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Quando a maldade se torna um bem comum

 Por Antônio Roberto Gerin

 DOGVILLE, (178’), direção de Lars Von Trier, Dinamarca/Suécia/EUA (2003), quebra com alguns paradigmas a que estamos acostumados quando se trata de concepção de cenários – interiores e exteriores. Dogville é uma cidade. Até aí tudo bem. Só que é uma cidade desse tamanho, minúscula. E, evidente, há habitantes. Contam-se nos dedos. Quinze adultos. Tirando-se aí as sete crianças. Uma cidade quase invisível, perdida nas montanhas, em algum lugar nos Estados Unidos. Não tem xerife, não tem prefeitura, hospital, escola, no máximo uma igreja, representada cenicamente apenas pelo topo do campanário. Portanto, há só casas. Poucas. Sem paredes. Sim, as casas não têm paredes. As paredes são traçadas a giz. As portas existem apenas na sonoplastia, quando os trincos são abertos ou fechados. Até o cachorro, Moisés, é desenhado a giz e só vive na sonoplastia de seus latidos. E as casas não têm teto. As tomadas de câmeras lá de cima envolvem toda a cidade, de onde o espectador poderá bisbilhotar o interior de cada casa. Aliás, enquanto a câmera passeia pela rua principal, focando alguma cena, podemos notar em volta e ao fundo os interiores dos lares e o que neles acontecem. Inclusive o sexo. Diante disso tudo, a que conclusão podemos chegar? Que se trata de um teatro a céu aberto. Daí o propósito de a cidade de Dogville ser tão minúscula. Ela tem que caber num palco. No caso, num enorme galpão, na Dinamarca, onde o filme foi rodado. Um teatro a que podemos assistir em casa ou nos cinemas, e sermos afetados pelas mesmas emoções a que estaríamos expostos caso estivéssemos sentados numa poltrona de teatro, presenciando tudo ao vivo. Esta é a grande sacada de Lars Von Trier. Ele tinha um propósito. Mostrar, a conta gotas, da forma mais pungente possível, os horrores humanos. Para isso, ele se utiliza dos recursos do teatro com o objetivo de trazer o público para bem pertinho do cotidiano da cidade. O público imerso na sua triste intimidade.

Então, vamos lá. Agora sabemos que é filme-teatro. Que não há paredes. E mais. Poucos móveis, o necessário, que não atrapalhe os movimentos das cenas. A câmera atravessa tudo, e nossos olhos caminham junto com ela. Nós presenciamos o que os habitantes fazem. Nos quatro cantos. Somos onipresentes. A câmera, totalmente livre, nos ajuda a discernir a terrível construção da narrativa. Os habitantes, não. Eles nada percebem. Estão cegos, presos a um cotidiano que os faz insensíveis às suas míseras condições. Moisés, o cachorro desenhado no chão da rua, poderia simbolizar a revelação, o anunciado do que está por acontecer, no entanto, cão não narra, portanto, para o que acontecerá em Dogville não haverá resposta. Resta aos pobres habitantes se enxergarem através de seu narrador que, ao criar uma semântica filosófica confusa, nos leva à beira do absurdo. O narrador suprime, em alguns momentos, a necessidade de diálogos para mostrar como a mente humana funciona diante de situações de ignorância ética.

A vida pacata de Dogville começa a se alterar com a chegada de uma bela e misteriosa mulher, Grace Margaret Mulligan, encarnada na beleza implacável de Nicole Kidman. Sabe-se que Grace chegara a Dogville fugindo de tiros ecoados naquela noite, montanha abaixo, e ouvidos por Tom Edison (Paul Bettany), jovem escritor que pretende escrever um livro, mas que, no momento, está mergulhado na dura tarefa de construir o que ele chama de rearmamento moral. O que isto significa jamais saberemos. Mas é com base neste seu comportamento de líder intelectual junto à comunidade, uma liderança titubeante, covarde e narcisista, que o filme encontrará seu ritmo, seu desregramento moral, sua evolução dramática, sua explosão trágica. Acompanhado de perto pelo onipresente narrador, Tom levará Grace ao inferno, permitindo e compactuando com os comportamentos imorais dos habitantes de Dogville. Tom teria uma escolha. Onde todos se salvariam. Mas ele é fraco e esconde sua fraqueza na omissão. Deixa que Grace, por quem está apaixonado, seja lentamente entregue aos cães.

