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Liberdade, um conceito bastante pessoal

Por Antônio Roberto Gerin

CAPITÃO FANTÁSTICO (95’), direção de Matt Ross, EUA (2016), é uma alegoria à liberdade de escolher fazer o que se quer, ou apenas tão somente optar por um estilo de vida. Aliás, escolher é o começo e o fim de qualquer atitude humana. Desde que se esteja disposto a assumir as conseqüências. Se estiver, podemos dizer que está aí uma atitude libertária. E ser libertário não é ser do contra. É apenas não querer ser algumas coisas que todo mundo acha que tem que ser, ou a que está acostumado a ser. Este é o ponto central do consistente roteiro de Capitão Fantástico: recriar uma forma de viver, isso é, tentar dar à vida outros sentidos.

Pai e mãe se isolam numa floresta, juntamente com seus seis filhos, e ali passam a vida comendo só comida orgânica, lendo só livros de papel, vestindo roupas tidas como esdrúxulas, totalmente fora do que ditam as modas, passam boa parte do tempo se dedicando a aventuras, muitas delas perigosas, em que o preparo físico e as habilidades mentais são fundamentais e, portanto, devem ser ostensivamente treinadas. Tudo é determinado pelo pai, o capitão fantástico (Viggo Mortensen), que pode ser enquadrado em duas facetas. Uma, o durão convicto, no seu sentido libertário; a outra, o terno, no sentido de dividir com os filhos a vida que quer para si e que sonha para eles. Não há dúvidas, não há questionamentos. Vida que segue.

O filme, logo no seu começo, toma um rumo inesperado quando a mãe simplesmente desaparece. Muito doente, havia retornado à civilização para se cuidar. Tão ocupados estavam com as extenuantes atividades físico-filosóficas, que os filhos nem deram pela falta da mãe, isto é, por um tempinho, até que alguém dá o grito. Cadê ela? E recebem de volta a notícia de que a mãe havia morrido e que seria enterrada, contrariando seu desejo de ser cremada, e que suas cinzas fossem jogadas numa latrina e sumidas no esgoto após a descarga.

Isto é comédia ou drama?

Não é um roteiro que apresenta um conflito, prepara um anticlímax e nos surpreende com um desfecho. Nada disso. Após tomarem conhecimento da morte da mãe e do seu desejo de virar cinzas, e depois de muito insistir com o pai durão, este pai, agora terno, coloca os filhos no ônibus da família, uma casa ambulante, e vão para a cidade resgatar o corpo da mãe. A longa viagem até a civilização, com seus salamaleques, choques de cultura e esquisitices, e mais a revolta do avô materno ao ver seus netos “naquela situação”, a excelente atuação de todo o elenco, sem exceção, e ainda a mão sensível do diretor em colocar o espectador num mundo no qual se sentirá sempre um estranho, mas do qual não consegue tirar os olhos, tudo isso faz do filme um hino a uma liberdade que sempre desejamos para nós, mas que sempre nos parece alcançável apenas no outro, geralmente, um esquisitão.

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Jogando com a morte

Por Antônio Roberto Gerin

Seja qual for a área do conhecimento humano, e de sua atuação, incluindo-se aí as religiões e as artes, um tema nos aflige por toda vida: a morte. E às vezes nos confundimos em querer saber se exatamente o que nos aflige é o ato de morrer ou o que acontecerá depois da morte. E aí entra uma temática muito cara a Bergman: a existência de Deus. E essa existência é questionada quando nos deparamos com o silêncio Dele. Silêncio absoluto, que exige de nós uma atitude singular. A crença como fonte da existência divina. Sem a fé, Deus não existirá. A não ser que Ele venha até nós e quebre o seu silêncio. Este é exatamente o diapasão narrativo do premiado filme O SÉTIMO SELO (95’), roteiro e direção de Ingmar Bergman, Suécia (1956). Reagir dolorosamente ao finito é nossa condição humana. Esta é a angústia existencial que percorre todo o filme O Sétimo Selo. E ele nos sugere uma outra angústia, esta bem mais prática. Afinal, o que fazermos com nossas vidas enquanto a morte não chega?

Antonius Block (Max Von Sydow), retornando a seu castelo, no norte da Suécia, após dez anos de batalhas nas Cruzadas, recebe a visita da Morte (Bengt Ekerot), uma imagem tenebrosa, vestida de manto negro e face esbranquiçada. É a morte, sim, em pessoa, que vem buscá-lo. A reação de Antonius é rápida. Diz ele, “meu corpo está pronto, mas eu, não!”. E imediatamente desafia a Morte para um jogo de xadrez, visando, assim, a protelar o seu fim. Se vencer, a Morte não o levará. E é neste jogo com pedras marcadas com a Morte que o protagonista vai se aproximando de seu castelo, passando por aldeias dizimadas pela peste negra. Poucos se salvarão, e Antonius quer, evidente, ser um deles.

