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O filme que faz a vida ser bela

Por Antônio Roberto Gerin

A VIDA É BELA (117’), direção de Roberto Benigni, Itália (1999), é um filme que parece surgir do nada, formatado, logo em seu início, por cenas alucinantes, em que a personagem principal, de pronto, nos mostra a que veio. Ela é apaixonante, otimista, moral e emocionalmente inquebrantável. De fato, à medida que vamos percebendo qual é a real proposta da narrativa, somos cooptados por uma ideia simples, cuja premissa é o próprio título do filme. Que, aliás, é a grande sacada de Roberto Benigni, que também assina, junto com Vincenzo Cerami, o roteiro. A proposta, obsessiva até, é provar que a vida pode sim ser bela, independente das circunstâncias, estejamos nós em uma tranquila rua de Arezzo, ou em um campo de concentração. Só que quando o filme sai das ruas de uma cidade do interior da Itália e cai, literalmente, dentro de um campo de concentração, o desafio do filme em provar a premissa do título torna-se muito mais difícil. Tudo vai depender da credibilidade do protagonista, calcada na atuação magnífica, com raro fôlego, de Roberto Benigni, ganhador, com méritos, da estatueta de melhor ator. Sim, ele, o próprio, o polivalente Benigni, é o ator que representa o protagonista Guido, o pai que dá conta de convencer seu filho, Giosué, em meio aos horrores de um campo de concentração nazista, de que a vida continua bela! Esta convicção é fincada na esperança de que o que está ruim uma hora vai melhorar. E de que a alegria e o otimismo são os melhores guias para atravessarmos a escuridão. Óbvio que cabe ao espectador ficar convencido ou não. Após a cena final, poderá inclusive querer mudar o título para a negativa. Mas não poderá negar que, de uma forma poética e lúdica, o filme cumpre sua missão. A de nos mostrar que a tragédia do holocausto existiu. E que, por esta razão, a vida pode mesmo não ser tão bela. Mas o filme é.

Guido Orefice é um judeu que chega a Arezzo, na Toscana, à procura de trabalho. Ele nos é apresentado dentro de um carro descendo a colina, em disparada, sem freios. É assim que o filme começa, na irreverente velocidade do protagonista Guido, uma mistura de persistência imorredoura e otimismo inabalável, um ser movido pelo sentimento poético do amor à vida. Na mesma rapidez com que chega à cidade, logo encontra emprego em um hotel de luxo, onde seu tio, Eliseo (Giustino Durano), é o gerente. Em poucos minutos, o filme deixa claro o que ele quer nos dizer. Que a vida, para ser mesmo bela, precisa que assim a enxerguemos.

Numa situação hilária, por acidente, Guido fica conhecendo seu grande amor, Dora (Nicoletta Braschi), por quem imediatamente se apaixona. Numa sequência bem construída de peripécias, algumas burlescas, Guido rapta sua amada dos braços do noivo fascista, em plena festa de noivado, e os dois fogem para se casar. Mais um pouco e o filme, numa bela passagem de tempo, nos transporta para a Segunda Guerra Mundial, com o filho do casal, Giosué (Giorgio Cantarini), beirando já seus seis anos de idade. É nesta altura do filme, quando pai e filho são levados para o campo de concentração, que a vida, mais do que nunca, terá que ser bela.

O roteiro, construído linearmente em cima de situações cômicas – com cenas de pastelão à la Chaplin e diálogos espirituosos -, prepara a narrativa para esta segunda parte, agora pai e filho, separados da mãe e esposa, vivendo juntos as barbáries de um campo de concentração. Guido estabelece para o filho regras de proteção, simples, tais como, nunca chorar, nunca se dirigir a um oficial nazista, ficar sempre escondido, e cada vez que Giosué cumpria as ordens, ganhava um ponto. Este era o jogo. O jogo dos mil pontos. Ao chegar ao milésimo, Giosué, como prêmio, ganharia um tanque de guerra de verdade. E assim foi, por longos meses, ponto a ponto, até a guerra terminar. E o trágico se concretizar.

Dentro deste contexto de hilaridade como forma de contornar o trágico, vamos retratar uma das tantas cenas ácidas, coloridas pela inteligência, que o filme nos oferece. Escolhemos uma em que Guido, ainda em Arezzo, pergunta a seu interlocutor, um comerciante, após este tê-lo alertado de que as coisas andam “feias” na Itália fascista. Animado com a crítica do comerciante ao regime, Guido pergunta-lhe. “Como o senhor vê a política?”. Ao mesmo tempo em que faz a pergunta, a câmera nos mostra ao fundo da cena dois meninos fazendo algazarras. Em seguida à pergunta de Guido, o comerciante, irritado, repreende os filhos. Ele grita. “Benito!” “Adolfo!”.

