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Por Leivison Silva

Electra é uma tragédia em ato único, escrita pelo dramaturgo grego Eurípides (484 a. C. – 406 a. C.). A famosa personagem, filha do rei Agamêmnon e da rainha Clitemnestra, já havia sido retratada anteriormente por Ésquilo (525 a. C. – 455 a. C.), nas Coéforas, que faz parte de sua trilogia Oréstia. Também Sófocles (496 a. C. – 406 a. C.) viria a escrever uma tragédia com o nome da personagem.

Na versão de Eurípides, a peça começa com o personagem Trabalhador nos contando os antecedentes da tragédia. Electra fora forçada por Egisto, seu padrasto, a se casar com um simples camponês, no caso, o Trabalhador. Egisto temia que, se Electra se casasse com um nobre, os possíveis filhos desse casamento poderiam querer vingar a morte de Agamêmnon, pai de Electra. O Trabalhador, no entanto, se apiedou da princesa Electra e jamais a tocou.

O irmão de Electra, Orestes, que havia sido exilado por Egisto ainda na infância, volta a Argos acompanhado de seu amigo, Pílades, para vingar a morte de seu pai. Electra e Orestes se encontram, mas a princípio não se reconhecem. Um velho preceptor de Agamêmnon, que ajudara a salvar Orestes de Egisto, é chamado e reconhece Orestes, apesar de terem se passado muitos anos desde a última vez que o vira. Ajudados pelo Velho, Electra e Orestes planejam a morte de Egisto.

Orestes e Pílades se infiltram no acampamento de Egisto, que saíra do palácio para um bosque, a fim de oferecer sacrifício para as divindades. Orestes mata Egisto e volta à casa de Electra com o cadáver. Electra, por sua vez, exige que os dois matem também Clitemnestra. Orestes hesita em matar a mãe, mas Electra, tomada pelo ódio e pela mágoa de ter sido obrigada a sair do palácio para viver numa simples choupana, o convence a fazê-lo.

Electra manda chamar Clitemnestra sob o pretexto de que estava com um bebê recém-nascido em casa e que precisava da ajuda e da experiência da mãe para proceder aos ritos referentes ao décimo dia de vida do suposto filho. Clitemnestra cai na armadilha e vai ao encontro da filha. Após um embate entre as duas, Clitemnestra é morta por Orestes, que enterra uma faca na garganta da mãe. Imediatamente, Orestes e Electra se arrependem de terem matado a própria mãe. Mas, ao final, são absolvidos de seu crime pelos Dióscuros, que eram os espíritos de Castor e Pólux, irmãos de Clitemnestra e Helena. Os Dióscuros julgam que Clitemnestra recebera uma punição justa.

Vê-se claramente na tragédia de Eurípides que os humanos não são mais um mero instrumento da fatalidade cega. Pelo contrário. Estes têm muito mais autonomia do que nas tragédias de Ésquilo, por exemplo, e são-nos apresentados de maneira mais humana e apaixonada. Embora sejam citados ao longo do texto, os deuses e oráculos em Electra não têm um papel tão determinante no desenvolvimento da ação.

Outro ponto que chama bastante a atenção nessa peça é seu final. Ao invés de serem cruelmente punidos pelos deuses, Electra e Orestes são “apenas” obrigados a saírem de Argos para sempre, e assim, longe da terra natal, prestarem contas às suas consciências pesadas por seus atos. Inclusive a culpa é retirada dos irmãos e atirada em Apolo, por tê-los induzido a cometer o crime de matricídio. A absolvição de Orestes fora dada após o julgamento ocorrido no tribunal do Areópago, em que os votos contra e a favor da condenação empataram, e a deusa Atena deu seu veredito em favor de Orestes – daí vem a expressão “voto de Minerva”, nome romano de Atena. Os Dióscuros ainda determinam que Electra se case com Pílades e aconselham Orestes a ir até a cidade de Atenas para escapar das Fúrias, benevolência esta pouco comum nos deuses apresentados nas tragédias gregas em geral.

Em suma, caros leitores, temos em Electra, de Eurípides, um clássico do teatro mundial, e também um registro do alvorecer da racionalidade para o mundo ocidental, quando a vontade humana passou a sobrepujar os desígnios divinos. Leitura indispensável para os amantes do teatro.

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A ameaça da memória

Por Leivison Silva

Rebecca, A Mulher Inesquecível (130’), EUA (1940), é o primeiro filme dirigido por Alfred Hitchcock (1899-1980) em Hollywood. Estrelado pelo grande ator inglês Laurence Olivier (1907-1989) e pela atriz Joan Fontaine (1917-2013), o enredo de Rebecca, A Mulher Inesquecível foi baseado no livro homônimo de Daphne Du Maurier (1907-1989), romance esse que, especula-se, seria um plágio do romance “A Sucessora”, da escritora brasileira Carolina Nabuco (1890-1981), publicado quatro anos antes da versão de Daphne. Polêmicas à parte, a estreia de Hitchcock nos Estados Unidos não poderia ter sido melhor. O cineasta, que já tinha uma carreira bem-sucedida e consolidada na Inglaterra, sua terra natal, conseguiu criar um thriller psicológico irresistível. Rebecca, A Mulher Inesquecível fez bastante sucesso na época de seu lançamento, ganhando, inclusive, o Oscar de Melhor Filme daquele ano, sendo, assim, o único filme do Mestre do Suspense a ser premiado nessa categoria.

