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Por Antônio Roberto Gerin

Quando apresentei minha gata Jade, no meu relato anterior, a que dei o título de A Gata Abusiva, de tanto que ela passou a tomar conta da minha vida, a ponto de querer eliminar tudo que pudesse me afastar dela, e só pra dar alguns exemplos, tipo quebrar meu espelho de maquiar, cortar tantas vezes quantas fossem necessárias o fio do meu fone de ouvido pra que eu não ouvisse música, arrebentar as cordas do meu violão, enfim, tudo era destruído pra que minha atenção se voltasse exclusivamente para ela, pois, tanto foi a minha aflição em falar da minha gata que deixei de apresentar, de propósito, o meu querido cão maltês, o Totó. Sim, o delicioso cãozinho que ganhei da minha mãe quando eu acabava de fazer sete anos. Portanto, lá se vão nove de convivência! Mas agora, com a chegada da Jade, as coisas mudaram um tanto. O Totó ficou magoado. E não foi pouco. A Jade, evidente, passou a dominá-lo como se ele fosse um brinquedinho casual. Totó se ressentiu, mudou alguns hábitos, em vão tentou cercar seu território, enfim, renunciou à vida e passou a dormir na cama da minha mãe. Ficava lá quase o dia todo, disposto a brigar pelo pouco espaço que lhe restara. Abatera-se-lhe uma tristeza silenciosa, que se refletia inclusive no seu latido, que mais parecia um grito de socorro. Entronizado em seu maravilhoso mundo de cãozinho bajulado por sua rara beleza, não contava com esse terrível lance! Aliás, e aqui introduzo meu segundo relato, nem a própria Jade, a protagonista da história, contava com o que viria a acontecer. Ela também iria mergulhar em silenciosa e prostrada tristeza.

Meu pai acaba de me presentear com outro gato! Sim, macho. Ioda. Agora somos cinco nesta casa. Eu, minha mãe, Totó, Jade e Ioda, o caçula! Todos isolados pela pandemia do coronavírus. E tivemos que, em pouco espaço, ajustar nossas convivências. O que não tem sido nada fácil.

Jade não se conformou absolutamente com a chegada do Ioda. Surpreendeu-nos suas reações. Encolheu-se, desapareceu, abandonou o afeto. Passou a me rejeitar. Recusava-se a entrar no meu quarto. Em hipótese alguma! Caminhava pelo corredor, nem olhava pela porta adentro. Sequer entrava pra comer e beber. Carinhos, abraços e beijos? Sumiram. Tive que colocar a comida e a água no corredor, pra que ela não morresse de fome e sede. E o que come é quase nada. Deprimiu-se. Perambula pela casa, sem rumo. Até o Totó, sobre quem ela tinha total domínio, passou a persegui-la, atrás de brincadeiras. Tenta encurralá-la com latidos, que ela despreza! Por mais que eu tentasse pegá-la no colo, afagá-la, ela, arredia, fugia. Era como se deixasse de existir. E eu me perguntava. Como tirar a Jade dessa tristeza…?

O Ioda chegou novinho, quase moleque, tive que dispensar a ele muita atenção, e, confesso, desliguei-me momentaneamente da Jade. Não que a tirasse do meu campo de afeto. Pelo contrário. Sentindo-lhe o desamparo, redobrei-o. Em vão. Ela me olhava, seus olhinhos verdes brilhavam, mas não tomava qualquer atitude. Mantinha-se distante, longe do meu quarto, pra ela agora o ninho de suas dores.

Pobre Jade! Fico-a imaginando deitada sobre o sofá, pensativa, os sobrolhos caídos, os olhinhos quase se fechando em atitude de alheamento. Meu Deus, Jade, nós te amamos, eu, o Ioda, até o Totó! Mamãe te adora! Venha pro quarto! Eu, na minha angústia, imaginando todos nós juntos, esparramados sobre a minha cama. Sonho até besta, sentimental, mas era o que eu tinha pra me oferecer.

Me lembra um pouco dos tempos em que Jade passou presa na gaiola, um método temporário que arranjei pra corrigir alguns hábitos possessivos dela. Não acho que errei! Ademais, foram só alguns dias, e logo comecei a abrir a portinhola. Ela podia entrar e sair. Com a chegada do Ioda, acabou a gaiola, o fato está esquecido, e espero que ela não tenha guardado mágoas. Ela só tem que entender que meu amor continua o mesmo, mas que agora vem a necessidade de aceitar que tudo na vida se divide. Inclusive o afeto! No entanto, vejo-a passar pelo corredor, diante da minha porta aberta, sem sequer olhar.