A realidade do holocausto, em A Vida é Bela, não é pano de fundo. E nem poderia ser, afinal, o holocausto é uma das grandes feridas da humanidade. O que chama a atenção é que o filme se utiliza do hilário como veículo para mostrar o trágico, sem que este se misture àquele. Ambos interagem com a narrativa, mas caminham em paralelo. O espectador poderá alegar que estes dois mundos, o do pai e filho, de um lado, e o dos horrores vividos no campo de concentração, do outro, deveriam se tocar com mais força, com mais contundência, com mais amargura. Em outras palavras, que estas duas instâncias não se convivessem dentro de um mesmo recipiente como o óleo e a água. No entanto, entendemos que, do ponto de vista da construção narrativa, esta mistura comprometeria a proposta artística do filme. Há uma estranheza necessária para que o filme encontre seu ponto de grito. E esta estranheza é conduzida magistralmente pela personagem Guido, que corre o tempo todo fora da curva da realidade. Ele, como recurso de sobrevivência, coloca seu filho num arco de fantasias e ali o deixa, protegido. Daí a estrutura do jogo. E este é o segredo, e o grande mérito, do filme. A fantasia impulsiona a vida dentro do trágico. Não à toa, em cena magistralmente icônica, ainda em Arezzo, onde fantasia e realidade já se interagiam, quando o garçom Guido, dominado pela paixão da amada, e querendo ir atrás dela naquele amplo restaurante, é alertado, ironicamente, pelo maître, de que a cozinha fica do outro lado. E o garçom Guido simplesmente diz. “Hoje está tudo errado, veja onde colocaram a cozinha!”. Soberbo.

Antes de nos encaminharmos para o final, vale lembrar que A Vida é Bela, também ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro, concorria, à época, em 1999, com outro filme icônico, este brasileiro, Central do Brasil, com a estupenda Fernanda Montenegro, que a levaria a ser indicada à estatueta de melhor atriz. É de se lamentar? Sim e não. Sem comparar arte com arte, podemos dizer que os dois filmes poderiam estar ocupando o mesmo lugar de honra. No entanto, obedecendo à lei da física, dois corpos, mesmo que belos, não podem ocupar, ao mesmo tempo, o mesmo espaço. Um deles terá que se retirar. Neste caso, teve que ser Central do Brasil.

E terminamos esta resenha com a cereja do bolo. Tudo o que se editou do filme, dos diálogos às situações, foi para mostrar como o amor de um pai é capaz de construir uma realidade paralela para proteger o filho das misérias humanas (leia-se campo de concentração), e o faz com tanto charme, tanta poesia e tanta convicção, que nós também passamos a acreditar que é possível viver em um outro mundo, onde o encanto ocupará o lugar do horror. O pai, o espectador há de concordar, foi um jogador perfeito. Só errou o último lance.

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O diálogo como estratégia narrativa

Por Antônio Roberto Gerin

Para uma obra de arte sobreviver como tal, pressupõe-se que ela tenha vida própria. Parece óbvia esta afirmação, mas ela é tudo. Ter vida própria é o que diferencia alguém de alguém, algo de algo. Para a arte podemos dizer que há o estilo. Aquilo que é inerente, que é intrínseco. É próprio. Nesta perspectiva, PULP FICTION (134’), direção de Quentin Tarantino, EUA (1994), é o filme que consolida o estilo do diretor e o coloca no panteão da originalidade. Ele já havia sido aclamado por seu primeiro filme,  Cães de Aluguel, onde já estabelecia sua estética e mostrava alguns elementos básicos da sua filmografia. Com Pulp Fiction, ele apenas consolida o que já estava para ser consolidado. Sim. Para Quentin Tarantino não bastou ter estilo. Ele quis ser o estilo, aquele que, além de inconfundível, é inigualável. A ser imitado.

