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Os pesos e as medidas do crime

Por Antônio Roberto Gerin

Se você quiser ficar tenso além da conta, comer pipoca num ritmo acelerado, ficar inquieto querendo saber qual vai ser o final do filme, ou ainda, se você quer que chegue logo o final porque não aguenta mais ver tanto sofrimento, uma boa sugestão. Assista a O EXPRESSO DA MEIA NOITE, (120’), direção de Alan Parker, EUA/Reino Unido (1978). É um clássico. Talvez num tom menor, mas um clássico.

O tom menor a que nos referimos deve-se talvez ao vezo ideológico do filme. Não que não exista ideologia no mundo, é só o que existe, e ela é determinante para formatar o dia a dia do cidadão. O filme é baseado numa história para lá de real, um cidadão norte-americano preso nos porões de uma prisão turca. Seria apenas mais um fato policial não fossem as repercussões geradas, envolvendo países com interesses políticos contrários. Mas não é esta ideologia que tira alguns centímetros da estatura artística do filme. É uma outra, mais sutil.

Um estudante norte-americano, Billy Hayes (Brad Davis), de passagem, com a namorada, pela Turquia, resolve traficar haxixe, pensando em vender os dois “inocentes” quilinhos para os amigos de universidade, lá nos Estados Unidos. Ótimo, cobriria os gastos de viagem. Naquela época, início da década de setenta, quando o mundo da Guerra Fria ia dormir e acordava no dia seguinte dividido em dois, as questões do tráfico de drogas não estavam ainda no epicentro das atenções. Dentro deste contexto, e não levando em consideração que na Turquia traficar era coisa mais ou menos séria, nasce a decisão em Billy de achar que valia a pena tentar passar pela segurança do aeroporto turco com dois quilos de haxixe colados ao corpo. No entanto, já dentro do aeroporto, percebe que não está preparado para o crime. O nervosismo o denuncia. Billy vai preso e aí começa sua via sacra de sofrimentos pelas execráveis prisões turcas. Haja pipoca!

O filme, nas mãos hábeis de Alan Parker, sem deixar de mencionar o preciso e dinâmico roteiro de Oliver Stone, ganha dimensão humana justamente pela forma como as relações nas prisões turcas são estabelecidas. Ali também o mundo é dividido em dois, os presos turcos e o resto. Se for norte-americano, aí que é resto mesmo!

Billy e seus dois comparsas, Max (John Hurt) e Jimmy (Handy Quaid), que compõem o vibrante núcleo narrativo do filme, não são poupados das raivas “ideológicas” dos guardas, brutamontes, cães menores e famintos, que apenas reproduzem, na fantástica personagem de Hamidou (Paul L. Smith), o sistema prisional turco, tratado com crueza pelas lentes de Alan Parker, e com certo maniqueísmo pelos tons exagerados com que é retratado. O certo é que as motivações da conduta humana estão baseadas na visão relativa que temos do que é o bem e do que é o mal. É desta visão que nasce, perigosamente, a arbitrariedade. E tornar-se vítima da arbitrariedade foi a principal condenação de Billy Hayes. O que conta é o interesse do momento. É nesta visão, refletida no maniqueísmo, que o filme tira sua força moral e estética. A violência como produto de beleza.

Portanto, se é a ideologia que determina quem é bonzinho e quem é mauzinho, um norte-americano, mesmo cometendo um erro para lá de ingênuo, não pode ser colocado na ala dos maus. Billy Hayes é apenas vítima dessa estrutura polarizada. Condenado a quatro anos de prisão por consumo, e após ter cumprido este tempo, vê a acusação, com caráter retroativo, transformá-lo em traficante, com direito à pena perpétua. E agora, José? O que fazer com o desespero de Billy? Caro espectador, aos desesperados, mais pipoca!

Mesmo defendendo seu cidadão, mesmo o apelo por clemência passar pelas mesas da Casa Branca, o presidente Nixon não vai colocar seus porta-aviões às portas de Istambul e exigir que libertem seu pequeno traficante. O filme ganha dimensão humana na fabulosa cena do encontro de Billy com a namorada Susan (Irene Miracle), quando nada mais importava naquele sagrado instante de encontro com o feminino senão que ela levantasse a blusa e lhe oferecesse os seios nus colados ao vidro de segurança. Esta cena alça o filme, de vez, à categoria do clássico. E é clássico quando uma obra de arte resgata o humano da sua essência trágica.