E assim se passaram muitos dias nessa apatia e distanciamento, que Jade fazia questão de manter a todo custo. Hoje à tardinha fui à padaria comprar chocolate pra fazer meu café cremoso, o mesmo café que eu costumava tomar com minha mãe todas as manhãs de domingo, no Frans Café, antes da pandemia. Quando retornei, a Jade não estava dormindo no sofá, como eu a havia visto antes de sair. Pressentindo algo, corri para o meu quarto. Jade estava deitada na minha cama! E logo percebi. Tinha rasgado boa parte do livro que eu estava lendo, As Aventuras de Tom Sawyer, que minha mãe havia acabado de me comprar. Sobre o peitoril da janela, o Ioda, sentado, orelhas em pé, a tudo observava, maravilhado! Num primeiro momento me desceu ao rosto raiva misturada à frustração. Mas logo me recobrei. Afinal, minha Jade tinha voltado!

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Por Antônio Roberto Gerin

Tenho quinze anos, indo pros dezesseis, e tenho uma gata que se chama Jade. Linda, dengosa, companheira, a gata que eu sempre quis ter. Faz seis meses que ela mora comigo. Foi uma festa os primeiros dias. E continuou sendo nos seguintes. Era meu sonho, de anos, ter uma gata. E quanto não me custou convencer minha mãe…! Enfim, consegui. Tenho minha gata. Mas não é uma gata normal. Só percebi com o tempo.

Hoje esteve aqui em casa uma tia, a tia Madalena, que é bióloga, mora no Rio, e estava de passagem com destino a Chapadão do Céu, que, confesso, não sei onde fica. A primeira coisa que ela viu ao entrar em casa foi a gaiola encostada à parede, onde a Jade estava presa. O que é isso!? – perguntou, sem esconder o espanto. Uma gata… Presa! Numa gaiola!? Mais essa agora… Parece uma jaula! E depois desabafou. Merecia uma denúncia! Minha mãe tentou contemporizar. Exagero, Lena! Mas minha tia não se conformava. Como é que você deixa sua filha fazer uma coisa dessas? É temporário, Lena! Fiquei insegura, mas logo me dominei, empinei o queixo e antes que minha tia dissesse mais alguma coisa, retruquei. A gata é minha, tia. Faço com ela o que eu quiser. Ela vai continuar presa. E ironizei. Aí, na jaula. Tia Madalena me olhou, e disse. Sorte sua que você é minha sobrinha!

Este foi então o diálogo desta manhã de domingo, em minha casa, onde moramos eu, minha mãe e Jade, a enjaulada, presa por necessidade, temporariamente, como disse minha mãe. Acreditem. Jade se transformou, ao longo dos meses, numa gata abusiva.

Ainda pequena, logo se revelou uma gata fujona. Não à toa, traz no currículo uma fuga da casa anterior. Perdera-se na rua. Mas não perdeu o hábito de querer fugir. Dentre as tantas peripécias, além de ter alcançado o apartamento do vizinho através do forro do corredor, o último lance de fuga foi ter, apesar da tela, pulado do primeiro andar, lá embaixo, caindo sobre uma motocicleta estacionada, daí estatelando-se no chão. Ficou imóvel, fingindo-se de morta, à espera de socorro. Nem miava. Avisada pelo porteiro, minha mãe desceu correndo.

Foi crescendo, acostumou-se à casa, resolveu ficar de vez. E se apegou a mim. Tão manhosa, tão dengosa, a ponto de eu não aguentar mais vê-la se espichar à minha frente, barriga para cima, à espera das minhas mãos. Me persegue pela casa, adiantando-se e se espichando no chão. Eu estico o passo por cima dela, ignorando-a. Até que, no próximo ataque, vencida, eu me agacho e encho seu pelo eriçado com a carícia dos meus dedos. E ela rola, de lado a outro, me oferece o corpo todo. Alívio, só quando está dormindo. Ou quando se aboleta no peitoril da janela, no lado de fora, e fica observando o que acontece na rua. Até que acabaram as férias e eu retornei pra escola. Jade ficou só, em casa. Cada vez mais inconformada com minhas longas ausências.

