Publicado em Categorias Bergman, Cinema, Cultura, Literatura, ResenhasTags , , ,

Há futuro na velhice?

Por Antônio Roberto Gerin

Há muitos olhares que podemos lançar sobre este belíssimo e premiado filme de Ingmar Bergman, MORANGOS SILVESTRES (91’), Suécia (1957). Mas um deles nos parece ser o que mais traduz o filme: a ideia de finitude. Afinal, na velhice, o horizonte já não está mais lá, ao longe, diante de nós. Ele parece agora se arrastar sob nossos pés. Sentimos seu peso e sua escuridão. Se não há, pois, mais o horizonte, para onde caminhar? Eis então a pergunta. Há futuro na velhice? Ou o que nos resta é olhar para trás, em busca de lembranças de dias outrora vividos? É o que Bergman faz com seu personagem, o velho médico Isak Borg (Victos Sjörtröm). Faz Isak olhar para trás. Impiedosamente. E nos faz parecer que a vida, na velhice, acontece através das reminiscências, e que são destas imagens que surge o sentido do viver. E aí está o perigo. Porque visitar o passado pode ser, sim, perigoso. E Bergman coloca seu Isak, digamos, numa fria. É quando ele, o velho, numa viagem sem fim ao passado, se dá conta do que foi, do que podia ter sido, e no que realmente se transformou. Pobre Isak. Infelizmente, em Bergman, não há meio termo. A nudez é completa.

O que o espectador vai ver, através da primorosa fotografia em estonteantes pretos e brancos de Gunnar Fischer, ao lado de Sven Nykvist, o grande diretor de fotografia que acompanhou Bergman em vários dos seus filmes, é a história narrada em lembranças e sonhos. Isak Borg, médico veterano, receberá, na tarde daquele dia, honrosas homenagens pela vida dedicada ao exercício da medicina. Na noite que antecede a viagem, Isak recebe a visita de um sonho fúnebre. É a morte deixando seu caixão cair no meio de uma rua deserta. Ao acordar, no dia seguinte, evidente, tocado pelo significado do sonho, Isak toma a decisão. Ia de avião, mas decide ir de carro, de Estocolmo à cidade de Lund, onde receberá a honraria. Sua nora, Marianne (a bela Ingrid Thulin), grávida e infeliz, o acompanha. A viagem à Lund e ao passado são os pontos dramáticos que, no filme, se interpenetram, retroalimentando a ideia de finitude.

A decisão de Isak de ir de carro até Lund provoca uma cena memorável entre o médico e sua empregada, que o acompanha há quarenta anos. Ela não concorda que ele vá de carro. Tem que ser de avião. Mas ele quer ir de carro. A briga é revestida de tamanhas intenções e intimidades, que mais parece uma briga cotidiana de marido e mulher, o que dá à cena um tom hilário e, ao mesmo tempo, irônico. A rabugice, esta companheira inseparável da velhice, domina a cena. Imperdível!

Enfim, o carro em movimento, presente e passado vão se digladiando, em cenas comoventes, até Lund, sul da Suécia. Isak terá o dia todo para chegar a seu destino. Há tempo para que as lembranças aflorem, dando a oportunidade para que Bergman realize um dos seus mais completos filmes. Nada é à toa quando o fortuito se submete à vontade alheia. É a decisão humana, e não o acaso, que constrói a vida. E, também, a arte. Não se iluda, caro espectador, nada é de graça, e Bergman se favoreceu de uma imposição feita por ele a seu personagem, a viagem de carro, para construir mais uma de suas obras primas. Desumano, Bergman, por pura vaidade de artista, obrigou um velho de setenta e oito anos a dirigir por seiscentos quilômetros, num prazo, digamos, de doze horas! Não se faz isso, senhor Bergman. Nem em nome da arte!

Retomando a essência narrativa do filme, é o passado emergindo dolorosamente no presente. Esta é a grande sacada de Bergman. Aliás, sem abrir mão do presente, Bergman o insere no passado, contrariando a técnica do flashback. Não é um flashback como nós o conhecemos. É Isak, o velho, visitando a velha casa de campo onde sua família passava os verões, e é Isak, o velho, presenciando as cenas da época em que era jovem. Mas, eis! Os outros são jovens, ele continua velho, enfiado no passado, descaradamente, apenas como uma figura onipresente. É o passado revelando que a velhice é o estágio da solidão, quando se percebe que o que se fez está feito, portanto, não há tempo para mais nada, no máximo, ir à Lund receber a condecoração. E quando a festa terminar, voltará para sua solidão. É assim que Isak se expressa. Antevendo a morte, já é um morto-vivo.

