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Carpe diem! Aproveite a vida!

 Por Antônio Roberto Gerin

SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS (140’), direção de Peter Weiss, EUA (1989), é um daqueles filmes que nos faz acreditar que a vida vale a pena, sim, ser vivida. E esta crença se deve, primeiro, ao próprio filme, que esbanja qualidades. Roteiro excelente, preciso nos diálogos, consistente na estrutura, por isso, tão premiado. Atuação memorável do nosso saudoso Robin Williams. Trilha sonora pontual, criativa, onde coube, inclusive, numa perfeita sintonia com a cena, a Nona Sinfonia de Beethoven. O ritmo e a fotografia, auxiliados pela trilha sonora, criam atmosferas que vão do encanto ao desencanto, da euforia à tensão, numa voltagem calibrada por mãos que sabem como encaminhar a narrativa para seu desfecho. E a poesia, ponto alto, exala de todos os poros! E tudo está a serviço de uma ideia. Mostrar que sem ousadias, sem o diferente, a vida não tem a mesma graça. Sociedade dos Poetas Mortos é daqueles filmes para se ver e guardar lá no cantinho da memória, intacto. E a segunda razão, talvez a mais importante, que leva o filme a nos fazer acreditar na vida. O seu final. Exatamente a última cena. Há filmes em que o final é a síntese perfeita daquilo que se disse, em entrelinhas, durante duas ou mais horas de projeção. Citaríamos muitos, mas ficaremos em apenas um exemplo, além, evidente, de Sociedade dos Poetas Mortos. O Segredo de Brokeback Mountain. O final de Brokeback é de uma ganância existencial sem precedente. Um soco na alma! Na linhagem de Sociedade dos Poetas Mortos. Enfim, ao cerrar as cortinas, o filme de Peter Weiss consegue nos dizer uma coisa. Se aceitarmos a vida como ela nos foi dada, sem questionar, sem encontrar a nossa própria voz, de nada valerá tê-la vivido.

Por estar ambientado em um colégio de meninos, Sociedade dos Poetas Mortos pode nos dar a impressão de ser mais um daqueles filmes colegiais, com dramas existenciais de adolescentes assustados com a aproximação da vida adulta. Negativo. O filme vai muito além das quatro paredes da escola. Ao mostrar jovens em busca de novas sensações e sentidos, ansiosos por conquistar a primeira garota, o primeiro sexo, a primeira universidade, ao mostrar a angústia de cada um deles em atender às expectativas dos pais, o filme nos remete àquilo que temos de mais essencial, que é, não a possibilidade, mas o direito de exercermos nossa liberdade. Mas os pais, símbolo maior da tradição tão defendida pelo colégio Welton, não querem abrir mão do direito de serem eles a ditar o futuro de seus filhos. Aqui, neste ponto, fabula-se o conflito entre sujeito e coletividade. Entre ousadia e renúncia. Embate e submissão.

Portanto, quando colocamos em discussão a secular Academia Welton, uma fictícia escola norte-americana, com sua rígida tradição, e os pais dos alunos como representantes divinos da ordem e dos bons costumes, estamos tirando o filme de dentro do colégio e elevando-o para outra dimensão, lá onde a vida é o único bem que possuímos. É isto que o filme, através do professor de literatura poética, o libertário John Keating,  insiste o tempo todo em nos dizer. Keating, representado pelo saboroso Robin Williams, é daqueles que chutam a bunda da tradição. Por convicção. Por acreditar na vida não como passagem, mas como oportunidade única e intransferível. A vida, porque finita, tem sua urgência! Aqui se vive, aqui se morre! John Keating se apresenta a nós como a cereja do delicioso bolo da vida. Aí vem a tradição, espreme a cereja, e joga o bolo na lata de lixo.

O professor de literatura, especializado em poesia, ex-aluno ele próprio do tradicionalíssimo colégio, a Academia Welton, John Keating é convidado para retornar à instituição, agora para fazer parte do corpo docente. Keating se mostra, desde a primeira aula, ser um professor nada convencional. Esta atitude irreverente diante dos métodos de ensino tradicionais vai provocar uma guinada na rotina do colégio, favorecendo em muito a evolução do roteiro e, por tabela, do filme. Ao girar em torno de Keating e de suas ideias, o filme se encaminha de forma inevitável, e honesta, para o confronto final, entre se submeter ou transgredir.