Mas onde está a pequena fraqueza do filme? Fraqueza, modo de dizer. A preocupação em preservar os bons, esta poderia ser a fraqueza, ou a sutileza ideológica que tira um pouco a ousadia moral do filme. Susan, a namorada, nada sabia das falcatruas do namorado. Vamos preservar a moça, eis a ideologia do bonzinho! Melhor talvez seria ela saber de tudo, mesmo que não concordasse, e ser apenas poupada pelo namorado na hora de ser preso. E de fato ele o faz, mas ao poupá-la, ele está salvando uma inocente e não uma cúmplice! Preserva, assim, no imbróglio, a boa mocinha norte-americana. Se ela fosse cúmplice, portanto, culpada, a ação de Susan de oferecer os seios ao desesperado e destruído namorado daria uma dimensão mais humana ao crime e a cena do vidro seria a consumação da loucura humana, quando perceberíamos, na cumplicidade, que o erro não é uma condenação, mas uma condição de ser do homem.

Mas, enfim. Diante de tanta impotência e se agarrando à lucidez como forma de sobrevivência, o filme não tem como oferecer ao personagem Billy outra alternativa senão apelar para o fortuito. Afinal, o que seria das nossas esperanças se nos baseássemos tão somente na lógica? Enlouqueceríamos. O personagem e o espectador. Mas, neste belo filme, o fortuito nos salva, a todos. O que prova que somos seres indefesos, portanto, humanizados.

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A Difícil Tarefa de ser Mulher

Por Antônio Roberto Gerin

BONEQUINHA DE LUXO (115’), direção de Blake Edwards, EUA (1961), é uma adaptação customizada do livro homônimo de Truman Capote, badalado escritor norte-americano e também autor do famoso romance jornalístico, que também viraria filme, A Sangue Frio. Não há nenhum tipo de intenção pejorativa na utilização do verbo customizar, senão para informar ao espectador que o filme é uma versão mais amena, mais palatável da personagem original de Truman, Holly Golightly. Audrey Hepburn interpreta Holly e Holly tinha que caber como uma luva em Audrey, a diva mimada. E assim foi feito, resultando numa das combinações mais perfeitas entre atriz e personagem, personagem e atriz. Quase uma simbiose.

Na interpretação segura e corajosa de Audrey Hepburn, percebemos que Holly é Audrey, e Audrey se permite ser Holly. Não a Holly bissexual, que fuma maconha e tal, saída do fogo criativo de Truman Capote. É muito para o marketing hollywoodiano, que tem na imagem moral uma das fontes seguras de bilheteria. Portanto, antes foi preciso construir uma Holly dentro dos padrões exigidos para a imagem de Audrey – leia-se, Hollywood. E depois, perguntar a Audrey Hepburn se ela concordaria em fazer o papel de uma prostituta. Audrey aceitou, e Holly, então, é uma prostituta, mesmo que alguns espectadores, distraídos, vão passar pelo filme sem ter a certeza da profissão milenar de Holly. Mas, para a proposta do filme, este pequeno fato absolutamente não interessa.

O que interessa são os sonhos de Holly, e neste ponto a construção da narrativa acerta a mão. Há uma menina insegura e perplexa, sofrida e de origem pobre que aos 14 anos sai do sul dos Estados Unidos, Texas, e vai para Nova Iorque em busca de realizar seus sonhos, o mais óbvio deles, se fazer na vida, e o caminho mais fácil, se casar com um homem rico. Nenhuma novidade até aqui. No entanto, Holly, ao trazer sua história para Nova Iorque, descobre-se presa a um passado inconcluso, cujo único contato com a realidade concreta é seu eterno afeto pelo irmão Fred. O irmão é sua referência de vida, e, curiosamente, é o que a amarra ao passado. Este é o conflito da menina Holly.

Casar-se com um homem rico não vai substituir seu afeto pelo irmão Fred, que ela não vê há anos, mas vai, quem sabe, tornar real o mundo de ilusões que ela criou para si, mundo este baseado no luxo, o luxo que começa às portas da famosa joalheira Tiffany’s, onde ela vai tomar café todas as manhãs, e continua nos vestidos de grife que ela usa e que ditariam moda à época do lançamento do filme. A própria tradicionalíssima Tiffany’s se dispôs a abrir sua loja, num domingo, para que as filmagens, dentro da loja, pudessem ser feitas. É pouco, ou querem mais luxo?