Morangos Silvestres escancara o drama do envelhecimento. Velhice não se evita, não se esconde, ela se mostra, por inteira, sem disfarce, e a cada passo, a cada lembrança, uma face do fim nos é apresentada. Agora, sem a máscara. Não adianta mais perverter a realidade, como fizemos a vida toda. Chega o momento em que o beco, sem saída, nos aprisiona. E nesta prisão, resta a Isak apenas se perguntar: afinal, o que eu fiz da minha vida? Esta pergunta é um aviso, caro espectador. Temos que nos preparar para um dia podermos respondê-la. Sem dores, de preferência.

E para concluir, nos resta fotografar a vida. Ora! Não são as rugas que pesam. A destruição é inevitável. O lindo jovem é transformado num velho alquebrado. Se não são as rugas, o que então justifica a solidão de Isak? Eis o segredo que a vida nos reserva. Um Isak sensível, apaixonado, simpático, honesto e promissor foi caminhando ao longo dos anos em direção à frustração, ao egoísmo, à frieza do afeto, à amargura, ao isolamento social, ao julgamento implacável e apressado de si e dos outros. A face obscura da vida substitui a luz da juventude. Este é o nosso drama. Nos transformarmos em estranhos de nós mesmos. Sem saber o que somos, resta-nos querer saber o que éramos.

Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.

Publicado em Categorias Cinema, Cultura, Literatura, ResenhasTags , , , ,

Recomeçar é preciso, sempre

Por Antônio Roberto Gerin

NOITES DE CABÍRIA (118’), direção de Federico Fellini, Itália/França (1957), é um filme que nos faz oscilar entre a esperança e a desesperança. Se pensarmos que a vida não precisava ser tão complicada, nem precisava ser feita de tantos altos (esperança) e baixos (desesperança), e se pensarmos também que, decepção após decepção, vamos sempre ter que reunir forças para recomeçar, então estamos falando exatamente de Noites de Cabíria. O filme é ambientado numa Itália destroçada, recém-saída da Segunda Guerra Mundial, portanto, devastada pelo desemprego e pela miséria. Para a órfã Cabíria, prostituída por necessidade, encontrar o amor da sua vida é o único caminho para sair da situação desfavorável em que se encontra. Não há outro jeito. Noite após noite, esta é a sua busca. Encontrar quem a ame de verdade. E assim fazendo, ela se expõe a um mundo que lhe é desconhecido, imprevisível e nada honesto, e que a levará necessariamente ao encontro de mais uma desilusão. Assim são as noites de Cabíria. Uma mistura de sonho e realidade.

Cabíria é esta personagem desconfiada, mas que acaba confiando. É arredia, mas, logo em seguida, ingênua, se aproxima. Cabíria é tão complexa, e ao mesmo tempo tão óbvia, que precisaríamos de muitas palavras para explicar por que o ser humano, após acumular tantos desenganos, ainda consegue sorrir. Quando Cabíria sorri é porque a vida está sendo desenhada com os olhos da simplicidade. É assim que ela precisa enxergar o mundo a seu redor, para poder sobreviver. Mas há algo mais. Acreditar que o próximo passo vai nos levar aonde queremos ir é a essência misteriosa do nosso viver. A vida não se sustenta só pelo corpo. Temos que alimentar nossa alma. Para isso, temos que ter a clara percepção de que acreditar, sempre, está na razão direta da nossa luta pela sobrevivência. A vida se faz numa sequência de gestos e movimentos. É o que nos empurra em direção aos sonhos. Até a próxima queda, quando então o sonho se desfaz em desilusão. Eis aí Cabíria!

Cabíria é uma prostituta das noites que parecem não ter fim. Ela podia ser uma dona de casa. Podia ser uma secretária de dentista. Podia ser a dentista. No entanto, do que ela se ocupa, não interessa. O que se discute é como um ser humano, cravejado de sonhos e desilusões, ainda consegue se envolver com o próximo sonho como forma de curar a desilusão anterior. Tanto é claro este giro implacável da vida, que o filme começa com uma pequena desilusão de 40.000 liras e, depois de várias tentativas, termina com uma desilusão de 400.000 liras! Eis a voltagem da vida.