Apesar da não linearidade, o roteiro é simples, e é nesta simplicidade que está a funcionalidade do filme. Basta dizer o seguinte. Os caras, dois, vão a uma pizzaria, e bem na hora que acabam de sentar e um deles ir ao banheiro, um casal, homem e mulher, nervosos, sobem nas cadeiras e dão voz de assalto. Esta ação de desespero pode ser o início e o final do filme. O roteiro se fecha, como uma ostra, nesta lógica. Começo e fim se juntando para formar uma simples e rápida sinopse. Mas… Também não é assim tão simples! Nem tão rápida, já que entre a voz de assalto e o desfecho transcorrerão quase duas horas de filme. Este é Tarantino. Faz da aparente simplicidade um engenhoso jogo de forças que dará fôlego dramático a uma sequência de acontecimentos que parecem caminhar a esmo, mas que, do contrário, giram numa espiral narrativa bem precisa. Afinal, são quatro histórias que se entrelaçam, se contorcem, e vão desembocar, aparentemente, no nada. Mas o suficiente para o espectador perceber que ele está diante de um filme monumental.

Não à toa, os filmes de Tarantino são um repositório de inteligências. Tudo é muito bem pensado e marcado. Nada é gratuito. Qualquer coisa, um pequeno capricho, um olhar, uma insinuação, tudo pode integrar, organicamente, o corpo da trama. Desde que sugiram, evidente, golpes de criatividade. É a ideia útil a serviço do resultado. Nesta lógica, podemos mencionar elementos aparentemente sem qualquer compromisso com a narrativa, mas que adquirem uma força momentânea, cuja utilidade cênica vai além do mero capricho. O sanduíche, numa das cenas icônicas do filme, é um exemplo desta proposital fortuidade, o que prova a habilidade de Tarantino na manipulação dos adereços para mover a estrutura narrativa do filme. Adereço, sabemos, é tudo aquilo que podemos manipular com as mãos. Ou com os pés, no caso, por exemplo, de uma bola de futebol. Esta é a essência da espetacularização. A habilidade em dar explosão máxima ao desimportante, no caso, o sanduíche, no desfecho perfeito da grande cena.

Mas não basta o sanduíche. Adereço bom é adereço que faz jorrar sangue. É o que o espectador espera. Porque, em Tarantino, jorrar sangue é tão natural quanto espocar uma garrafa de champanhe. E a banalidade é criada pela destreza fulminante com que o adereço (um revólver, porrete ou escopeta) é preparado para entrar em ação. E é justamente nesta preparação que reside a proposta estética de Quentin. É a precisão rítmica no uso do adereço que dará à cena a grandiosidade do absurdo.

Só que todo golpe de ação (pequenos clímaces), para ser perfeito, que gere no espectador o impacto necessário que o faça aderir incondicionalmente à narrativa, tem que ser muito bem preparado. A narrativa ainda é aristotélica. Para ter o fim tem que ter o começo, não importa a ordem. Quer dizer, para ter a próxima ação tem que ter uma anterior que a prepare. E a narrativa, para ser vibrante, tem, sim, que se submeter ao eterno embate entre pensamento e emoção, instâncias que se digladiam, o tempo todo, pela prevalência. Ora! Numa perspectiva hollywoodiana, quanto mais predominar a emoção maior o ganho! E aqui vamos entrar numa eficácia bem tarantiana, vista em outros de seus filmes, o anterior, Cães de Aluguel, e os que viriam na sequência a Pulp Fiction, Kill Bill,   Os Oito Odiados, e, principalmente, em Bastardos Inglórios. O uso ferramental do diálogo extensivo e delirante como gerador de tensão no preparo cuidadoso ao momento fatal. Falar de Tarantino é falar não só do visual, a imagem, que é cinema puro. É também falar, e muito, do oral, a fala, cuja funcionalidade é dar às imagens sua potência artística. E, neste caso, a morte simboliza o fluxo máximo da consolidação desta potência, leia-se, poder. Só que o poder é temporal. Para se perpetuar, ele vai precisar da próxima morte. E Tarantino sempre soube disto.

Vincent Vega (John Travolta) e seu comparsa de crimes, Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) vão a um apartamento buscar a mala de dinheiro que alguns bandidos menores tiveram a ousadia de roubar do chefão da máfia. É só chegar, metralhar, pegar a mala e ir embora. Não! Isso é clichê. Tarantino precisa se demorar. O tempo suficiente para que o espectador não resista à angústia da espera. Que vá ao limite. Como gerar esse explosivo compasso de espera? É nesta hora que entram os tão conhecidos diálogos anabolizantes.

