomos arranjando assunto do nada para manter acesa aquela chama salvadora. A intenção, sem que houvéssemos combinado, era escaparmos para um universo paralelo e nos refugiarmos ali.

Gosta de arte?, ela me perguntou.

[NO VÃO DO MASP II]

Enquanto ela se afastava, lenta e distraída, sem urgência e desespero, pus-me a observá-la pelo vidro da bilheteria.

Agora sua figura esguia, dentro de um vestido curto com estampa afro, ganhava um aspecto novo e fascinante. Parecia irreal. Uma criação mágica e inesperada da minha mente para escapar da solidão. A realidade circundante, com sua pulsação efêmera, já não a comportava mais. Habitava outro mundo agora, onde eu não poderia penetrar nem alcançá-la. Da noite passada, na Vila Madalena, até aquele momento, embaixo do vão do MASP, seu ser ganhara contornos inéditos e suas fronteiras, aparentemente nítidas e óbvias, ampliaram-se rumo ao inexplicável. O cabelo crespo, preso por uma faixa, crescia para o alto, denso e vigoroso.

Uma fila bastante extensa formara-se atrás de mim e eu não havia notado, tão entretido estava em observar os delicados movimentos da mulher dos meus sonhos (já pensava assim) naquela manhã de domingo. Algumas vozes alteradas começaram a protestar contra a demora no atendimento e só se calaram quando lhes expliquei que o sistema estava travado. O sistema, seja ele qual for, estará sempre sujeito a falhas, ponderou uma senhora logo atrás de mim. Deixei os ocupantes da fila entregues a uma calorosa discussão sobre as vantagens e desvantagens do mundo tecnológico e voltei-me para o vidro da bilheteria.

Flanava tranquila por entre os painéis de uma exposição de fotografias da natureza. Um casal de coreanos passou rente a ela, mas nem foi notado. Você está linda com essas botas de cano curto e esse vestido com estampa afro, pensei em lhe dizer, como se ela pudesse me ouvir ali no vidro da bilheteria. Porque agora ela só existia ali, virtualmente. Ainda que eu desejasse de modo intenso, como acontecera na mesa do bar, não poderia tocá-la mais.

Talvez tenha me distraído alguns segundos com outras imagens refletidas no vidro, como a do cartaz sobre Leitura Dramática – Letras em Cena, visto de modo espelhado, ou a do movimento incessante de pessoas na calçada, daí não ter notado que ela havia desaparecido do meu campo de visão.

Num primeiro momento, procurei-a sem sair da fila, ora buscando-a no vidro da bilheteria, ora voltando-me para a realidade concreta, da qual, aparentemente, ela havia se descolado. Depois, tomado de preocupação extrema, saí da fila e fui procurá-la ao redor do museu. Ouvi alguém na fila me chamando, avisando-me que o sistema havia voltado a funcionar. Não lhe dei atenção. Percorri todo o espaço do vão do MASP, desci para a calçada e busquei-a numa direção e noutra, segui um pouco rumo à 09 de Julho, já meio atarantado, no caminho fui perguntado se não tinham visto uma mulher negra, magra, de cabelo preso por uma faixa vermelha e usando um vestido curto com estampa afro. Ninguém a tinha visto! O senhor da bilheteria, por exemplo, não se lembrava de tê-la visto ao meu lado assim que chegamos. Como era possível isso?! Que ela havia me abandonado era bem plausível, agora, ele não se lembrar dela ali, ao meu lado, era algo absurdo. Quem estava travado, o sistema ou ele? Deve ter deduzido que eu estava louco, ou que era, no mínimo, um sujeito abusado, – virou-me as costas e foi brincar com o celular.

Ainda que pudesse ser em vão, olhei mais uma vez para o vidro da bilheteria na esperança de vê-la refletida lá, chegando suave e etérea, para pôr um fim ao meu assombro e desespero.

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

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Por Alex Ribeiro

De repente eu me atirei na vidraça
Os pedaços de vidro, e de mim, dilaceravam minha carne
E em meio a tanto sangue, tanta dor
Fui eu que fiquei catando os cacos
E sem nenhuma cerimônia
Como num ato justiceiro
Criou-se um veredito
E um réu.