A estrutura narrativa do filme é episódica – uma sequência de episódios que vão compondo o perfil fragmentado da personagem. O mosaico vai nos fazer enxergar o todo. Cabíria vai aparecendo aos poucos, situação após situação, permitindo que a estupenda Giulietta Masina nos brinde com uma das mais raras e felizes construções de personagem de que o cinema tem notícia. Levados pelo entusiasmo, houve quem comparasse Cabíria a Chaplin. Particularmente nos omitimos em fazer tal comparação, deixando que o espectador, ele mesmo, avalie se há de fato pontos de encontro entre estas duas icônicas personagens.

Vale ressaltar o processo de criação da personagem Cabíria a partir das ações físicas. Giulietta Masina, além de sua inegável estatura de grande atriz, teve a seu favor o seu tipo físico. Estatura baixa, mas não franzina, Giulietta construiu sua personagem baseada na postura da moleca enfezada. Esta é a imagem que nos vem à mente. A passada um pouquinho mais larga que suas pernas permitem dar, os ombros arqueados, o queixo avançado e o olhar duro. E o rosto preparado para sorrir. A descrição pode não ser a exata, mas o espectador logo vai perceber que existe uma mulher sempre pronta para a luta, mas é uma luta consigo mesma, porque ela sabe que não pode cair na próxima armadilha. E aí está o problema. Ela não vai resistir em dar o próximo passo. Em uma sociedade demolida, econômica e moralmente, o passo seguinte, infelizmente, será, mais uma vez, na direção do desconhecido.

E aí teremos o próximo lance de Cabíria. É a derradeira aposta (do filme). A casa de Show de Mágicos, em uma cena imperdível, em que Cabíria se mostra por inteiro. Expõe seu sonho de mulher. Encontrar seu príncipe. Evidente, a plateia ri. Debocha. Menos um. O próximo príncipe.

Em suma. Não podemos nos esquecer de que quem mantém nossa alma viva é a esperança. O que seria de nós se não acreditássemos que a vida, em algum momento, irá nos presentear com boas doses de felicidade. Com a paz emocional e sentimental. O amor. Dinheiro. Não é isso que buscamos? Pois, é! É isso que Cabíria também busca em suas noites de Cabíria. E nos pegamos torcendo para que nossa pequena heroína encontre o que procura. Somos assim, espectadores que acreditam no final feliz. Só não nos esqueçamos de que Cabíria está colada ao mundo real, do qual Fellini, em nenhum momento, teve a intenção de tirá-la. Se a personagem pertence ao mundo real, se dele faz parte e nele transita, então Cabíria precisará confirmar seu destino. Infelizmente, ser humano que é, o recomeço é a sua sina. E Cabíria vai recomeçar. É o que nos diz o seu último olhar, na última cena. Olhar de dor e poesia.

Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.

Publicado em Categorias Bergman, Cinema, Cultura, Literatura, ResenhasTags , , ,

Quando o passado nos atormenta

Por Antônio Roberto Gerin

 O filme A PAIXÃO DE ANA (101’), direção de Ingmar Bergman, Suécia (1969), nos coloca diante de um dos grandes dilemas humanos, qual seja, a necessidade (e a dificuldade) de expressarmos o que sentimos, de trocarmos experiências com outras pessoas e, acima de tudo, de nos sentirmos próximos e seguros na companhia de alguém. Trata este filme, simplesmente, das relações. Mas que relações? De amizade? De afeto? Sexo? Negócios, o quê? Todas. Desde que duas pessoas se encontrem e se comprometam, reciprocamente, a dividir algo no cotidiano, está estabelecida a relação. Agora, quais serão as consequências dessa aproximação, aí já é outra história. E essa é a história que o filme vai nos contar.

O filme A Paixão de Ana, como o nome já revela, traz a paixão de uma mulher por um homem. Ou dois? Espera! Uma coisa de cada vez. Aqui, no recorte do filme, estamos falando de uma relação de amor entre duas pessoas para lá de adultas, portanto, que já trazem para a nova relação um histórico de vida, quer dizer, outros amores.