Mas Holly não é só luxo. Com seu jeito descompromissado, oscilando entre a tristeza e a esperança, inserida num mundo de glamour e fantasia, a deslumbrante Audrey faz da personagem Holly uma sombra que vaga graciosamente sobre uma possibilidade de vida. E esta possibilidade aparece quando Paul Varjak (George Peppard) se muda para o apartamento logo acima do dela e se torna um vizinho adorável, respeitoso, alto, belo, enfim, detém todas as características que Holly sempre atribuiu ao seu irmão Fred. Não à toa, Paul vira Fred. Confundem-se na cabecinha acelerada de Holly, uma cabecinha de boneca (não prostituta) adorável. Boneca, sim, e de luxo!

Aqui chegamos à nossa conclusão. Em se tratando de um clássico, fica-nos sempre a impressão de que falamos pouco. Então, é melhor deixar tudo de lado e falar de uma coisa só. E bem falada.

Aliás, podíamos falar de Marylin Monroe, que foi a primeira indicada para fazer o papel de Holly, mas, seguindo conselho do seu guru, Lee Strasberg, renomado diretor de teatro em Nova Iorque, Marilyn recusou o papel, uma vez que fazer um papel de prostituta poderia afetar sua imagem. Podíamos falar da trilha sonora, da belíssima e premiada canção Moon River, da fotografia, do roteiro seguro… Podíamos até falar do título brasileiro, Bonequinha de Luxo, mais apropriado que o título americano, Breakfast at Tiffany’s… Enfim, não vamos falar de nada disso!

Em meio às indefinições do caráter emocional e afetivo da personagem, que se nega a se entregar ao verdadeiro amor que viera bater a sua porta, o belo e sedutor Paul, vemos uma menina em constante embate com o ser mulher. A mulher em Holly quer aparecer, mas a menina Holly não deixa. É essa menina que não consegue se fazer mulher, é essa menina se debatendo com sua história, é Holly juntando forças para continuar perseguindo seu sonho de se casar com um homem rico, é Holly caminhando para ser finalmente mulher: esta é a trajetória existencial da personagem no filme Bonequinha de Luxo.

E o filme chega ao seu desfecho natural e vigoroso quando a realidade, com a morte do irmão Fred, se abre para Holly. Agora tudo parece se tornar concreto, principalmente suas dores. Primeiro, quando ela nega afeto a seu gato. Aliás, ela nega até nome ao gato. Aliás, ela nega seu próprio nome, ela não é Holly, ela é Mae. Segundo, quando, ao “jogar” o gato fora, ela percebe que está jogando fora também o seu amor de vida, Paul. É esse caminhar doloroso da menina em direção à mulher, trilhando o caminho do afeto, que faz do filme Bonequinha de Luxo um clássico irreparável. Afinal, a vida é movimento. Também no cinema.

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Ser mãe e ser mulher

Por Antônio Roberto Gerin

 Assistir ao filme de Ingmar Bergman, SONATA DE OUTONO (99’), Suécia/Alemanha (1978), é acompanhar bem de perto, em closes magníficos, uma sequência devastadora de embates entre mãe e filha. Ou entre filha e mãe? Não. Mãe vem primeiro, sempre, então é relação mãe e filha, “essa mistura terrível de sentimentos, confusão e destruição”. Sim, estas são as palavras do roteirista Bergman, ditas pela boca amarga de Eva, a filha.

O filme narra a tumultuada relação entre a mãe, Charlotte (Ingrid Bergman), uma pianista famosa, e suas duas filhas, Eva (Liv Ullmann), casada com o pastor Viktor (Halvar Björk), e Helena (Lena Nyman), vítima de doença degenerativa.  Após sete anos sem se verem, e a convite de Eva, Charlotte vai passar alguns dias na casa da filha, no sul da Noruega. Charlotte, que há anos havia colocado sua filha doente num asilo, com a sensibilidade de quem coloca uma coisa velha e inútil num depósito, surpreende-se ao encontrar Helena na casa da irmã, Eva. As circunstâncias  para que os tumores emocionais supurem estão dadas.