Já na primeira aula, Keating vai direto ao ponto, mostrando-nos qual será a base filosófica do filme. Ele traz o conceito latino de carpe diem. E o faz de uma forma inusitada. Coloca os alunos diante das fotografias de antigas turmas do colégio, evidente, todos mortos, pede que os observem com atenção, até perceberem que são todos iguais a eles, mesmo que cem anos os separem. Nada mudou, a morte ronda a todos. E Keating diz. Se vocês, como estes aí, vão se transformar em fertilizante, então qual é o problema para viver a vida? A finitude é o salvo-conduto para exercermos o direito de lutar pelo que somos e queremos. Aproveitem o dia! Deem um sentido pessoal à vida!

Vale mencionar um detalhe interessante, nesta cruzada de Keating de querer libertar seus alunos do convencional. Podem me chamar de professor Keating, diz ele. Mas, se quiserem ousar, chamem-me de “Oh, Capitão! Meu capitão!”. Tirado de um dos famosos poemas de Walt Whiltman, com esta quebra de protocolo, Keating abre uma pequena porta para o livre pensamento.

E os resultados vieram. Foi a partir da poesia, portanto, da arte, que Keating levou seus alunos a aprenderem a tomar uma postura crítica em relação à realidade na qual estão inseridos, em que o sujeito passa a ter uma importância prevalente sobre o coletivo, sem, óbvio, precisar destruir este. Assim, os jovens vão descobrindo suas próprias individualidades, seu próprio sentir, o que dá o charme existencial ao filme. E abre caminho para a eclosão da tragédia. Infelizmente, o peso da tradição é esmagador. O equilíbrio tem que ser restabelecido. A morte pode, sim, ser um ato de insubmissão, desde que olhada pelo seu lado justo, e esta é a dor do filme. Deslocam o pólo de responsabilidades, evidente, na busca do bode expiatório, leia-se, aquele que vem perturbar, que vem abrir caminhos nunca antes explorados. Dar sentidos. E este é o ponto de fecho do filme. Que é quando vai desembocar na última cena, que é quando se pretende resgatar a justiça, mesmo que seja por um instante, feito uma débil luz acesa como sinal de que a vida continua a valer a pena ser vivida. E, ao resgatar, na cena final, as ideias de John Keating, o filme dá um passo adiante. Oferece-nos a ideia exata de que não podemos ficar parados no tempo. O carpe diem tem que continuar.

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Por Antônio Roberto Gerin

George Bernard Shaw (1846-1950) é um dramaturgo irlandês que se transformou num feroz guardião da língua inglesa, sendo considerado o fundador do teatro moderno inglês. Eram tempos, final do século XIX, de mudanças importantes na forma de escrever e fazer teatro. Era uma escrita que flertava acintosamente com a realidade, recebendo total apoio das novas técnicas de encenação que foram surgindo à época. É perceptível a influência do realista Henrik Ibsen sobre Shaw. Afinal, Ibsen, dramaturgo norueguês, era tido como um dos grandes inovadores senão o maior nome da dramaturgia mundial na passagem do século XIX para o século XX. Esta influência viria fazer de Shaw um defensor do teatro didático. É necessário apresentar à sociedade uma ideia de mudança, sem o que o próprio teatro deixa de cumprir com sua função artística. Nascido de família pobre, pai alcoólatra e mãe de personalidade forte, artista ela própria, motivo que a levou a incentivar o filho a investir seu talento na arte da escrita, Bernard Shaw, aos vinte anos, mudou-se de Dublin para Londres, em busca de sucesso literário. Após inúmeras recusas de seus escritos, romances e crônicas, consegue, em 1885, aos vinte e nove anos, se inserir no mercado editorial. Desde então, as penúrias financeiras ficariam para trás, e Shaw iria exercer cada vez mais sua influência intelectual nos meios culturais londrinos. Detentor de uma soberba criatividade e absoluto domínio da língua inglesa, bastante afiada, além de socialista convicto, Shaw tem na hipocrisia das estratificadas classes sociais da era vitoriana seu alvo de ataque preferido. É neste contexto, de muita escrita e engajamento social, que, em 1913, Bernard Shaw lança um de seus mais importantes trabalhos, Pigmalião.