A estrutura narrativa se divide em um prólogo e nove capítulos. O prólogo é utilizado para apresentar ao espectador a cidade de Dogville e seus habitantes. A partir do primeiro capítulo, vamos presenciar a evolução traumática do convívio de Grace com a cidade. Naquela mesma noite, logo após a chegada de Grace, entram pela rua principal da cidade alguns carros, ao estilo dos anos 1930, óbvio, procurando pela fugitiva. São gângsteres, logo se percebe, e agora fica claro para Tom de quem ela está fugindo. A partir daí, a motivação narrativa de Dogville torna-se óbvia. Em troca de acolhimento por parte da cidade, assustada e apreensiva com a inesperada visita dos gângsteres, Grace terá que prestar serviços domésticos de casa em casa, dia após dia. No entanto, a cada visita da polícia à procura da fugitiva, aumenta a tensão. E o jogo de barganhas, eufemismo para a palavra maldade. Eis a proposta existencial do filme. Mostrar como o poder induz o ser humano à maldade. Aos desvios de conduta. Somos um vulcão querendo eruptir! Com o poder nas mãos, eis a oportunidade! E o filme, dentro de sua estrutura e proposta, só se viabiliza em função do comportamento covarde de Tom. Ele é um biombo de vidro transparente, através do qual o espectador poderá observar, atônito, a podridão humana.

A maldade exala do filme de uma forma tão asquerosa que nos leva a nos perguntarmos se é assim mesmo que somos. E aqui está toda a questão. Quando encontramos a maldade diluída no dia a dia, manifestando-se aqui e ali, individualmente, ou em pequenos grupos, parece que estamos protegidos dela, podemos ver a maldade lá longe, fora do nosso alcance, de preferência nos noticiários. Chegamos até a nos acostumarmos com ela. E, de tão corriqueira, nos parece inofensiva. Assassinatos? Têm aqueles que matam. Roubos? Têm aqueles que roubam, estupram, escravizam… Só que quando a maldade se torna coletiva, aí a coisa muda, radicalmente. É quando nos inserimos nela. Fazemos parte da prática do mal. Eu faço a maldade, o vizinho também faz a mesma maldade, a minha cunhada, o amigo, e assim o que era apenas uma maldade identificada como tal, torna-se uma conduta coletiva, portanto, aceita, portanto, desprovida da sua essência moral. Tiramos de nós mesmos a responsabilidade da prática do mal. Esta responsabilidade não existe porque, naquele momento, não existe, aos olhos de todos, a maldade. Este é o horror da desumanidade! É quando adulteramos o indivíduo como entidade íntegra e inoculamos nele uma percepção inútil de certo e errado. Dogville traz isto com toda clareza. E caso o espectador queira se aprofundar, através da arte, nesta realidade tão ao nosso alcance, indicamos uma peça de teatro, de Friedrich Dürenmatt, A Visita da Velha Senhora (1956), peça com a qual Dogville divide muitas semelhanças, em especial na construção do perfil psicológico de Tom e Schill. Ambas as obras nos ensinam o que é tomar uma atitude de maldade como padrão de convivência aceitável. É quando não existe mais a humanidade e, sim, apenas a carcaça dela. É que o homem, já morto, se antecipou à morte de si mesmo. Ele não é mais uma entidade espiritual. Apenas um punhado de ossos despreparados para viver. É desta forma que o trágico se anuncia.