A chegada de Charlotte à casa da filha Eva, logo no início do filme, segue os padrões cênicos do cinema mundial. Ela desce do carro, abre o porta-malas e vai pegar as malas que ali estão. Eva, feliz, se antecipa à mãe e pega ela as duas enormes malas lindamente amarelas e as sai carregando com tanta desenvoltura, que fica logo evidente que Bergman comete a mesma “leviandade” perpetuada nos filmes mundo afora que usam malas em seus roteiros. O personagem tem que fingir que a mala está pesada, quando todo mundo vê que ela está vazia. Mas como a frágil Liv Ullmann (Eva) vai fingir, se ela está carregando, escada acima, quase correndo, duas malas que devem pesar (se estivessem cheias), cada uma, no mínimo, vinte e cinco quilos? Até tu, Bergman?

Leviandade seria nossa, a de nos preocuparmos com tal detalhe, o peso das malas vazias nos filmes de Bergman. Mas tal observação pode ter seu sentido. Afinal, a genialidade de Bergman faz das malas uma simbologia única, mostrando a extensão da personalidade de Charlotte, uma mulher do mundo e não uma mulher do lar, e atribuindo à filha o papel de carregar o peso das escolhas da mãe. Em Bergman nada é de graça, mesmo que sejam duas lindas malas vazias.

Ingrid Bergman, magnífica; Liv Ullmann, magnífica; Lena Nyman, magnífica. Não precisamos de mais nenhum outro adjetivo para alçar estas três estrelas a um dos momentos mágicos da história do cinema. Lógico que nesta vida nada é absoluto, nem mesmo a empolgação dos adjetivos. E tampouco a empolgação do espectador ao ver, em magnífica fotografia, a sucessão de cenas icônicas, dentre as quais ressaltamos duas, e que traduzem à perfeição uma das características mais fortes da filmografia de Bergman. Sua rigorosa preparação de atores.

Primeiro, a cena, logo no início, quando Charlotte fica sabendo da presença da filha Helena na casa da filha Eva. Contrariando sua vontade, Charlotte – eu tenho outra opção?, pergunta ela – concorda em ver a filha doente. O enquadramento em close absoluto-avermelhado das três, cada uma com suas sensações e vibrações interiores, é preciso e chocante. Interminável. Ali está presente toda essa mistura terrível de sentimentos, confusão e destruição nas relações mãe-filha. Ali estão presentes as provocações que só a arte parece saber fazer. Ali está presente o fantástico fotógrafo Sven Nykvist que, a partir de 1953, passou a ser o inseparável diretor de fotografia dos filmes de Bergman, e é considerado, por muitos, um dos grandes fotógrafos da história do cinema. Ali está presente, enfim, o resumo artístico da genialidade de Bergman.

A segunda cena é a do piano, quando a filha, e depois a mãe, tocam o Prelúdio n. 2, de Chopin. Se dizem que cinema é close, e é no close onde tudo acontece, é onde a alma sai do limbo e se transforma em assombração, então é preciso assistir a esta cena e ver como o poder da mãe esmaga impiedosamente a tentativa de a filha de ser ela mesma. Não há espaço para a filha no mundo. Para onde a filha vai, para onde a filha se vira, para onde a filha olha, lá está a presença invisível da mãe, pronta para roubar-lhe o sentido do existir. Esta é a cena do piano.

Diante do que se disse acima, vamos pinçar, rapidamente, apenas uma assombração. O eterno embate dos filhos em achar que os pais vão se ajustar a eles, às suas necessidades afetivas e de auto estima. E o eterno embate dos pais em criar expectativas em relação a seus filhos, sem ao menos perguntar-lhes se é aquilo que realmente devem esperar deles. A expectativa anula o humano, assim como a frustrada ansiedade em relação aos pais gera dores intermináveis. Sonata de Outono, neste aspecto, se transforma num grito de alerta.

O filme coloca uma questão moderna para a mulher. A mulher profissional bem sucedida que, para conquistar e manter o sucesso, tem que se separar do lar e se distanciar dos filhos e marido. Foi isto que aconteceu com Charlotte? Ou Charlotte é apenas o modelo inevitável da mãe que transfere suas cicatrizes de mulher para a sua filha indefesa? Quando se trata de relação mãe-filha, para onde se olha, ouvem-se muitas perguntas e nenhuma resposta. Ah, sim! Há uma resposta. Quem vem primeiro, a mãe ou a filha? A mãe.

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