As investidas em busca de atenção e afeto se intensificaram. Passou a ocupar todo meu espaço, a tomar todo meu tempo. Eu perdia a concentração. Não, pelo amor de Deus, Jade, não! Quero tocar meu violão, mas como! Tocar meu ukulelê, ouvir minhas músicas, quero pintar minhas aquarelas, estudar, quero falar com minhas amigas, quero sair, viver, droga!

Jade aos poucos começou a me afrontar. Um dia cheguei da escola, encontrei duas cordas do meu violão arrebentadas. Assim ela não me perderia para os meus momentos de música. Mas tinha o ukulelê. Até parece! Dias depois, encontrei-o na sala, a capa com rasgos de unhas, o corpo de madeira do ukulelê arranhado. Claro que ela buscava as cordas!

Dedico tempo do dia me maquiando, às vezes à noite, diante do meu espelho redondo que deixo sobre a bancada de estudo. Sou exímia maquiadora, tenho prazer, aprendo técnicas. Encontrei o espelho espatifado no chão! Ah, perdi o controle! Parti pra cima dela. Sem convicção, admito, mas aos gritos. Jade logo perceberia que havia passado dos limites. Usou de um estratagema inesperado. Fez um buraco na minha cama box, por baixo da base, furando o tecido. Ali se esconde quando as coisas não vão bem pro seu lado. Fica, nestes instantes, fora do alcance das minhas raivas. Mas como ter raiva de uma gata tão linda! Não resisto, agacho-me, chamo-a, com dengo na voz. Aí então ela aos poucos reaparece e tudo acaba em beijos.

Mas não desiste! Arranha minhas cortinas, deita-se sobre o meu livro, caminha pelas teclas do meu computador, toma abusivamente conta da minha vida! Foi, aos poucos, apoderando-se de tudo que era meu. E foi se tornando quase que insuportável pra mim. Meu afeto escondia-se agora atrás da minha impaciência.

E sem que eu esperasse, ela acabou indo além do que eu podia imaginar. Passou a destruir meus fones de ouvido. Um a um. Minha mãe comprava, não dava pra uma semana. Três em um mês. Dois num prazo de três dias! Cento e quarenta e quatro reais cada um! Tenho o hábito de ouvir música, enquanto desenho, enquanto estudo, enquanto me preparo pra dormir. Durante meu sono, pesado, Jade corta o fio. Por castigo (falta de responsabilidade, né, minha filha!), minha mãe parou de me comprar fones. Eu até argumentei. Mãe, você está justo fazendo o que a Jade quer!

Até que chegou o dia em que tudo desaguou em choro e ódio. E foi por causa do que vou contar que Jade foi parar na gaiola. Passou a ter ciúmes do meu coelho de pelúcia, que dorme comigo, aconchegado em meu rosto, todas as noites.

Quando eu tinha dois anos de idade, meu pai me presenteou com um coelho de pelúcia, da cor suavemente rosa. Havia um mecanismo que fazia com que suas enormes orelhas se abanassem, enquanto tocava uma doce música. Nas patas dianteiras, presa, uma enorme cenoura! Era comum, e delicioso, meu pai usar uma das enormes orelhas pra fazer cócegas nas minhas orelhas! O coelho me parecia enorme aos dois anos. Dormia a meu lado, silencioso e simpático, por quem eu estaria desde então afetivamente presa, como se ele fosse fazer eternamente parte da minha vida. E faria, já que eu ia pelos meus seis anos quando meus pais se separaram. O coelhinho passou a me acompanhar todas as noites, nos meus momentos de saudades do meu pai. Era a presença que eu tinha dele. Jade passou a dormir entre meu rosto e o coelho. Não escondia o ciúme. Até que um dia o destruiu!

Passei vários dias em silêncio. Rejeitava minha gata, tentando entender por que razão as coisas não podiam ficar cada uma delas em seu devido lugar. E pensava no que eu havia feito de errado pra que Jade se permitisse me tratar como propriedade sua. Porque era assim que eu me sentia, entregando minha vida aos caprichos dela. Aí veio a ideia da gaiola. De aplicar um corretivo, mudar os hábitos da minha gata.

Voltando ao diálogo desta manhã de domingo, depois que eu terminei minha fala arrogante, depois que eu havia dito pra minha tia que a gata era minha e que ela continuaria presa, eu ainda pensei em dizer mais algumas coisinhas. Tipo. Pode ir lá, tia, me denunciar. Por maus tratos! Tira uma foto e publica nas redes sociais! Mas não. Disse mais nada. Olhei pra minha gata, me abaixei até o chão, me apoiei nos cotovelos, e através da grade da gaiola ofereci a Jade os meus lábios. Ela, como sempre faz, aproximou-se, fechou os olhinhos verdes e me beijou.