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O homem comum como protagonista de si mesmo

Por Antônio Roberto Gerin

Interessante como este texto teatral, WOYZECK (1837), se mistura à biografia de seu autor, Georg Büchner. Não se trata, evidente, de uma autobiografia. Passa longe. Mas podia ter passado um pouco mais perto se Büchner, envolvido com a clandestinidade política, tivesse sido preso, julgado e morto, como viria a acontecer com alguns de seus parceiros de luta. E como aconteceu com o Woyzeck real, condenado e decapitado, em praça pública, em Leipzig, em 1824.  Se Büchner tivesse morrido, óbvio, não teria escrito Woyzeck, cujo fim trágico, o do Woyzeck real, muito impressionara Büchner. Mas Büchner conseguiu fugir a tempo, para Estrasburgo, na França, onde terminaria de se formar em medicina e se envolveria freneticamente com a escrita. No entanto, morre muito jovem, vítima de uma epidemia de tifo, aos vinte e três anos, em Zurique, na Suíça. Tão jovem e já autor de uma obra seminal, Woyzeck! Pois é. E, ainda por cima, inacabada. Morrera antes de terminá-la, e reside neste fato, talvez, o trunfo artístico de Woyzeck. Obra composta de vinte e cinco cenas, distribuídas de forma aparentemente aleatória, algumas herméticas, outras mostrando uma superfície literária ainda áspera, mas todas numa sequência trágica impecável. O texto Woyzeck permaneceria décadas sem ser publicado, e por uma razão espantosa. A tinta preta da letra miúda de Büchner quase desaparecera em boa parte das páginas manuscritas, tornando impraticável sua leitura. O irmão de Georg Büchner, Ludwig, que faria a publicação de parte da obra do irmão, em 1850, não incluiria, nas publicações, o texto Woyzeck. Somente em 1875, por uma feliz intervenção de um processo químico, levada a cabo pelo escritor Karl Emil Franzos, faria com que a tinta preta fosse realçada e trouxesse de volta as letras miúdas de Büchner, mesmo naquelas páginas em que a olho nu nada se podia ler. Tal façanha do destino aconteceria cinquenta anos após a morte de Buchner, ocorrida em 1937. Uma história fantástica, portanto, para um texto que pareceu ter nascido morto, mas que acabou por se tornar o texto teatral alemão mais montado no mundo.

No Brasil, Woyzeck recebeu várias montagens, com destaque para a de 2003, com Matheus Nachtergeale, de quem pegamos emprestado a imagem que ilustra esta resenha, e que teve a direção de Cibele Forjaz.

Georg Büchner desde cedo se transformara num jovem contestador, inquieto, atento aos desajustes sociais de grande parte da população, em uma época pós-napoleônica, uma Europa em rápido processo de industrialização, e o homem, uma casca vazia e maltrapilha, começava a se tornar apenas um número, sem amparo, sem assistência, consumido pela máquina produtiva, desesperançado, desprotegido por um Estado corrupto e ele próprio sem rumo, estas são algumas das muitas facetas de uma sociedade lucidamente captada pelo olhar genial de um Büchner que, pressentindo um mundo em transformação, onde o homem comum não ocuparia seu lugar de direito, fez da força poética de sua literatura um grito de alerta, grito precoce, mas que repercutiria ao longo do tempo, chegando até os nossos dias. É deste forno, apodrecido, cheirando a opressão e descaso, que nasce Woyzeck.

Como muitos autores, Henrik Ibsen e Federico Garcia Lorca, só para citar dois exemplos, Georg Büchner também se aproveitou de um fato da vida real para transportá-lo para uma obra de arte ficcional. Büchner, talvez a partir da biblioteca de seu pai, entrara em contato com uma publicação da história de Johan Christian Woyzeck, um jovem andarilho, um ser disfuncional que, órfão, perambula por uma Alemanha devastada pela guerra, alistando-se aqui e ali em exércitos que lhe oferecessem algum soldo. Dispensado, em 1818, por indisciplina, Christian Woyzeck retorna à sua cidade natal, Leipzig, onde conhece, na pensão onde viveria por algum tempo, a viúva e promíscua Johanna Christiane Woost. Fraco e sofrendo de delírios, ele tenta ainda buscar um espaço naquele mundo em que ser pobre era uma fatalidade. Mas Woyzeck tinha dificuldades em aceitar a desenvoltura sexual da amante, vindo a esfaqueá-la, em 1821. Preso, e após uma sequência de intervenções jurídicas, é condenado e executado, em 27 de agosto de 1824. Estava pronta a trágica história do soldado Woyzeck, para que o jovem escritor Georg Büchner lhe desse o genial tratamento artístico. Büchner, com toda sua sensibilidade social e existencial, traça um cruel retrato do homem daqueles tempos de início de século XIX, na Europa.