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 Por Antônio Roberto Gerin

Eugene O’Neill era um homem atormentado pelas malditas heranças da família O´Neill, como ele mesmo se reconhecia. Filho de um grande ator americano, Eugene se recusava, a princípio, a entrar para o teatro. Cederia após malsucedidas tentativas na sua busca por um lugar ao sol. Acometido de malária, após viagem a Honduras, entra para a escrita teatral, com trabalhos, no princípio, sem grandes pretensões, mas logo foi impondo o seu gênio e ocupando um espaço importante na dramaturgia norte-americana, tendo ganhado seu primeiro dos quatro prêmios Pulitzer ainda em 1920, aos trinta e dois anos. Jovem, portanto. E que o levaria, já em 1936, a ser o primeiro dramaturgo norte-americano a ganhar o prêmio Nobel de Literatura. Já cansado, prevendo dias difíceis que chegavam com a velhice, uma vez que sempre teve uma saúde frágil, ele senta diante de si mesmo para prestar contas com o seu passado. Era o ano de 1941. Desta atitude de coragem nasceu sua obra-prima, Longa Jornada Noite Adentro, tão profunda, tão verdadeira, tão confessional, que ele determinou que o texto só poderia vir a público vinte e cinco anos após a sua morte. Perguntado o porquê de tal exigência, alegou que uma das personagens ainda estava viva.  Quando ele escreveu Longa Jornada Noite Adentro, das personagens reais envolvidas nesta trama dramático-familiar, só restava vivo ele próprio. Seu pai, James O’Neill, morreria em 1920; sua mãe, Ellen Quinlan, em 1922; e seu único irmão, Jamie, dez anos mais velho que Eugene, em 1923. Como se vê, num espaço de apenas três anos, sua família se desfaz. Por sorte, sua esposa, Carlotta Monterey, desobedeceria a seu pedido e em 1956, três anos depois da morte do marido – Eugene morreria de tuberculose, em 1953 -, ela permitiria a publicação e montagem deste magnífico texto, condecorado – post-mortem –, em 1957, com o que seria o quarto Pulitzer de Eugene O’Neill.

O texto transcorre em apenas um dia, no ano de 1912, e é dividido em quatro atos. Pela manhã, ao entardecer, à noitinha e, por fim, noite adentro. Não há enredo. Há apenas o cotidiano da família Tyrone.

Nestes quatro painéis, de forma progressiva, Eugene mapeia as impossibilidades de cada um dos quatro membros da família Tyrone – leia-se, O’Neill – em se encaixarem numa harmonia de desejos e sentimentos que os levassem a desfrutar uma vida em comum. É como se cada membro apontasse, ostensivamente, para uma direção que, de preferência, seria o oposto a do seu interlocutor, ressaltando a incapacidade de as personagens dividirem os mesmos espaços. Aparentemente, os diálogos não se encadeiam. Do contrário, se chocam, se esbatem, se machucam. Pequenos arranhões que se avolumam em rancores que moldam o comportamento de cada um, mas que vão, todos, dentro desta disfuncionalidade, se encontrarem num mesmo álibi: o vício.

O ponto de partida do drama gira em torno da doença de Eugene, que na peça assume o nome de Edmund, nome de seu irmão morto aos dois anos, quando Eugene O’Neill ainda não era nascido. O fenômeno dramático condutor da trama é o vício da mãe que, sensível e frágil, vê-se presa à morfina para amenizar suas dores reumáticas, situação que envergonhava a ela, decepcionava o marido, irritava o filho mais velho, Jamie, e assustava o mais novo, Edmund. Portanto, cada membro recebia o vício da mãe à sua maneira. Como também recebiam, assustados, a tuberculose de Edmund, doença quase fatal no começo do século XX. Tinham-no, pois, como futuro morto. E, por fim, permeando estas realidades, a bebida, problema central para o irmão Jamie, problema quase central para o pai, James, e um grande problema para si, Edmund. Eugene O’Neill conviveria a vida toda com o medo de se tornar um alcoólatra como o irmão.  E, por fim, como consequência dessa desestruturação familiar, o texto ecoa o tempo todo o desenraizamento, o não pertencimento, a falta de um lar como referência afetiva e social da família Tyrone-O’Neill. James O’Neill era um grande e promissor ator norte-americano que se entregara, por dinheiro, ao teatro comercial, obrigando-o a fazer longas turnês pelos Estados Unidos. Nas constantes viagens, arrastava a mulher e os filhos para lugares estranhos, hotéis baratos, uma vida de incertezas e nenhuma segurança afetiva e de pertencimento. Esta realidade resume o nascimento e morte do grande dramaturgo norte-americano. Eugene O´Neill nascera em um hotel e viria, sessenta e cinco anos depois, a morrer em um hotel. E esta dolorosa constatação acompanhou-o na morte.

Percebe o leitor, lendo os parágrafos acima, a mistura de nomes, reais e fictícios, Tyrone e O’Neill, ficção e realidade. Tal se deve porque assim é Longa Jornada Noite Adentro, uma autobiografia, senão fiel, mas muito próxima da ficção apresentada por Eugene em Longa Jornada Noite Adentro. E o faz sem muita maquiagem nem disfarces retóricos, inclusive nos nomes, que ele os traz da vida real.