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A rainha amada

Por Antônio Roberto Gerin

Em 1759, nasce, em Marbach, Johan Friedrich Schiller que, aos quarenta anos, já no final de sua curta vida, escreveria MARY STUART (1800), uma das grandes obras primas da literatura universal. Schiller, por ser filho de médico militar, viria a residir, na sua infância e adolescência, em várias pequenas cidades da região de Württemberg, cuja capital era Estugarda (Stuttgart). Já adulto e formado em medicina, aos vinte e um anos Schiller conheceria a fama com seu primeiro texto teatral, Os Bandoleiros, levado ao palco em Mannheim, em 1780, sob a tutela do barão Von Dalbert, admirador de primeira hora da obra literária de Schiller. Aliás, Os bandoleiros, que narra as rebeldias de um jovem estudante, viria a se tornar uma das principais referências do pré-romantismo alemão. Com o sucesso de seus textos iniciais e a paixão pela literatura, Schiller abandona a profissão de médico e, após várias andanças, acaba se estabelecendo em Weimar, à época, um dos grandes centros culturais da Alemanha, onde, já casado, iria se dedicar à escrita e a novos estudos. É em Weimar que Schiller conhece Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832), dez anos mais velho que ele, e firmam uma amizade baseada na admiração mútua, e que duraria até a morte de Schiller, aos 44 anos, em 9 de maio de 1805. E é em Weimar que o agora também filósofo e historiador Friedrich Schiller escreve seus principais dramas históricos, já totalmente liberto dos eflúvios do pré-romantismo. E é neste período que surge um de seus mais conhecidos e aplaudidos dramas, Mary Stuart, finalizado e encenado em 1800, no Teatro de Weimar, dirigido pelo próprio Schiller. Desde então, Mary Stuart tem tido uma trajetória gloriosa pelos palcos mundo afora, chegando pela primeira vez ao Brasil em 1955, através do Teatro Brasileiro de Comédia, com Ziembinski dirigindo duas de nossas grandes atrizes, as irmãs Cleyde Yáconis e Cacilda Becker, que protagonizaram, respectivamente, Elizabeth e Mary. E vale ressaltar. Com primorosa tradução do nosso poeta Manuel Bandeira.

A base dramática do texto Mary Stuart gira em torno dos conflitos político e religioso entre as rainhas da Inglaterra e da Escócia, e que apenas refletem os tumultuados conflitos históricos nas relações político-militares entre os dois países, que se estenderiam por vários séculos. O direito ao trono inglês, reivindicado por Mary, vem do casamento de seu avô, rei da Escócia, James IV, com Margarida Tudor, em 1503, ligando assim as duas casas, Tudor e Stuart. Acontece que sua prima Elizabeth era filha bastarda de Henrique VIII com Ana Bolena, e esta origem incômoda tornar-se-ia o calcanhar de Aquiles do reinado da anglicana Elizabeth, no seu eterno embate com a católica e legítima herdeira ao trono da Inglaterra, Mary Stuart. É destes embates que Schiller se valerá para compor seu drama histórico. Schiller, artista intenso, de índole apaixonante, afeito a arroubos idealistas, não esconde seu encanto pela inconseqüente, impulsiva e exuberante rainha Mary Stuart. É dela que trata o drama. Elizabeth, com todos os seus conflitos de poder, linhagem e inseguranças afetivas, entra apenas como contraponto à heroína de Schiller.

No decorrer dos cinco atos em que se divide a peça, Schiller fará um minucioso apanhado psicológico e moral das rainhas, trabalhando em versos iâmbicos, de rara beleza, as diferenças entre as duas mulheres. Mas antes de entrarmos nesta discussão, vale colocar uma questão primordial. O processo criativo do artista que se utiliza de fatos reais e históricos para compor sua obra artística. Do dramaturgo ao escultor, do romancista ao pintor, este processo de transformação da realidade em arte é que coloca o artista como agente cultural da sua época.

