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Por Leivison Silva

O Voto Feminino é uma peça em ato único escrita em 1890 pela jornalista e escritora pernambucana Josefina Álvares de Azevedo (1851-1913). Prima do poeta e dramaturgo Álvares de Azevedo (1831-1852), Josefina é uma das precursoras do movimento feminista no Brasil, bem como uma grande defensora do sufrágio feminino. Em 1877, ela criou o revolucionário jornal “A Família”, periódico que pregava a igualdade entre os sexos e reivindicava direitos para as mulheres, como direito à educação e direito a votar e a serem votadas. Apenas mulheres colaboravam para “A Família”, dentre elas Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), Anália Franco (1859-1919), Guiomar Torrezão (1844-1898) e Narcisa Amália (1852-1924), que foi a primeira mulher a trabalhar como jornalista profissional no Brasil. A peça O Voto Feminino, que surgiu a partir de um artigo escrito por Josefina intitulado “Direito ao Voto”, foi publicada inicialmente no jornal “A Família”, tendo sido encenada pela primeira vez em 1890, no Teatro Recreio Dramático, no Rio de Janeiro.

Toda a ação se passa na casa de Anastácio, um ex-conselheiro do Império. Sua esposa, dona Inês, é uma mulher atípica para a época. Gosta de ler artigos de jornal e se interessa por política, dando pouca atenção para os afazeres domésticos, que deixa aos cuidados de Joaquina, a criada da casa. O grande sonho de Inês é tornar sua filha, Esmeralda, uma das figuras mais importantes da política nacional. Esmeralda é casada com Rafael, um deputado jovem e ligeiramente abobado, a quem Anastácio influencia fortemente. Assim como sua mãe fizera no passado para o conselheiro Anastácio, é Esmeralda quem escreve os despachos que Rafael lê no parlamento. Inês e Esmeralda admiram o doutor Florêncio, um dos poucos homens públicos a apoiar a causa do voto feminino. Doutor Florêncio escreve artigos inflamados defendendo a causa feminina, o que irrita profundamente Anastácio e Rafael. Ao longo da narrativa, vemos como cada personagem lida com a expectativa do resultado de uma consulta submetida a um determinado ministro a respeito da decretação da lei do voto feminino.

Usando o teatro politicamente e munida de um texto inteligente e objetivo, Josefina tentou, com O Voto Feminino, sensibilizar os congressistas que elaboraram e aprovaram a Constituição de 1891, mas infelizmente sua estratégia, para aquele momento histórico, viria a se frustrar. As brasileiras só viriam a conquistar o direito de voto em 1932, mais de quarenta anos depois da publicação e estreia de O Voto Feminino. Mas a peça de Josefina cumpriu brilhantemente seu papel de obra artística como espelho do seu tempo, que é o de levantar a discussão sobre um tema relevante e levar o público à reflexão.

Nesses dias cinzentos de feminicídios pipocando por toda a parte, em que estamos vivendo um retrocesso no sentido de violação de direitos consolidados, tanto das mulheres quanto da comunidade LGBTQ+, dos negros, dos índios e dos pobres, temos em Josefina Álvares de Azevedo um exemplo de obstinação e resiliência para continuar a luta por uma sociedade equilibrada e justa. Josefina lutou pela consolidação de uma causa. Mas, ao longo do tempo, não foi a única Josefina. Outras existiram. E precisamos que outras continuem a existir.

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O homem por trás do codificador

Por Leivison Silva

Kardec (104’), Brasil (2019), é um filme dirigido por Wagner de Assis e roteirizado por ele e L. G. Bayão. Baseado no livro “Kardec – A Biografia”, do jornalista Marcel Souto Maior, o filme narra a trajetória do pedagogo, escritor e tradutor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), mais conhecido como Allan Kardec. O seu grande feito, e que o imortalizou, foi ter sido o codificador da Doutrina Espírita.

A contrário de outras cinebiografias, Kardec já começa com o protagonista Hippolyte Léon (Leonardo Medeiros) na maturidade. É quando ele ouve falar do fenômeno das mesas girantes, que intrigava a Europa da época. Bastante cético e desinteressado a princípio, Hippolyte, aos poucos, vai ficando curioso a respeito do fenômeno e decide estuda-lo seriamente. Como bom discípulo que era do pedagogo suíço Pestalotzzi (1746-1827), Hippolyte, ao lado de sua esposa, a também professora, poetisa e artista plástica Amélie-Gabrielle Boudet (Sandra Corveloni), emprega a investigação empírica e o método científico no estudo e comprovação dos fenômenos paranormais que passa a observar. Ao longo do estudo, Hippolyte adota o codinome de Allan Kardec, que fora seu nome numa vida passada, e passa a enfrentar o descrédito da comunidade científica, na qual era até então respeitado, bem como a oposição e perseguição da Igreja Católica e da imprensa. Esses estudos, criteriosamente registrados e catalogados por Allan Kardec, sempre apoiado por sua companheira Amélie, resultam na publicação de “O Livro dos Espíritos”, em 1857.