Todos nós sabemos que o artista tem grandes parcelas de si mesmo em sua arte, mas talvez ninguém chegou tão longe quanto Eugene O’Neill na sua exposição pessoal. E isto é tão verdade que, para encerrar, faremos apenas uma observação técnica desta magnífica obra. Ao ler Longa Jornada Noite Adentro, com extrema atenção também para as rubricas, vamos perceber que estamos diante de um filme em que não há paisagens, não há mobílias, não há interiores, senão tão somente os closes dados às almas das personagens, vistas de tão perto que não podemos saber o que realmente fazem com seus braços e pernas. Cada mínimo sentimento é radiografado por este fenomenal dramaturgo que, sabemos, inaugurou o teatro moderno norte-americano. Seu ato de coragem é também sua genialidade.

Há obras que enfeixam uma vida literária, que se pode dizer definitiva, o artista se concluindo em si mesmo. É como se ele não mais pudesse ir além daquele momento de dor e inspiração. É assim que Longa Jornada Noite Adentro pode ser vista. O humano clonado em personagens. Emolduradas num retrato de família.

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Liberdade banhada em sangue

Por Antônio Roberto Gerin

DJANGO LIVRE, (163’), direção de Quentin Tarantino, EUA (2012), caminha na mesma trilha temática de seu filme anterior, Bastardos Inglórios, em que Tarantino executa um voo rasante sobre a História para desenvolver sua dramaturgia de vingança e poder, regada, lógico, a muito sangue. Se em Bastardos Inglórios ele nos oferece sua versão pessoal sobre a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de registrar sua indignação contra o nazismo que gerou uma das maiores barbáries de que se tem notícia, o holocausto, aqui, em Django Livre, ele traça um doloroso painel da escravidão no sul dos Estados Unidos, com enredo datado, 1858, dois anos antes do início da Guerra Civil Americana. Em Django Livre, mais uma vez Tarantino destila sua aversão a um lado obscuro da História da Humanidade, a escravidão, à época, um dos pilares da economia norte-americana, com o aviltamento de uma etnia relegada a objeto de domínio e exploração abusivos. Não que Tarantino queira criar, em imagens, uma versão pessoal de fatos históricos. Nada disso. Tarantino só quer fazer bons filmes. Mas, como cidadão do mundo, ele não vira as costas ao que vê e enxerga, seja pessoalmente, seja nos livros de História.

Chama-nos a atenção o fato de que, pela forma como Tarantino alinhavou o roteiro, ele teria a oportunidade de trabalhar uma temática diferente, priorizando falar dos sofrimentos gerados pelo amor entre dois jovens escravos, cruelmente separados por obra e vingança do antigo “dono”. Seria a oportunidade de edificar um épico, em que o herói construído luta contra tudo e todos para ter de volta a sua amada. Isto, de fato, acontece no filme. Django vai do negro submetido à sua condição de escravo a herói em plena consciência do seu poder quase ilimitado. Mas esta construção vem diluída num propósito maior. Tarantino não se entrega a sentimentalismos. Ele só precisa do amor dos jovens escravos para empurrar a narrativa rumo a seus propósitos, o de radiografar a sociedade escravocrata ao longo do rio Mississipi. O que importa é o pelourinho. O ferro em brasa na pele negra. As algemas sangrando os tornozelos negros. Os cães devorando o negro fugitivo. A subserviência do negro à Casa Grande. A insolência do branco em usar, sem escrúpulos, o seu poder para satisfazer, às custas de humilhações aos negros, seus impulsos bárbaros. E esta soberba atinge seu ponto máximo nas lutas fratricidas dos mandingos, o sangue do negro escorrendo em pleno salão nobre da Casa Grande, sob risos e brindes dos excitados convivas. Tarantino garimpa, sem retoques e sem pudores, essa estrutura socioeconômica pré-Guerra da Secessão, para traçar seu painel sobre a escravidão. Vale lembrar que em seu próximo filme, Os Oito Odiados, já no pós-guerra civil, Tarantino retomaria esta temática, agora num país pronto para se autoflagelar como forma de se curar das feridas da escravidão que, sabemos, irão supurar nos movimentos negros dos anos 1960. Spike Lee reagiu ao filme, sequer quis assisti-lo. Talvez mais que uma reação à história de seus antepassados, com a qual não queira concordar, Spike Lee provável temeu ser atingido pelas imagens devastadoras construídas, com requinte fotográfico e cênico, por Tarantino. Tarantino é assim. Não poupa ninguém. Nem a si mesmo.