O fazer literário de Schiller é um exemplo clássico de como o artista tem que ser criativo e corajoso para tirar o maior proveito possível de fatos históricos para compor, com grandeza, sua obra artística. Schiller tornara-se ao longo dos anos um conhecido historiador, e esta condição de conhecedor da História viria a ser uma fonte fértil e febril para a edificação de sua magnífica obra teatral. E o texto Mary Stuart beberia avidamente de fatos históricos para traçar o perfil pessoal de duas das grandes mulheres da história universal. Evidente, Schiller se debruçaria com mais vagar sobre a tumultuada trajetória de vida, pública e privada, da inquieta Mary Stuart para escrever com vigor sua tragédia bem composta. E vamos ver ao longo da obra, exemplos pontuais de como Schiller não segue à risca a verdade histórica dos fatos que envolvem a prisão e morte de sua personagem. E aqui está o verdadeiro artífice, que não se submete aos fatos reais para compor um painel histórico, mas usa, habilmente, destes fatos para compor uma grande obra literária.

Ao iniciar o primeiro ato, Schiller já coloca Mary Stuart na prisão. E se vale de um fato curioso para compor o núcleo da tragédia. Na vida real, as duas rainhas nunca se encontraram pessoalmente. Mary Stuart estivera presa no Castelo de Fotheringhay, distando mais ou menos cento e cinquenta quilômetros ao norte de Londres, a caminho da Escócia. Mas para Schiller este fato não o abala. O impulso que move a narrativa poética fabulada por ele é o profundo desejo nutrido por Mary Stuart de se encontrar com sua rival, Elizabeth, onde Mary teria a oportunidade de expor, com súplica e veemência, a sua inocência. Os dois primeiros atos preparam o encontro que se dará no terceiro, dedicado a relatar a famosa entrevista que a história jamais registrou. Por ironia, Elizabeth morreria sem deixar herdeiros, e o trono da Inglaterra seria ocupado pela linhagem escocesa dos Stuart, em 1603, na pessoa do filho de Mary Stuart, James I, restando às primas e rainhas, despidas de seus sobrenomes, jazerem lado a lado, na Abadia de Westminster, onde estão até hoje expostas à visita de turistas.

Para encerrar esta pequena discussão, entendemos que o artista que usa e abusa de fatos históricos para compor sua obra não tem a obrigação do rigor no manuseio dos registros históricos. Não é o objetivo a instrução, e sim o deleite. E obra alguma se encaixaria à perfeição no rigor histórico, o que comprometeria mortalmente seu valor artístico. Portanto, ao entrar em contato com obras que se fundamentam em fatos históricos, há de se tomar o cuidado de separar estas duas instâncias, ficção e realidade, e ter em mente qual é o real propósito da obra que se está lendo ou contemplando. Com certeza, não será histórico. E, se o for, não será arte. E neste ponto, a atitude criativa de Schiller nos chama sobremaneira a atenção, a habilidade do artista que soube como ninguém moldar sua arte a partir de insumos históricos.

Cabe agora passarmos rapidamente em cada ato, para um breve apanhado de sua essência.

O primeiro ato é todo ele dedicado a Mary Stuart, já em sua prisão, no castelo de Fortheringhay. O arcabouço psíquico construído por Schiller para sua personagem vem, como já dito, de inspirações históricas, de que Schiller se vale para alavancar a tragédia e dar a ela o salto heroico pretendido. Mary Stuart, após levantes na Escócia, e depois de ter consentido no assassinato, por seu amante Bothwell, de seu marido Lord Darnley, foge para a Inglaterra, em busca de proteção da prima, a rainha Elizabeth. Mas é logo acusada de tramar a morte da rainha inglesa, complô organizado por Parry e Babington, assistentes da rainha escocesa. Agora na prisão, Mary manifesta seu desejo de ter uma entrevista com a rainha Elizabeth, e é neste sentido, numa última tentativa de provar sua inocência, que ela se movimenta. Mary Stuart é vista como orgulhosa, mundana, mulher que não abriu mão de seus sentimentos e de arroubos sexuais em submissão aos deveres da coroa. Ela é construída por Schiller como um ser humano real, “de instintos naturais”, como ele próprio o diz, não divino pela sua condição majestática, mas alguém que se dobra às suas fraquezas e às suas inclinações. Assim a define, logo no começo, seu carcereiro Paulet, ao vê-la entrar. “Nas mãos o crucifixo; / No coração, porém, luxúria e orgulho.” E o próprio, em outro verso acima, assim já havia descrito tão astuciosa personagem que, mesmo estando presa, não cessava de conspirar contra o trono da Inglaterra. “Não há grade que nos garanta contra a astúcia dela.” Mary Stuart, se aparentemente se resigna à sua sorte, não deixa de ter consciência de sua dignidade. De sua boca saem as palavras que definem sua atitude altiva perante as difamações e acusações que sobre ela recaem. Diz à sua fiel ama, Ana Kennedy. “Baixamente nos poderão tratar, não rebaixar-nos.” E surge então a personagem fictícia criada por Schiller, Mortimer, figura dúbia, cujos desenfreados sentimentos por Mary nos faz lembrar os bons tempos do romantismo, do qual Schiller, no começo de sua carreira literária, fora um dos grandes mestres. As promessas de Mortimer animam Mary; seus arroubos românticos assustam-na. A Mortimer cabe alimentar em Mary a esperança da liberdade. Ele é o arauto da legalidade, esta é a função precípua que Schiller reserva a Mortimer, na defesa do direito ao trono da Inglaterra por Mary Stuart. E a consciência do trono usurpado por Elizabeth é tão real, que Mortimer assim o diz a Mary. “Só a vossa morte garantirá o trono dela.”