Vamos refazer a cena. Vincent e Jules entram no apartamento. O chefinho está comendo um sanduíche. O sanduíche passa a ser o assunto central do diálogo entre o chefinho e Jules. Assim, o diálogo tergiversante vai gerando uma dinâmica, inútil, tudo bem, mas utilíssima do ponto de vista da preparação do desfecho da cena. É em torno do sanduíche que se vai retroalimentando esta tensão, avisando ao espectador de que algo inevitável está por acontecer. E o espectador tem a quase certeza do que vai se suceder. Só não sabe como. Portanto, a demora de tempo dos diálogos, que dura vários longos minutos, terá esta função. A de distrair o espectador. Conduzi-lo para um outro fluxo de emoção. Até que… no ponto exato em que o espectador se distrai, o desfecho acontece, abruptamente. E assim, o que podia ser uma cena banal, toma um aspecto artístico inconfundível.

Enfim. Cinema, sabemos, é imagem total, de preferência imagem em ação reflexiva ou alucinante. Por isso, há os que criticam os longos diálogos de Tarantino. Pô, ficar falando de sanduíche! Pois é. Não é só sexo que é energia. Tudo é. Sanduíche também. Sem o sanduíche, não há o suspense. Portanto, se tirar o diálogo do sanduíche de Tarantino, tira a alma ensangüentada da sua estética. E em Tarantino, o sangue é um sangue puramente estético. Não assusta. Mas encanta. Muito!

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Por Antônio Roberto Gerin

Oscar Wilde (1854-1900) marcou seu tempo não somente com sua literatura exuberante, mas também com suas críticas mordazes à sociedade vitoriana daquele final de século XIX, na Inglaterra. Sem contar, lógico, o fascínio que seu charme de intelectual incontrolável exercia pelos salões e teatros londrinos. Por onde passava, Oscar Wilde ia deixando um rastro de elegância extravagante e um senso de estética que se impunha como original e contestadora. Sua ode à beleza era sua arma artística. Uma de suas obras mais festejadas, A Importância de ser Constante, de 1894, com estreia em 14 de fevereiro de 1895, no Teatro St. James, acaba por representar o auge literário e social de Oscar Wilde. A partir daquela noite de estreia, de retumbante sucesso, inicia-se a sua triste e absurda queda. Era a mão pesada da moral vitoriana esmagando o homem Oscar, que, apesar da bravura com que lutou, não conseguiu vencer o ódio e o preconceito. Julgado por sodomia, vilipendiado na sua homossexualidade, após dois anos de prisão, foi viver e morrer em Paris, onde vestiria a máscara do pseudônimo como forma de sobreviver, no anonimato, com o pouco de dignidade que lhe restara.

Estamos, em A Importância de ser Constante, diante de uma obra peculiar, onde a inteligência viperina, aliada ora à ironia ora à farsa, determina o ponto de equilíbrio entre a lucidez de alguém que quer enxergar por trás das aparências e, ao mesmo tempo, revelar, sem meias medidas, a estatura anã de uma sociedade encharcada de hipocrisia e futilidades. Oscar Wilde não poupa ninguém. Muito menos suas personagens. Tritura-as no caldeirão das verdades escancaradas. Mas poupa-lhes uma coisa. O dissabor da derrota. Aliás, derrota, esta palavra amarga, era uma possibilidade que até então não passava pela cabeça do festejado dramaturgo irlandês.

Jack é o nome do protagonista. Vive no campo, cuidando da sua protegida Cecília, uma bela e fútil jovem que retrata o cotidiano que gira em torno de entediantes roldanas sociais. Mas Jack não se satisfaz com esta vidinha de fingimentos bucólicos. Ele quer mandar as convenções às favas, ele quer se contrapor ao sistema, ele quer vida própria. Para tanto, de tempos em tempos, vai à Londres, com o pretexto de tomar conta de seu irmão Constante, que muitas aflições lhe causa. O irmão é um doidivanas! Um inconsequente! Um desajustado! Ora, Constante, o irmão, é ele próprio, Jack, o irmão de si mesmo!

Esta é trama da peça. Ela gira em torno da confusão de nomes. O jogo de se esconder atrás de nomes fictícios é o álibi perfeito para alguém que pretende usufruir, que sejam por alguns momentos, do prazer de ser livre numa sociedade conduzida por regras sociais e etiquetas morais tão rígidas que mais poderíamos nos sentir estar vivendo em um tabuleiro. Em A Importância de Ser Constante, a duplicidade de nomes determina dois modos de vida. Um, o real. Outro, o desejável.

Numa de suas idas a Londres, com o pretexto de visitar o irmão, Jack, apresentando-se, óbvio, como Constante, conhece e se apaixona por Gwendolen Fairfax. Gwendolen adorou o nome. Constante! E logo declara. Só se casaria com alguém que se chamasse Constante. O apaixonado Jack ainda faz a Gwendolen a seguinte pergunta. E se ele se chamasse Jack, em vez de Constante? A resposta de Gwendolen não é nada animadora. Ela não se casaria jamais com alguém que se chamasse Jack!