A sinopse de Django Livre pode ser dividida em dois momentos distintos, simplificados por uma narrativa linear, simples, mas consistente. Não se vê fissuras na estrutura, arranjos para resolver impasses, nem inverossimilhanças ou motivações vazias. Tudo segue de forma segura rumo aos clímaxes (são dois), cujo momento crucial surge quando um sentimental Dr. King Shultz (Christoph Waltz), após ouvir Beethoven, reage à farsa montada pelo fazendeiro Calvin Candie (Leonardo Di Caprio). O inesperado sentimentalismo de Shultz leva-o a perder o autocontrole e a disparar o primeiro clímax. Na sequência, Django se encarregará de detonar o segundo.

Dr. King Shultz é um alemão que abandona a profissão de dentista para exercer o cargo, no sul dos Estados Unidos, de caçador de recompensas. E o exerce com humor e eficiência, e com um senso de justiça e de humanidade pouco visto na filmografia de Tarantino. É ele, Dr. Shultz, em mais uma magistral atuação do ator austríaco Christoph Waltz, quem dá pulsão (de morte) e vigor (dramático) ao filme Django Livre. A presença magnetizante de Waltz na tela, com seu repertório cômico, traduzido em trejeitos vocais e gestos abusivamente expressivos, dão ao filme a dose mítica que nos eleva a momentos inesquecíveis e prazerosos.

Dr. King Shultz está à procura dos irmãos Brittle, e vê em Django, um escravo fugitivo, recém adquirido por algum fazendeiro de Greenville, o homem capaz de levá-lo às suas valiosas presas. Dr. Shultz não economiza saliva nem balas para obter a liberdade de Django. Esta é a primeira parte do filme, de que se ocupa o enredo, a caça, pela dupla, aos irmãos Brittle.

Já na primeira parte é introduzida a segunda. Dr. Shultz fica sabendo que Django é casado, e que, separado da esposa, Brunhilde, sonha em reencontrá-la. E libertá-la. Nosso caçador de recompensas, no seu sentimentalismo nada alemão, se comove com a ideia obsessiva de Django e, sem hesitar, propõe ajudá-lo. Encontrados os irmãos Brittle, passado o inverno, eles descerão para Greenville, onde irão descobrir para que fazenda a amada fora vendida. E eis que ela está na fazenda Candyland, cujo proprietário é aquele terrível Calvin Candie, o mesmo que não se importa em ver seu nobre salão banhado do sangue negro.

Tarantino é um exigente e competente preparador de atores. Aliás, um perspicaz selecionador de elenco. Sabe aonde quer chegar e entrega seu roteiro a uma equipe de atores que não o deixará no meio do caminho. Não à toa, alguns dos atores tem-no acompanhado em vários de seus filmes. Dentre eles, aqueles que certamente nos arrebatam. Brad Pitt. Leonardo di Caprio. Samuel L. Jackson. E a recente e grata descoberta, Christoph Waltz. Em Django Livre, não podemos imaginar outro ator no papel do Dr. Shultz senão Waltz. Poupando os adjetivos, resta mencionar que ele ganhou o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante nos dois filmes de Tarantino em que atuou, Bastardos Inglórios e Django Livre. Neste, Waltz faz uma dupla afinadíssima com Jamie Foxx que, trabalhando pela primeira vez com Tarantino, sentiu na pele, como ele mesmo viria a declarar, a mão pesada do exigente diretor.

Merece um parágrafo especial, no papel de Stephen, o já consagrado Samuel L. Jackson. Chega a ser incompreensível como Jackson tenha conseguido compor esta personagem. Como administrador da fazenda Candyland na ausência de seu famigerado, primitivo e despreparado patrão Calvin Candie, Samuel L. Jackson se ajustou à perfeição à composição da personagem de Leonardo de Capprio, levando, de forma convincente, à submissão de um branco a um negro. Para conseguir esta façanha, Samuel L. Jackson compôs uma personagem perspicaz. Esta perspicácia reverteu-se em confiança. E a confiança, em domínio. E este domínio é exercido de forma cruel por Stephen, o negro, que subjuga seus pares negros, a ponto de ele, Stephen, o negro, se confundir com Calvin Candie, o branco. Se formos além, veremos que o próprio James Foxx, o escravo, elevando o arco da personagem na esfera do heroísmo, passa, com o consentimento de seu amigo, Dr. Shultz, a ter ascendência sobre este. Nestes casos, Tarantino inverte a lógica frenológica apresentada por Calvin Candie, e dá ao negro a superioridade cognitiva que ele merece e lhe é própria.