O segundo ato é todo ele dedicado à Elizabeth. Schiller procura apresentar Elizabeth ao público, e o faz dentro de uma perspectiva histórica sem retoques. Apresenta, em primeiro lugar, o que há de mais frágil na rainha. A sua origem. O fatalismo da linhagem bastarda e suas consequências ficam bastante claras na fala de Lord Davison. Diz ele, aplacando a preocupação do Conde de Kent, quanto ao acordo de casamento da rainha com o consorte francês. “Para as núpcias caminha a soberana e para a morte a Stuart.” Mas Schiller coloca Elizabeth a serviço do povo. Destituída de beleza e arroubos sentimentais, submete-se à burocracia da Corte. Veja como Elizabeth se coloca, nestes belos versos. “Escravos são os reis de seu estado / E não podem ceder ao sentimento. / Foi sempre meu desejo não casar-me, / Pôr minha glória em que se lesse um dia / Na minha campa este epitáfio. “Aqui / Jaz a rainha virgem.”” Portanto, Elizabeth opta por sacrificar sua virgindade ao exercício de seu reinado como se um homem rei fosse. Sacrificar a virgindade, para Elizabeth, significava não sacrificar sua liberdade, para ela seu bem mais precioso. Ainda no Ato II, deixa clara sua posição de rainha da Inglaterra, e mostra a força da sua governança, quando diz. “Acolho de preferência o parecer daqueles que olham meus interesses.” Esta é Elizabeth, vigiando seu trono vinte e quatro horas por dia.

Ainda no segundo ato, Schiller traça uma Elizabeth abatida pelo medo, que tem em mãos a sentença de morte de Mary, votada unanimemente pelas duas casas, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns, mas que cabe a ela assinar e dar a ordem de execução. Vacilante ela, Schiller traça-nos o perfil de uma Elizabeth pouco confiável, que coloca os interesses do trono acima de tudo, defendendo-o, a despeito de qualquer lealdade. E Schiller dá o golpe de misericórdia em Elizabeth quando assim define sua indecisão. “assim, menos hesitará a assumir ante o mundo as aparências da clemência.” Portanto, a pretensa clemência é o refúgio imoral de Elizabeth.

Há ainda a longa cena em que Leicester e Mortimer discutem as conveniências de um e outro de tomarem parte na defesa da mulher que ambos amam, a Stuart. Um ama pela afoiteza, o outro, por ambição sexual (não é cobiça o que se deseja libidinosamente?).

Enquanto Elizabeth se lastima por não poder escolher o homem com quem se casaria por amor, por estar ela presa aos austeros deveres da realeza, assim vê Mary Stuart, quando a ela se refere… “Ela, a Stuart, conheceu-a, / A alegria maior de livremente / Conceder sua mão a quem amava; / Tudo teve, bebeu até ao fundo / A taça dos prazeres e alegrias.” Vejam como escapolem os ressentimentos, e a inveja da prima tão cortejada pelos homens. E ainda exala. “É mais moça do que eu…” É nesta diferença humana entre as duas que se selaria o destino do trono inglês no próximo século, o XVII. A virgem não deixa herdeiro; a cortejada gera o filho, James VI, e o oferece ao trono da Inglaterra como James I, em sucessão à sua rival.

Por fim, Elizabeth, ao final do Ato II, decide atender ao pedido de Mary Stuart, trazido por Lord Leicester, de ir a seu encontro, na prisão. É o que nos trará o terceiro ato.