O filme pode ser entendido a partir de vários ângulos, do histórico ao psicológico, passando sempre, com toda sua crueza, pela mísera existência humana. Estamos falando de uma Idade Média, século XIV, onde o ser profano é totalmente subjugado ao sagrado. E, paradoxalmente, é do sagrado que o homem tira forças para aguentar a servidão econômica e social a que está impiedosamente submetido. É por este cenário de intolerâncias religiosas, de culpas e horrores, acrescido da peste que assola a Europa e dizimaria um terço da sua população entre 1347 e 1352, que Antonius Block vai transitando, silenciosamente, querendo entender o que está além de qualquer entendimento. Ele quer preparar sua alma através da compreensão de um Deus que ele não consegue ver. Se ele não consegue ver esse Deus, o que o espera depois da morte?

A contrapartida de Antonius é seu escudeiro, Jöns (Gunnar Björnstrand), descrente, zombador de si e dos outros, com um nível de consciência raro para a época, mas que vai também, aos poucos, sendo arrastado para a escuridão. E, como é de se esperar, antes de chegar a seu castelo, Antonius Block recebe da Morte o xeque-mate. É o fim. Para ele, para Jöns, para todos. Não, todos não.

No meio de tantas mazelas, autoflagelos e sofrimentos, brilha, incólume, a arte. E a arte vem representada pelas figuras de um casal de artistas de circo itinerante, Mia (Bibi Andersson) e Jof (Nils Poppe). Eles, e o bebê. Alguns atribuem ao casal com criança a função dramática de simbolizar a sagrada família. Pode ser. O filme permite chegar a este simbolismo. Aliás, o filme é cheio de simbolismos, a começar pelas caveiras cuidadosamente dispostas em algum cantinho do enquadramento de algumas cenas. Mas conhecendo Bergman, pode-se também atribuir ao casal a função de representar a arte confrontada com a religião, arte que pode ser a cura para os males que aprisionam a raça humana à condição de títere do divino. Preocupado em participar de um festival de teatro, alheio ao jogo mortal, o qual, no entanto, Jof pressente, o casal muda o caminho em direção ao sul e, com isto, se vê livre da obrigação de participar da dança da morte. A arte sempre sobreviverá, pois ela não é o homem, ela é apenas sua sublime representação.

Ainda insistindo na discussão da importância decisiva, para Bergman, da arte como alternativa redentora à infortunada existência humana, vamos ressaltar a cena da taberna, em que o ator Jof é acusado injustamente de raptar a mulher do ferreiro. O artista é submetido a humilhações terríveis, diante de uma taberna cheia de beberrões e comilões, e todos, sem exceção, aplaudem, às gargalhadas, o festival de maldades. Esta cena não representa só a Idade Média, ela é o passado, o presente, e será o futuro. Jof é apenas alguém que precisa receber o lixo moral que escancara as nossas vergonhas e, por coincidência, segundo a percepção bergmaniana, a lixeira é a arte, o ponto sensível que nos assombra. Afinal, como dissemos, é ela, a arte, que nos revela a nós mesmos.

E a última cena, a dança da morte, antológica, sem dúvida, uma pintura de Rembrandt, uma pintura exata do nosso destino. É nesta pintura que vemos eternizado o jogo invisível da nossa existência. Em algum momento, já estamos avisados, faremos parte deste último ritual.

Enfim, o filme O Sétimo Selo nos apresenta uma realidade que conhecemos de sobra. Ele não inventa nem especula. Por isso, como seres humanos que somos, viajantes desta terra, temos que nos submeter à nossa condição finita. Deus pode existir ou não. Mas uma coisa é certa. Enquanto estivermos vivos, a morte será nossa companheira inseparável.

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O amor ao longo dos trilhos

Por Antônio Roberto Gerin

A GENERAL (89’), direção conjunta de Buster Keaton e Clyde Bruckman, EUA (1926), é um filme que pouco sucesso fez quando lançado nos Estados Unidos e mundo afora, mas que aos poucos foi conquistando com justiça seu espaço nas listas dos melhores filmes americanos de todos os tempos. A ponto de Orson Welles declarar, em 1971, ser A General “talvez o melhor filme que já foi feito”. Exagero ou não, fica-nos claro, ao assistirmos ao filme, estarmos diante de uma narrativa tão simples quanto pungente sobre um pedaço sombrio da história americana, a Guerra da Secessão, ocorrida entre 1861 e 1865. Buster Keaton trata com humor ora sutil ora convulsivo a relação do maquinista Johnnie com sua locomotiva General. E, de quebra, ironiza a necessidade de Johnnie de ter que provar para sua amada que, diante de um cenário de heróis a serviço de uma causa, ele também tem que vestir uma farda de soldado como prova de valentia. A forma singela com que o filme termina faz com que, sem nenhum sentimentalismo, nos lancemos naquele espaço em que acreditamos que lutar por algo pode sim ser uma fonte de felicidade. No caso de Johnnie e Annabelle, o amor pode se confundir com a história. Como, de fato, se confunde. Mas que, diante dos horrores e da destruição, o que sobrevive é apenas ele, o amor. Um primor de comédia! Que consegue ser sensível em meio à brutalidade dos canhões. Tudo graças a Buster Keaton, o Johnnie, com sua crença inabalável na capacidade do homem de superar a próxima dificuldade. Porque, com certeza, depois da próxima, virá a próxima… Afinal, a comédia não pode parar.