A famosa peça teatral Pigmalião não parte de uma ideia original. No entanto, isto não impediu que Shaw construísse uma obra original. O mote principal do texto vem de Metamorfoses, do poeta romano Ovídio, que se vale do mito de Pigmalião, rei de Chipre, obcecado escultor que, desiludido com as mulheres do seu reino, resolve esculpir para si a mulher perfeita. E a esculpe tão perfeita e tão bela que acaba se apaixonando pela sua estátua. Afrodite, a deusa da beleza e do amor, apiedando-se de Pigmalião, transforma a escultura em mulher, de carne e osso. Portanto, o que nasceu de uma idealização, torna-se realidade. Pigmalião de Ovídio casa-se com sua Galateia e com ela tem filhos.

Shaw, brilhantemente, cria seu próprio Pigmalião, o intragável, arrogante, preconceituoso, impetuoso e cômico professor Higgins. Henry Higgins se dedica ao estudo da língua inglesa, especializando-se em fonética, o que fez dele um profundo conhecedor dos dialetos universais. Esta extrema habilidade o leva, admiravelmente, através das falas de seus interlocutores ocasionais, a determinar, sem que o digam, o local de nascimento e origem de cada um deles.

O texto começa com o professor Higgins conhecendo, casualmente, à saída do teatro, uma florista, cuja horrível e tenebrosa dicção lhe chama a atenção. É com outro famoso foneticista, coronel Hugh Pickering, que ele próprio acabara de conhecer, também à saída do teatro, que Higgins faz uma aposta. Em seis meses, ele transformaria aquela pobre e inculta florista das ruas escuras de Londres em uma admirada dama da alta sociedade. Eliza Doolittle, este é o nome da florista, circularia pelos salões londrinos se passando por uma duquesa, sem que ninguém jamais desconfiasse das verdadeiras origens da moça. Aposta aceita pelo coronel Pickering, mãos à obra. O professor Higgins, mangas arregaçadas e com um humor infernal, começa a esculpir sua bela dama.

Há muitas discussões sobre como Bernard Shaw acabou por construir o enredo da peça. Evidente, ele não estava preocupado em formatar mais uma comédia romântica, mesmo que, ao longo do tempo, Broadway e Hollywood, através do belo musical My Fair Lady, tenham se esforçado para transformar o texto original em um conto de fadas. Para Shaw, interessava discutir a terrível estratificação sociocultural através da linguagem e dos comportamentos sociais dela decorrentes. É pela forma como as pessoas falam que passamos a catalogá-las socialmente. E mesmo que pessoas com educação precária e condição social inferior venham a melhorar de vida (o pai de Eliza), elas necessariamente vão se trair pela linguagem, o que as prenderão eternamente à sua origem pobre. O contrário também se faz verdadeiro. Mesmo que o rico se descuide da linguagem, isto não abalará sua posição social. Ele, afinal, nasceu rico, e este é um privilégio indissolúvel. O que Shaw tenta mostrar é que se pode esculpir o ser humano desde que ele próprio se idealize numa perspectiva superior e persiga esta idealização. Pois é. O ser humano pode, sim, idealizar seu destino. Esta é a ideia didática de Shaw. A ascensão social através da transformação pela linguagem. É a crença no poder transformador do ser humano, desde que ele obsessivamente se proponha a tal. É com esta obsessão que o professor Higgins ganha a aposta feita com o coronel Pickering. Ele de fato transforma a ignorante e estúpida florista Eliza Doolittle numa encantadora lady.