O terceiro é o mais breve dos cinco atos. Neste, realiza-se o projeto de Schiller, provocando finalmente o encontro das duas rainhas. Schiller reescreve a história. Poderia ser um encontro histórico, se verdadeiro fosse. Schiller constrói inicialmente uma Mary Stuart nervosa e submissa, que tanto se preparara para este encontro, mas que agora se vê com a voz esquecida e frágil. Ela que se preparara para pedir clemência e liberdade, vê agora seu coração corroído pelo ódio e pelo despeito. Começa se ajoelhando aos pés de Elizabeth, mas, sentindo-lhe a frieza, a arrogância e o escárnio, Mary rapidamente recupera a altivez, e aponta para a rival todo o seu furor de rainha usurpada. E suas últimas palavras provocam a ira e a imediata retirada de Elizabeth. Assim diz a Stuart. “Uma bastarda profanou o trono / Inglês, o nobre povo de Inglaterra / Foi por uma astuciosa comediante / Ludibriado! Se direito houvesse / Vós é que neste instante às minhas plantas / Rojaríeis no pó, pois eu sou o rei!” Ao dizer estas palavras, em tom de desabafo, resgatando a sua história, Mary Stuart sabia que estava definitivamente selando seu trágico destino.

O quarto ato é dedicado todo ele à Elizabeth, às voltas com a pressão do povo para que assine a sentença de morte de Mary. Schiller, espertamente, usa o povo para impulsionar seu drama. De um lado, há os que defendem a execução imediata da escocesa, e, do outro, os que tentam evitar a morte de Mary, defendendo que seja mantida na prisão, sem que a Inglaterra precise derramar o sangue divino de uma rainha. Nesta discussão, Schiller toma algumas liberdades históricas para compor a tensão dramática do Ato IV. Assim diz Burleigh, personagem histórico, um dos ferrenhos defensores da execução. “A sentença já foi pronunciada: / O que falece agora é executá-la.” Temos a voz do Conde de Shrewsbury, que na história real foi um dos que mais se empenharam pela execução de Mary, mas que Schiller, para efeitos de construção dramática, o coloca no lado oposto, mostrando o perigo da execução da Stuart, neta dos reis da Inglaterra. Alerta ele. “Quero apenas dizer-vos uma coisa: / Tremeis agora da Maria viva: / Não é esta que deve amedrontar-vos. / Tremei da morta, da decapitada. / Ela sairá da campa nova deusa / Da discórdia, inflamando todo o reino / Em chamas de vingança, expelindo / De vós o coração do vosso povo.” Fraca, mergulhada em sua indecisão, Elizabeth nos traz o belo monólogo de duas páginas, ao fim das quais assina a sentença de Mary. E o faz proferindo estas palavras, que está na base de todo o conflito da tragédia, e também do conflito histórico entre as duas rainhas. Diz ela, dirigindo-se, em seus pensamentos, à rival. “Chamas-me de bastarda… Todavia / Sê-lo-ei somente enquanto respirares. / A dúvida que paira sobre a minha / Origem principesca, hei de destruí-la / Destruindo-te! No dia em que os ingleses / Já não tiverem que escolher, nascida / Serei então de tálamo legítimo!” Após assinar a sentença, descobre-se impotente para fazê-la ser executada. Impõe a cruel tarefa a Davison, que implora precisar ouvir dela a ordem final. Elizabeth, apenas diz. “Deixo ao vosso juízo…” Mas, diante da insistência do pobre secretário Davison, e do jogo dúbio de esquivas de responsabilidades, Elizabeth retira-se, sem não antes dizer-lhe. “Fazei o que compete ao vosso cargo.” Diante de tantas covardias, cabe ao Barão de Burleigh, o Grande Tesoureiro, o gesto definitivo, fazendo deste modo com que Schiller traga sua tragédia para o eixo histórico, do qual ele, na busca de resultados artísticos, tantas vezes se desviara.

É bom ilustrar que a figura de reis e rainhas era divina, portanto, estavam acima de qualquer julgamento terreno. Condenar e levar à morte um ente divino, reis e rainhas, portanto, necessitava de uma coragem acima das forças comuns. E a morte de Mary Stuart acaba sendo a primeira execução de uma rainha. Daí se entende as atitudes dúbias de Elizabeth, tão bem construídas por Schiller. Ela estaria dando um passo além da história. Tanto é verdade, que foram dezenoves anos de prisão até a execução de Mary, em 1587.