General é uma locomotiva que participou da Guerra Civil americana e teve seu momento de glória em 1862. Já no ano seguinte, suas peripécias foram registradas em livro por William Pittenger, história real que serviu de base para o roteiro do filme. Daí explicar a consistência e extrema funcionalidade da trama, exalando as tensões provocadas pela guerra e, dentro dela, pela luta solitária do maquinista Johnnie Gray para recuperar sua locomotiva roubada. Aliás, o filme pega velocidade a partir do momento em que o amor entre Johnnie e Annabelle se mistura à guerra. Ao saber que seu pai fora ferido no front, Annabelle embarca na General e vai à procura do pai. Logo adiante, a locomotiva é roubada, e a namorada, raptada. É a partir deste momento que o filme definitivamente alça seu vôo tensamente cômico.

A motivação dramática da narrativa é muito simples, e até óbvia. Mas forte o suficiente, naqueles tempos de heroísmos explícitos, para colocar nos trilhos, em avanço seguro e consistente, a trama do filme. Annabelle Lee (Marion Mack) passa a evitar o namorado Johnnie quando fica sabendo que ele não quis se alistar para defender os sulistas contra os avanços dos exércitos do norte. Passou a vê-lo como um covarde. E ela foi muito clara. Diz. “Não falo com você enquanto você não estiver de uniforme”. No entanto, envolvida na confusão da guerra, Annabelle desconhecia o que de fato havia acontecido. O Exército recusara o alistamento de Johnnie por entender que o maquinista seria mais útil para os sulistas pilotando sua locomotiva. Nós, espectadores, sabemos desde o início o que de fato ocorreu, a razão de Johnnie não ter se alistado. Mas os interessados, Johnnie e Annabelle, de nada sabem. E assim o quiproquó está armado. Ou melhor, é quando o roteirista entrega a condução da narrativa nas mãos do destino. Eis o sabor peculiar do filme.

O mal entendido vai sendo desfeito na medida em que o herói solitário, primeiro, salva Annabelle do rapto, e depois, juntos, recuperam a locomotiva. Mas não sem antes passarem por apuros e momentos de cômica tensão, onde cenas de pastelão escapolem de todos os lados da tela. E a narrativa chega a seus momentos mais angustiantes justo quando nos vemos torcendo pelo mocinho, fazendo com que suas trapalhadas – o personagem nos lembra uma mistura de Forrest Gump com Mister Bean – acabam quase que nos irritando, a ponto de querermos gritar: como é que pode ser tão trapalhão! Não podemos esquecer que estamos falando de Buster Keaton, à época, junto com Charles Chaplin, simbolizavam o auge da comédia dos filmes mudos. Mas diferente de Chaplin, Buster evitava o sentimentalismo e a exploração de trejeitos faciais. Seu rosto parece esculpido em cera. Mas, não é menos eloquente.

Enfim, o filme mostra, com certa clareza, o momento pelo qual estava passando o cinema americano, já atingindo sua maturidade artística, mas ainda limitado pela técnica. É perceptível a vontade que o espectador sente de ouvir as falas dos personagens. Elas parecem querer escapulir do silêncio da tela. De fato, sabemos que dali a algum tempo seria lançado o primeiro filme sonoro, O Cantor de Jazz, com retumbante sucesso. Pena. A General chegou um pouquinho adiantado. Tivesse o ansioso Jonhnnie acelerado um pouco menos sua famosa locomotiva, teria A General estreado no tempo exato para concorrer ao privilégio histórico de ter sido o primeiro filme sonoro. Não foi. E nem precisou ser. Ofuscada à época pelo burburinho do cinema sonoro, esta pequena obra prima do cinema acaba conquistando seu espaço definitivo na lista dos mais importantes filmes americanos. Bem à frente de O Cantor de Jazz. Podemos dizer que a empolgação de Orson Welles com o filme se justifica. E a silenciosa locomotiva, essa personagem de ferros e caldeiras, continuará nos trilhos por muito tempo, levando-nos a passear nossos olhos encantados pelas telas dos cinemas, das televisões, dos smartphones. À procura da General.

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