A personagem de Joan Fontaine, cujo nome, curiosamente, não é falado em nenhum momento do filme, trabalha como dama de companhia da senhora Van Hopper (Florence Bates), quando conhece, em Monte Carlo, o ricaço George Fortescue Maximilian De Winter (Laurence Olivier). Os dois passam a sair juntos e se aproximam, até que Maxim pede a moça em casamento. Casados, eles vão para Manderley, a suntuosa casa de campo de Maxim. Chegando a Manderley, a nova senhora De Winter é recebida com relutância pelos criados, em especial pela Sra. Danvers (Judith Anderson), a rígida governanta da casa, que idolatra a memória de Rebecca, primeira esposa de Maxim, e não aceita que aquela nova mulher, que está chegando, ocupe o lugar de sua amada patroa.

A nova senhora De Winter sente-se intimidada pela governanta, que a coage e enche sua cabeça de dúvidas e temores, fazendo-a se sentir indigna de Maxim. Soma-se a isso a falta de delicadeza de Maxim e, principalmente, a onipresença de Rebecca, com quem é sempre comparada por todos os que conviveram com a morta. Ao longo da ação, a nova senhora De Winter vai descobrindo os segredos pavorosos que as paredes de Manderley guardam, em especial sobre a inesquecível Rebecca. E é justamente quando o cadáver de Rebecca é encontrado, que o filme dá um giro de cento e oitenta graus.

A bela fotografia em preto-e-branco, premiada com o Oscar de Melhor Fotografia de 1940, e os cenários grandiosos, com sombras fantasmagóricas projetadas nas paredes, criam uma atmosfera tensa e opressiva. Mesmo as externas de Manderley têm um ar sombrio. A trilha sonora, composta especialmente para o filme por Franz Waxman (1906-1967), encaixa-se à perfeição nesse mosaico, dando o tom certo para cada cena.

Dentre excelentes atuações, duas se destacam: Joan Fontaine e Judith Anderson. A postura encurvada de Joan Fontaine na primeira metade do filme deixa sua personagem ainda mais vulnerável e frágil, nos dando a impressão de que a personagem está sendo realmente esmagada pela memória de Rebecca. É bem interessante ver a trajetória da personagem, a princípio caminhando tímida e deslocada pelos cenários suntuosos e, aos poucos, mais confiante, madura e assumindo o seu lugar de direito, de legítima senhora De Winter. Já Judith Anderson deu à sua assustadora Sra. Danvers uma frieza calculada na voz, pontuada por oportunos olhares alucinados. A relação doentia de carrasco e vítima entre as duas personagens é um dos pontos altos do filme.

Rebecca, A Mulher Inesquecível é um clássico do Mestre do Suspense, que, com suas reviravoltas surpreendentes, nos mantém ligados na tela até o último segundo. Filme indispensável para todos os amantes da sétima arte.

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Por Leivison Silva

Auto da Barca do Inferno é um auto de moralidade, escrito em 1516, por Gil Vicente (1465-1536), o primeiro grande dramaturgo português. Apresentado pela primeira vez em 1517, o Auto da Barca do Inferno é um marco na dramaturgia em língua portuguesa. Escrito em versos e com forte viés cômico e crítica social afiada, o auto satiriza o juízo final católico, ainda tão temido por aquele mundo recém-saído da Idade Média.

A ação do Auto da Barca do Inferno acontece numa espécie de porto, onde estão ancoradas duas barcas, a do Céu, cujo comandante é o Anjo, e a do Inferno, capitaneada pelo Diabo e seu ajudante. Ao longo da narrativa, vão chegando as demais personagens. São elas: o Fidalgo com seu pajem, o Onzeneiro (equivalente a agiota atualmente), Joane (o Parvo), o Sapateiro, o Frade com sua namorada, Florença, a cafetina Brísida, o Judeu, o Corregedor, o Procurador, o Enforcado e quatro Cavaleiros. À medida que vão chegando ao porto, as personagens tentam embarcar na barca do Céu, mas são barradas pelo Anjo. Como não tiverem uma conduta reta e digna enquanto estavam vivos, agora têm que embarcar, à sua revelia, na barca do Inferno. O Diabo recebe a todos com muita ironia, sem ligar para os xingamentos e ofensas que os condenados lhe fazem. Somente os quatro Cavaleiros, que chegam ao final do auto, são admitidos pelo Anjo na barca do Céu, já que morreram nas Cruzadas contra os mouros (muçulmanos), no norte da África.

É interessante ver como Gil Vicente, através da figura irônica e divertida do Diabo, tece, com charme e bom humor, críticas implacáveis à sociedade portuguesa da época, colocando o dedo na ferida das instituições e denunciando a hipocrisia reinante e o apego exacerbado pelas coisas materiais. Exemplo disso é que cada condenado traz consigo um símbolo de sua vida na Terra, como o Fidalgo, que traz uma cadeira e o pajem, o Onzeneiro, que traz uma bolsa, e o Judeu, que traz um bode, um dos símbolos do Judaísmo. Outro personagem com essa função de denúncia/reflexão é Joane, o Parvo. Se intrometendo nas falas do Anjo e do Diabo, o Parvo faz comentários debochados sobre os recém-chegados, que tentam, em vão, argumentar que merecem embarcar na barca do Céu e não na do Inferno. A língua ferina do Parvo não poupa nem o Diabo, cutucando-o de vez em quando. A escolha dos tipos humanos também foi certeira, dando-nos um bom panorama daquela sociedade que à época se lançava ao mar rumo a terras desconhecidas.

Nesses dias escuros que vivemos, em que a Terra voltou a ser plana e as florestas são condenadas à fogueira, as críticas de Gil Vicente estão mais atuais do que nunca. É por essas e por outras razões que os clássicos, como o Auto da Barca do Inferno, não envelhecem nunca.

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