As relações de forças apresentadas acima vão desenhar os clímaxes finais.  No primeiro, são os dois brancos que se batem, Candie e Shultz; no segundo e derradeiro clímax, será a vez dos dois negros, Django e
Stephen. E por serem os negros a se baterem no último clímax, fica implícito que o poder está com eles. Eis uma premonição do que viria a ocorrer dois anos depois, com a deflagração da Guerra Civil.

E para encerrar, vamos à última questão. A sexualidade na filmografia de Tarantino. Esta é a questão. Como fica o sexo nos filmes de Tarantino. Vale tentar aqui nos lembrarmos de alguma cena de cama, ao estilo de Butch Cassidy and The Sundance Kid, onde o sexo é, junto com o dinheiro, o símbolo imediato de poder. Não se trata da cama, apenas. E, sim, da expressão corporal, uma vez que o sexo está em nós e, a princípio, não temos razão de escondê-lo. Afinal, os corpos se conversam pela sexualidade. Quem conhece a fundo a filmografia de Tarantino talvez possa nos apontar  alguma cena neste sentido. Não valem as sutis insinuações eróticas que, inclusive, perpassam por Django Livre. No entanto, nada se concretiza. Será que para Tarantino, numa especulação freudiana, basta o revólver? De onde ele tira o entretenimento que ele tanto busca? Sabemos que não é bem assim. Os filmes de Tarantino vão além do sangue jorrando graficamente diante de nossos olhos. Em Django Livre, Tarantino passou perto da possibilidade de trazer a sexualidade como fonte de poder. Não o trazendo, ele constrói uma relação de afeto e de compromisso um tanto frágeis, comprometendo, inclusive, a consistência heroica da personagem Django. Ou será que a sede de vingança de Django não é pelos sofrimentos causados à sua Brunhilde e, sim, pela abusiva escravidão a que está submetido o seu povo? Por ser uma narrativa, entendemos que estes dois elementos dramáticos teriam que se interpenetrar, fortemente. Em Django Livre, pareceu que Tarantino nos prometeria os dois. Infelizmente, o sexo ficou subjugado às fortes tensões geradas pela narrativa de vingança. Bem ao gosto de Tarantino.

Sabemos que já é preciso apagar as luzes, mas, antes, um pouquinho de humor.

Tarantino viaja, feito um mochileiro sem destino, entre o trágico e o cômico. Quando ele precisa avançar sobre uma temática espinhosa, que lhe pede maior investigação histórica, ele desvia para o cômico. Em Django Livre, o símbolo desta comicidade está no dente enorme, preso a uma mola balouçante, no teto da carruagem do nosso não menos cômico Dr. Shultz. Como não olhar para aquele artefato e não rir? O dente nos acompanha até a uma das cenas mais hilárias do filme, quando, inclusive, Tarantino traz de volta seus diálogos tergiversantes, tão deliciosos quanto ácidos.  Preparando-se para atacar a carruagem do dentista Shultz, com seu enorme dente balouçante, o bando da Ku Klux Klan  enceta uma despropositada discussão sobre a qualidade dos sacos, aqueles famosos panos com que cobrem suas cabeças para cometerem seus crimes contra os negros. Há a reclamação por parte dos membros sobre a confecção dos sacos, cujos furos, dos olhos, malfeitos, não lhes permitem enxergarem adiante. Ficamos sabendo que foi a mulher de um dos membros da seita que fizera os sacos.  O marido, irritado com as críticas à  mulher, abandona o bando. E a discussão continua. Atacar com os sacos cobrindo as cabeças, ou abandoná-los, só desta vez? No que o chefe do bando responde. Vamos com os sacos. Não conseguimos enxergar, mas não tem problema. Os cavalos enxergarão por nós.

Sejam quais forem as sensações, positivas ou negativas, que este filme possa provocar no espectador, o certo é que Tarantino mais uma vez nos oferece uma obra rica em elementos fílmicos que, bem executados, formam mais este belo mosaico de imagens e sons. E, de quebra, ele nos apresenta, de forma bastante sensível, diga-se, aquilo que teimamos em ignorar. Nossas podridões, que jazem, ocultadas, debaixo do tapete. Da História.

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