Ainda bem que o desfecho que Oscar Wilde dá à sua peça pretende oferecer uma supremacia da essência sobre aparência. Nesse contexto, podemos afirmar, com segurança, que o nome de batismo faz parte de nós desde o nascimento, portanto, é nossa essência. É neste jogo paradoxal que Oscar Wilde constrói sua estrutura narrativa quando, no final, a verdade se estabelece. Que é quando Jack descobre que seu nome de batismo não era Jack, e sim, pasmem, Constante! Portanto, no trato cotidiano da sociedade inglesa, o que era para ser essência, Jack, vira aparência. E o que era para ser aparência, Constante, vira essência.

E aqui entra o humor viperino de Oscar Wilde. Jack, ao descobrir que seu nome de batismo não é Jack e sim Constante, dá a Gwendolen, a amada, a oportunidade de festejar, posto que ela finalmente iria se casar com alguém que se chamava Constante. Que é quando ela diz a Constante, “Sabia desde o início que você não poderia ter outro nome!”. No que Jack, agora Constante, retruca “Gwendolen, é triste para um homem descobrir de repente que durante toda a sua vida só falou a verdade. Pode me perdoar?”. E Gwondolen, “Posso, pois sei que você vai mudar.”. Este é o diapasão sarcástico do texto!

Poucos autores encontraram na força de suas palavras e na grandeza de sua arte o pretexto para sua derrocada pessoal. Podemos lembrar Federico Garcia Lorca e seus embates com a burguesia de Granada, na Espanha. Se atos como estes, o linchamento de Oscar Wilde e o fuzilamento de Lorca, são símbolos de covardia social, se significam o desmascaramento do preconceito como régua de nivelamento da mediocridade na esfera do óbvio, por outro lado, atitudes pessoais de artistas como Wilde e Lorca nos permitem pensar que a arte é a principal expressão da vontade espiritual humana, posto que, enquanto as religiões nos remetem a um Deus a que não controlamos, a arte nos remete ao artista como motor da evolução humana. Podemos até controlar o artista, mas sabemos que, mais cedo ou mais tarde, iremos nos render a ele, pois a rendição à arte como condição de sobrevivência humana é inevitável. O artista traz o pensamento filosófico simplificado em prazer. E este prazer pode ser um bem comum, pelo qual temos que lutar, impedindo que venham, na calada da noite, no-lo surrupiar. Por isso ser imprescindível protegermos o artista como forma de nos proteger. Foi o que não aconteceu com Oscar Wilde e Federico Garcia Lorca. Mataram o artista, sim, mas jamais a sua arte. Que está aí, vivíssima.

Cabe aqui também uma rápida abordagem da obra de Eugène Ionesco, A Cantora Careca (1949), que significativamente reverbera ecos linguísticos e estruturais de A Importância de ser Constante. É certo que Ionesco tinha conhecimento da obra de Oscar Wilde. Os ritos linguísticos, emprenhados de um humor que supura o óbvio, é levado, por Ionesco, às últimas consequências. Obras ímpares, únicas, mas que detêm semelhanças construtivas. E podemos ir além. Evidenciar a perspicácia artística de Ionesco. Ele sabia que, mesmo sendo ele um romeno vivendo em Paris, jamais poderia ambientar A Cantora Careca em outro lugar que não fosse Londres. Todo o vigor cultural e humorístico do texto se perderia. Como já havia determinado cinquenta anos antes Oscar Wilde, só Londres e mais nenhum outro lugar teria a capacidade de oferecer a estes dois autores as obras primas que eles gestaram. No caso de Oscar Wilde, o precursor, restava-lhe, como um arrematado dândi, tentar salvar-se numa Londres que o festejava enquanto o destruía.

Oscar Wilde distribui as pérolas venenosas na boca de cada personagem, formando um mosaico fantástico de inteligências que revelam o submundo do pensamento vitoriano. Não há meias palavras. O caminho mais seguro da ironia é a sinceridade, que é quando, com a pretensa intenção de destruir a mentira, você a entroniza, confundindo, em um primeiro momento, o leitor, para logo em seguida mostrar que obras primas como A Importância de Ser Constante expõe seu valor histórico, para lá do literário, como forma, não de moldar o pensamento de uma sociedade, mas para mostrar a ela como ela tem que se enxergar.

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