O roteiro, didático na medida certa, foi bastante feliz em narrar a gênese da Doutrina Espírita, sem apelar para o proselitismo, armadilha fácil para a cinebiografia de uma figura ligada a uma religião. E o maior acerto do filme é ressaltar a figura humana de Allan Kardec, com todas as suas contradições e fragilidades, em detrimento da figura mítica. Mérito, em grande parte, do ator Leonardo Medeiros, com sua interpretação consistente e segura do codificador da Doutrina Espírita. Destaque também para a sensível atuação de Sandra Corveloni, que construiu uma Amélie doce e forte ao mesmo tempo. O talentoso casal de atores esbanja química e afetuosidade na telona, dando vida a Kardec e Amélie, um casal atípico para a época, já que se respeitavam, não tinham filhos e ela era mais velha que ele.

Outro aspecto que logo de cara chama a atenção em Kardec é a esmerada reconstituição de época, algo poucas vezes visto numa produção cinematográfica brasileira. Cenários e figurinos belíssimos e uma fotografia de encher os olhos recriam com bastante requinte a Paris de meados do século XIX. Enfim, um filme que remete o espectador a uma história que vai além da doutrina, isto é, que atravessa o mito e cai no humano. Por esta razão, é um filme que vai interessar a todos, espíritas ou não.

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Por Leivison Silva

O Berço do Herói é uma peça em dois atos, subdividida em dezesseis quadros, escrita em 1963, por Dias Gomes (1922-1999). A primeira montagem da peça deveria ter acontecido no Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro, em 1965, mas acabou sendo vetada na noite da estreia. No ano seguinte, Dias Gomes tentou, então, transformar a peça em filme, chegando mesmo a escrever o roteiro, mas foi interditado mais uma vez pelo governo militar que, na pessoa do general Riograndino Kruel, declarou que “enquanto os militares mandarem neste país, essa peça jamais seria encenada”. Em 1975, Dias Gomes tentou adaptar sua peça para a televisão, sob o título de Roque Santeiro, mudando os nomes de quase todas as personagens e acrescentando tramas paralelas que não existiam na peça original. A novela, que já contava com cinquenta e um capítulos escritos, quase trinta gravados e dez editados, foi proibida de ir ao ar na noite de sua estreia. A justificativa dos censores foi a de que “a novela contém ofensa à moral, à ordem pública e aos bons costumes, bem como achincalhe à igreja”. Proibida no Brasil, O Berço do Herói teve sua estreia mundial somente em 1976, no teatro “The Playhouse”, do Departamento de Teatro e Cinema da Pennsylvania State University, nos EUA. Em 1985, com os ares liberais da Nova República, a novela pôde enfim ir ao ar, tornando-se um dos maiores sucessos da televisão brasileira de todos os tempos, e tornando os personagens tão populares, que Dias Gomes se viu obrigado a reeditar O Berço do Herói, mudando inclusive os nomes originais dos personagens para os novos nomes que eles ganharam na adaptação televisiva.

O enredo de O Berço do Herói se passa em 1960. A peça conta a história de cabo Roque, um pracinha da Força Expedicionária Brasileira que desertou em pleno campo de batalha, mas que, por engano, foi considerado morto e transformado num herói de guerra. Sob a batuta do demagogo deputado federal Chico Malta, mais conhecido como sinhozinho Malta, a cidade natal de Roque, Asa Branca, havia crescido e se desenvolvido em torno do falso mito. Roque ganhou até mesmo uma viúva: Porcina, “a que era sem nunca ter sido”. Porcina era, na verdade, amante de sinhozinho Malta, que forjou uma certidão de casamento entre ela e Roque somente para trazer a amante para perto de si. Porcina havia conhecido Roque de passagem, numa pensão em Salvador, mas nunca fora casada com ele. No entanto, ganhou dinheiro e prestígio vivendo à sombra da mentira articulada por sinhozinho Malta.

Tudo ia muito bem, até o momento em que Roque volta à Asa Branca, quinze anos depois de ter sido considerado morto. Sua presença leva ao desespero as mais ilustres figuras locais, no caso, o Padre Hipólito, uma “figura tão contraditória quanto a própria Igreja Católica”, o prefeito Florindo Abelha, um homem sem personalidade e totalmente subserviente a sinhozinho Malta, e o ambicioso comerciante Zé das Medalhas, que havia enriquecido com a venda de medalhinhas com a efígie do falso herói da terra. Porém, o maior prejudicado com a volta de Roque é sinhozinho Malta, que institucionalizou a mentira para fortificar o mito e tirar vantagens pessoais.

Em O Berço do Herói, Dias Gomes aborda com muita picardia o mito do herói, mais especificamente um herói militar, tema bastante delicado tanto naquela época quanto agora, em 2019. A peça é um belo exemplo da brilhante carpintaria dramática de Dias Gomes, sempre apoiada num texto inteligente, dito por personagens riquíssimos e muito humanos. O Berço do Herói é uma excelente sátira sobre fanatismo religioso, manipulação das massas e sobre o jeitinho brasileiro de certos políticos de se perpetuarem no poder à custa da ignorância de uns e da venalidade de outros. Qualquer semelhança com a atual realidade do Brasil, infelizmente, não é mera coincidência.

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