Só que há um detalhe, acima, que passa despercebido. A obsessão não é do professor, é da aluna. A despeito da aposta feita à porta do teatro, entre o professor Higgins e o coronel Pickering, foi Eliza quem, dias depois, vai procurar o professor Higgins com o objetivo (idealizado) de apurar a linguagem e poder assim sair das ruas e se empregar numa loja de flores. Este dado é importante por fazer notar a proposta social de Shaw, a de que o próprio ser humano é o idealizador do seu destino e que, portanto, não há, em princípio, portas fechadas para os sonhos.

Por que Bernard Shaw não se preocupou em unir o casal ao final da peça, quando Higgins tinha a seus pés a sua própria Galateia?

Diferente do mito de Pigmalião, Shaw constrói em Higgins um ser totalmente avesso ao amor. É um homem intelectualmente arrogante, impaciente com as fraquezas humanas, mesquinho com as misérias alheias, insensível a dores, atitudes estas que revelam nele uma infantil irresponsabilidade social. E mais. Higgins disfarça sua incapacidade de amar pela idealização que faz da mãe, a única mulher naturalmente dotada dos mais elevados atributos femininos. Ao prender Higgins à mãe, idealizando-a, transformando Higgins num empedernido solteirão como forma de disfarçar seu complexo de Édipo, Shaw afasta a possibilidade de um desejado final romântico.

E o contraponto do amor, em Eliza, também é verdadeiro. Ela, chocada, desde o início, com a personalidade agressiva e estúpida de Higgins, de um lado, e sendo, por outro lado, perseguida com cartas de amor pelo jovem e encantador (e pobre) Freddy, Eliza não está disposta, feito uma Mirandolina, a conquistar o homem Higgins. Finda a aposta, ela se pergunta o que fazer da vida, já que é impossível, nas atuais circunstâncias, voltar para as ruas e recomeçar a vender flores. Caberia a ela entrar no mercado de casamentos? É o que propõe Higgins. Qualquer um quer transformá-la numa rainha, diz ele, mordendo-se de ciúmes. No fundo, o que o professor Higgins quer é que ela continue morando com ele, cuidando da sua vida pessoal, como se uma secretária fosse, e, ao mesmo tempo, usufruindo das benesses sociais que um homem rico pode proporcionar a uma mulher, mesmo que com ela não queira absolutamente nada. Mas Eliza se recusa a voltar para a casa de Higgins, decidida que está a lutar por sua independência. A mulher já não tem no casamento a única forma de ascensão social, estes eram os ventos que sopravam na Londres das sufragistas. Afinal, Shaw tinha em Nora, a personagem feminina de Ibsen, a desculpa para fazer de Eliza uma mulher também independente. E Shaw o faz, com muito gosto e prazer. Para a infelicidade de Higgins.

Pigmalião pode não passar de uma comédia satírica, simples, rápida, mas é tão bem arquitetada, tão bem escrita, vai ao ponto em questões de relacionamentos e de sonhos, esta ilusão transformadora que carregamos dentro de nós, nos mostrando que quando idealizamos algo bom para nós já estaremos pelo menos afastando a ideia de impossibilidade, por estas e muitas razões, não à toa, o texto de Shaw acaba se transformando num grande clássico da literatura mundial. E que fique bem claro. A idealização de transformação é nossa, está em nós, não no outro. Diferente do que pensa o famigerado Higgins, não se esculpem seres humanos.