Andreas é um divorciado que se isolou numa ilha para lamber as suas dores de divorciado. Pouco fala a respeito, pouco se sabe da sua relação anterior. Mas nem precisa. É um homem solitário, disponível e arredio. Contraditório, portanto. Certo dia, uma tal de Ana (a sempre maravilhosa Liv Ullmann) aparece em sua casa pedindo para usar o telefone. Gentilmente ele cede. E, disponível, escuta a conversa da moça. E para piorar, transtornada com a conversa ao telefone, ela esquece a bolsa na casa de Andreas. Ele, mais uma vez disponível, vasculha a bolsa da moça e encontra a última carta que o ex-marido enviara para ela. E, novamente disponível, Andreas lê a carta alheia. E descobre que a relação de Ana com o ex-marido morto era para lá de desconfortável. Clamava por rompimento. O nome do ex-marido? Andreas.

Max Von Sydow, em mais uma atuação impecável, é o nome do ator que Bergman escolheu para interpretar o personagem Andreas. Prestem atenção! Não é o Andreas ex-marido morto. É o Andreas divorciado, que veio se isolar na ilha. Portanto, eis Ana às voltas com os seus dois Andreas, simbolizando a dificuldade de se livrar do passado, do Andreas antigo, e de se entregar ao presente, ao Andreas atual. Maravilhosamente, é desta dificuldade de nos movimentarmos, de elaborarmos o que aconteceu e de nos disponibilizarmos para a próxima relação que trata o filme. Será que o Andreas atual herdará os conflitos do Andreas antigo? Caro espectador, quem somos nós senão formiguinhas, talvez fadados a carregar, vida afora, nossas dores emocionais? Ou existenciais, para sermos um pouco mais amplos?

Esta é a questão. Vamos acumulando dores, elas passam a nos pertencer, e como não conseguimos nos livrar delas, somos obrigados a dividi-las com o outro, com o próximo com quem vamos nos relacionar. Será que o outro vai aceitar? E você? Vai acolher as dores do outro? Essa reciprocidade nos parece cruel. Ao não conseguir se livrar dos seus fantasmas, a relação entre Ana e Andreas, o atual, vai se encaminhando para mais um desastre.

Ingmar Bergman utiliza-se do close para deixar escapar para o espectador, de uma forma até invasiva, os tormentos de suas personagens.  Diria que Bergman leva a técnica do close ao extremo, como se, ao fechar um pouquinho mais a câmera, ele quisesse cair diretamente dentro da alma da personagem. E consegue. O que faz de A Paixão de Ana um filme para se ver com muita atenção e colocar em uso uma ferramenta que o espectador tem à sua disposição. A sensibilidade.

Para nos ajudar a despertar nossos sentidos, temos a magistral fotografia de Sven Nykvist. Aqui, em A Paixão de Ana, com sua fotografia poderosa e multicolorida – ah, vermelhos! -, Nykvist está mais inspirado do que nunca. Prestem atenção nas sombras, nas luzes brancas, nas vibrações de cores em tons entre claros e escuros. A título de exemplo, e para fins de aguçar a curiosidade do espectador, vamos ficar com uma única cena fotográfica. Aliás, duas!

Quase ao final do filme, há a cena da briga do casal.  Bergman contrasta dolorosamente os olhos azuis de Liv Ullmann com o vermelho-sangue do seu lenço amarrado à sua cabeça. Imperdível! Depois vem a cena seguinte, após a briga violenta, quando o mesmo lenço vermelho, agora caído ao chão, é transformado, simbolicamente, no sangue que podia ter sido derramado quando Andreas tenta acertar Ana com um machado. Uma pequena pincelada de sangue sobre o branco da neve!

A Paixão de Ana é um daqueles filmes de Bergman que teve pouca divulgação comercial, mas que não o faz menos brilhante e nos leva a compará-lo, em arte e emoção, com os melhores trabalhos da filmografia do diretor. A arte não está diretamente ligada ao comércio, como se fosse uma garrafa de refrigerante. Pode não ser vendida, nem precisa ser consumida. Mas, enquanto arte, sobreviverá para o deleite de alguém.

Ao nos brindar com mais uma narrativa sobre as relações humanas, envolvendo não só o tumultuado encontro entre um homem e uma mulher, mas principalmente revelando como reagimos em relação a nós mesmos, o que irá, com certeza, afetar o outro, Bergman nos faz ver, com crueza, que nossos comportamentos perpassam por um universo de energias produzidas fora do nosso controle e vontade. É como se navegássemos à deriva, sem saber o que nos espera atrás da próxima onda. Tendemos a esperar sempre pelo trágico. E este é justo o mistério que nos envolve. E nos atormenta. A grande capacidade que temos de fazermo-nos vítimas de nós mesmos. Vitimando, com isto, o outro.

Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.