A estrutura narrativa adotada por Büchner, fragmentada em cenas independentes, transcende sua época, primeira metade do século XIX. Talvez uma obra nos moldes da poética aristotélica não resistisse ao tempo, se inacabada. Não foi problema para Woyzeck, texto caracterizado por uma construção literária inovadora, sem muito compromisso com as unidades de tempo e espaço. Podemos dizer que os descompassos emocionais do protagonista, com seus comportamentos fragmentários, a esmo, cercados de desvarios e desesperos, tenham facilitado Büchner na formulação da estrutura andarilha do texto. As cenas cabem em si mesmas, e, se destacadas do todo, não morrem, respiram, fortes, perenes. Este é o segredo básico de Woyzeck, e que lhe garantiu a sobrevivência artística, independente dos cânones literários da época. Os grandes autores do século XX vão sorver desta desconstrução técnica, tendo em Bertolt Brecht um de seus seguidores.

O trágico é a força que impulsiona o texto, de seu início, até desembocar no previsível, se assim podemos dizer, desfecho. Como em um quebra cabeça, podemos sentir a respiração ofegante da personagem em qualquer lugar em que esteja, encaixando-se à perfeição na perspectiva trágica planejada por Büchner. A vida pulsa, mas a morte permeia cada entrelinha, Büchner nos avisa. Eis um exemplo desta sutileza de estilo. Por Woyzeck. “… quando o marceneiro prepara as tábuas de um caixão de defunto, ninguém sabe quem será metido lá dentro.”. Woyzeck, um pobre coitado, como ele mesmo se reconhece, nada possui além de Marie, sua mulher e fêmea, que o troca por um símbolo de poder, o homem belo, o Tambor-mor, “um peito como um boi e uma barba como um leão”. Deste modo, nada sobra a Woyzeck. Tiram-lhe tudo. Resta-lhe tão somente a atitude derradeira.

O Woyzeck real de Büchner sofre algumas alterações na trama ficcional, e mesmo não tendo o compromisso com o tempo e o espaço, o autor posiciona a narrativa próxima à tragédia, e de uma forma inovadora consegue traçar uma realidade mitificada do estado emocional da personagem que, presa ao vazio existencial, e à condenação social, se rebela, mesmo que de forma esgarçada, contra aquele mundo que o oprime e nada lhe oferece além da miséria material e do julgamento moral. Abatido, Woyzeck mantém sua lucidez. Quando o Capitão questiona sua moral, por ter Woyzeck um filho sem a benção da Igreja, Woyzeck retruca. “Deus vai olhar para o vermezinho mesmo sem o coitado dizer amém antes de ser gerado.”. E diante da reação do Capitão à fala de Woyzeck, este continua. “A gente, os pobres… Veja, senhor capitão, o dinheiro, o dinheiro! Quem não tem nenhum tostão vai lá pensar na moral do mundo! A gente é de carne e osso. A gente é pecador neste mundo e no outro mundo. Eu acho que quando a gente chegar no céu, vai ser para ajudar a fazer os trovões.”. Estas palavras poderiam muito bem caber na boca de Büchner. E este nos parece ser o ponto mágico do seu texto. Talvez pressentindo a morte, que o rondava fazia anos, Georg Büchner se aproveitou da história trágica de Johan Christian Woyzeck, homem fruto de uma época de miseráveis, para perpetuar em obra de arte aquilo pelo qual ele sempre lutou. E tanto desejou. Que o homem, verdadeiramente, fosse dono legítimo do seu tempo e espaço.

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