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A idealização do amor

 Por Antônio Roberto Gerin

Os filmes musicais tiveram seus dias de glória em outros tempos, já um tanto distantes, mas a eles está reservada uma prateleira especial na história do cinema. Para quem interessa conhecer estes clássicos, sempre haverá um catálogo dos melhores, disponível em algum arquivo, nas redes sociais. Vamos nos ater aqui ao nosso objeto de resenha, falando de um desses grandes musicais que atravessou gerações e ainda hoje merece ser visto e aplaudido. Há, sim, muitas razões para se assistir a MY FAIR LADY (175’), direção de George Cukor, EUA (1964). A fotografia é uma delas. Equilibrando-se entre tons fortes e suaves, ela realça os contrastes de cores que, sem pudor, se derramam na tela, diante de nossos olhos. Um espetáculo à parte. As atuações de Rex Harrison e de Audrey Hepburn são inesquecíveis. O roteiro é elegante e firme, e sua força é capaz de sustentar o ritmo às vezes um pouco lento de algumas cenas. E as músicas, o ponto alto. Elas se encaixam à perfeição nas narrativas. São melodias deliciosas, que levam a gente a querer assoviá-las. Woudn’t it Be Loverly e With a Litlle Bit O’Luck são exemplos. Enfim, uma comédia (romântica) que nos arrebata. Até o fim. E nos mantém presos, à espera de saber se o par romântico vai mesmo nos oferecer o grande beijo. Por estas e outras tantas razões é que My Fair Lady merece ser retirado, por três horas, da prateleira. E se diante de todos estes argumentos, o espectador assim mesmo não gostar do filme, sem problemas. Ele ao menos terá entrado em contato com uma ideia clássica que permeia, ao longo dos séculos, a cultura ocidental. A ideia que se baseia no conceito de perfeição.

Para falar de My Fair Lady não há como não mencionar a obra prima literária em que o roteiro do filme se baseou. Trata-se do magnífico texto teatral Pigmalião, de George Bernard Shaw, dramaturgo irlandês, que viria a escrever esta obra em 1913, com imediato sucesso nos palcos londrinos. E que, diga-se de passagem, é inspirada na obra Metamorfoses, Livro X, do poeta romano Ovídio, lançada no ano 8 dC, em que narra a paixão do rei de Chipre, Pigmalião, pela estátua de uma mulher, Galateia, que ele mesmo havia esculpido, com tanta perfeição. E, sabe-se, Ovídio foi buscar na mitologia grega a fonte destas suas inspirações. E seguindo a linhagem, estas obras seriam o ponto de partida para a construção do roteiro de um dos mais completos filmes românticos produzidos por Hollywood, na década de 1990, Uma Linda Mulher. Como se pode constatar, a ideia de perfeição movimenta a literatura ocidental desde seus primórdios. Inclusive William Shakespeare, em sua A Megera Domada, bebe um pouco desta ideia.

A despeito das influências, sem dúvida, o filme My Fair Lady originou-se diretamente da obra de Bernard Shaw, Pigmalião. O mais perceptível é como o roteiro, observadas, evidente, as adaptações para uma outra linguagem, o cinema, que precisa ser mais narrativo que o teatro, seguiu à risca a obra original. Tanto isto pode ser verdade que o próprio ator, Rex Harrison, que representou a fenomenal personagem criada por Bernard Shaw, o professor de fonética Henry Higgins, veio da Broadway, onde ele já representava, no musical homônimo, de 1956, esta personagem. Fica claro por que Rex Harrison domina tão ferozmente a personalidade tonitruante do professor Higgins, e a prova deste domínio está nos prêmios que ele carregou para casa, incluindo aí a estatueta de Melhor Ator, no Oscar de 1965. Rex conhecia profundamente o professor Higgins de Shaw.

Henry Higgins, um dedicado guardião da língua inglesa, torna-se um dos mais renomados foneticistas ingleses, fazendo desta profissão sua razão de vida. Certa feita, à saída do teatro, em Convent Garden, Londres, Higgins depara-se com uma pobre florista, Eliza Doolittle, cuja horrível dicção causa tumultos inexplicáveis nos ouvidos do professor de fonética. Sejam quais forem as impressões que a moça causara em Higgins, ele, de imediato, faz uma aposta inusitada com outro foneticista, coronel Pickering, a quem Higgins havia acabado de conhecer, também à saída do teatro. Em seis meses, ele, Higgins, transformaria aquela inculta e horrorosa pobretona florista em uma dama da alta sociedade. E o mais importante. A perfeição com que ele criaria sua dama impediria que qualquer pessoa, mesmo o mais teimoso foneticista, percebesse a real origem da criatura. Aceita a aposta, Higgins, feito um trovão, faz o filme pegar ritmo, graça e força.