Quinto ato. É quando a história, no rastro da tragédia, se consome. Diante da morte, Mary é tomada de um profundo sentido religioso. Schiller nos mostra isto tanto nos diálogos, principalmente em seu monólogo, como nas vestimentas e acessórios sacros que ela traz consigo. E diante de seu querido e leal mordomo, Melvil, Mary assim o diz a ele, quando este se ajoelha diante de sua rainha. “Erguei-vos, pois viestes / Para assistir ao triunfo e não à morte / De vossa soberana.” Que todos os que estivessem ali se rejubilassem, pois a morte significaria a liberdade da vida eterna, diferente do tempo em que estivera na prisão, esta, sim, motivo de tristeza e dor. E por ser católica fervorosa, Mary, antes de colocar sua cabeça real no cadafalso, precisava do mandamento da confissão e da comunhão para estar preparada no seu encontro com o Deus Todo Poderoso. Mas seus algozes lhe negaram um padre que ministrasse os sacramentos. E Schiller, num arranjo cênico bem apropriado, carinhoso com sua heroína, apresenta Melvil, seu antigo mordomo, como sendo agora pertencente às hostes eclesiásticas da Igreja Romana. Portanto, Melvil, agora padre, estava ali para ouvir a confissão de Mary. Essa preparação da estrutura do quinto ato nos faz crer que Schiller queria, a todo custo, deixar clara a inocência de Mary, acusada de tramar a morte da rainha Elizabeth. Numa página de rara beleza e sensibilidade, Melvil vai conduzindo Mary à confissão, incitando-a a revelar todos os pecados, sob pena de não receber o perdão divino. Até ela, após nova insistência de Melvil, declarar não ter mais nada a confessar. Portanto, a ausência de qualquer outro pecado lhe garantia também a inocência no complô contra a vida de Elizabeth! Neste trecho, ao final da confissão, Schiller faz Mary dizer. “Fiz apelo / Aos reis da terra por que me livrassem / De cadeias indignas. Entretanto, / Nem mesmo em intenção, atentei contra / A vida da rainha.” E com isso, o padre Melvil confirma-lhe a absolvição. “E eu, em virtude do poder que tenho / De atar e desatar, dou-vos, Rainha / A santa absolvição!” Desta forma, Schiller resgata Mary do erro histórico de sua condenação. Se Schiller a Mary reservou a expiação terrena, a Elizabeth ele concedeu a pena amarga da solidão. A Burleigh, a quem coube, de livre iniciativa, executar a sentença assinada por Elizabeth, esta o questiona. Pergunta ela. “Lord, dizei-me: / Recebestes de minhas mãos a ordem / De execução?” Burleigh retruca. “Não, minha soberana! / Recebi-a de Davison.” Elizabeth continua a indagá-lo. “E Davison, / Entregou-a em meu nome?” E Burleigh diz. “Não, Rainha.” E Elizabeth, ao se livrar da responsabilidade por levar Mary ao cadafalso, e depois de saber, tardiamente, da comprovada inocência de Mary, condena Burleigh com esta pergunta. “E a executastes imediatamente / Sem indagar primeiro se era mesmo / Minha vontade?” Diante da negativa de Burleigh, Schiller, maliciosamente, veste Elizabeth com as luvas de Pilatos.

Em suma. Assim finalizados os cinco atos, podemos dizer que Schiller, enclausurado em sua genialidade, compõe, em versos iâmbicos, uma das mais notáveis narrativas de personalidades que se sobrepuseram a uma visão sistêmica da história. Schiller queria falar de Mary. Schiller se encantava por Mary. Mas, em momento algum, e aí está sua honestidade de artista, fez de Mary, vítima de erros históricos, uma pobre coitada submetida aos horrores da clausura e do cadafalso. Schiller só quis, provável, como historiador e como artista, resgatar a verdade histórica de Mary, em que se vislumbravam novos tempos acontecendo na Ilha de Inglaterra, e que se comprovaria no tumultuado século seguinte, em que o país da revolução industrial se preparava, mesmo que dolorosamente, para dominar a economia e os mares do mundo conhecido. Assim se fez Mary Stuart, nas mãos de Schiller, que, em momento algum, quis santificá-la, senão lançar luzes coloridas sobre esta personagem real que soube reconhecer seus erros e fez deste reconhecimento seu motivo de grandeza. Schiller nada mais pretendeu do que fazer jus à verdadeira história. Uma história segundo ele.

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