Após seis meses de muito trabalho, rompantes de mau humor, humilhações machistas, ansiedades, decepções, Henry Higgins e o coronel Pickering apresentam Eliza Doolittle à alta sociedade, fazendo-a passar por uma duquesa, em uma grande festa de recepção oferecida a uma rainha estrangeira, visitante. E assim, festejada como a dama perfeita, cortejada pelo príncipe, Eliza Doolittle, junto com seus criadores, retornam à casa, felizes com o sucesso da empreitada. Higgins ganha a aposta e cabe ao coronel Pickering pagar todas as despesas que tiveram com a florista. Mas… E agora? O que fazer com ela, a florista?

Esta é a questão que tanto o texto de Bernard Shaw quanto o filme de George Cukor trazem embutida na trama. Eliza Doolittle já não era mais a mesma pessoa. Havia passado por uma profunda transformação. Um brinquedo nas mãos de dois marmanjos solteirões e machistas, Eliza Doolittle transformara-se numa pessoa com extrema consciência de si mesma, a ponto de colocar em cheque a obra do professor. Eis o impasse, que parece não ter preocupado Bernard Shaw, posto que o recado que ele queria dar, o de que o esforço pessoal, idealizado, pode sim possibilitar a transposição de barreiras sociais, estava muito bem dado. Mas Hollywood, sempre com os dois olhos grudados na bilheteria, pensava diferente. Teria que oferecer a Eliza um destino. Algo concreto. Óbvio, um romance.

Pela estrutura das personagens criada por Bernard Shaw, tornara-se quase impossível, senão inverossímil, a união romântica entre Higgins e Eliza. Higgins, empedernido solteirão, agarrava-se na idealização feminina que fazia da mãe, como a mulher perfeita e inalcançável, o motivo para rechaçar qualquer possibilidade de envolvimento afetivo e sexual com outra mulher, inclusive com sua obra prima perfeita, a duquesa Eliza Doolittle. Há, neste aspecto, uma arrogante infantilidade em Higgins que acaba por afastar qualquer ideia em Eliza de querer se envolver com seu criador. Eliza tinha ideias muito claras sobre o que ela representava para um homem, e ela sabia que, mesmo sendo criatura do professor, jamais concordaria em se submeter a seus caprichos de menino mimado. Hollywood havia seguido à risca este roteiro, o que dificultou construir, a partir dele, um conto de fadas.

Hollywood preferiu ficar no meio do caminho. Satisfeita com o resultado do filme, cujo sucesso não viria a depender do grande beijo final, como aconteceria em Uma Linda Mulher, o filme deixa em aberto a possibilidade futura de uma relação de amor entre os dois. No entanto, ao dar esta solução, Hollywood quebra a espinha dorsal da personagem Eliza. Eliza havia optado por sua independência, o que significava não mais voltar para a casa de Higgins, de onde ela havia fugido, decidida a cuidar da própria vida. Mas, em My Fair Lady, Eliza não só concorda em voltar, como vai continuar se submetendo aos caprichos do criador, simbolizados pela obediência à ordem de lhe trazer, imediatamente, os chinelos. É desta forma que o filme termina. Dentro da estrutura criada por Shaw. Portanto, sem ter resolvido o impasse. Que continuará. Para sempre.

O filme, assim como o texto teatral de Shaw, traz uma perspectiva redentora para o ser humano. Quem não almeja por transformações? Cobertos de defeitos e fraquezas, sonhamos em sermos o herói de nós mesmos. Buscamos na perfeição o equilíbrio ideal para alimentar a ideia de felicidade e bem-estar. E a forma objetiva de nos movimentarmos em direção à busca da perfeição é idealizarmos situações positivas para nossas vidas. É a força da mente que irá moldar nossas atitudes na busca pelo objetivo idealizado. Óbvio que nada é fácil, mas a possibilidade de nos transformarmos, seja do ponto de vista existencial seja do ponto de vista socioeconômico, é que poderá dar às nossas vidas um sentido concreto. E esta é a grande razão de ser das comédias românticas. Não há coisa mais concreta que o amor. É isto que as comédias nos oferecem. A possibilidade da transformação através do amor. Mas, para que tal aconteça, o amor precisa, antes de tudo, ser idealizado. E ninguém sabe fazer isso melhor que o cinema.

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