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O amor em tempos de guerra

Por Antônio Roberto Gerin

O clássico CASABLANCA (102’), direção de Michael Curtiz, EUA (1942), é considerado um dos filmes mais romântico já realizado. O filme coloca o casal Ilsa e Rick, interpretados pela atriz sueca Ingrid Bergman e pelo ator norte-americano Humphrey Bogart, no altar dos sonhos de todo amante cujo íntimo desejo é experimentar uma verdadeira história de amor, mesmo que esta história tenha um fim. Mas vamos já avisando. O amor em Casablanca não é aquele amor arrebatador. Aquele amor beirando o impossível, a que estamos acostumados a assistir em filmes em que os apaixonados, para viverem sua paixão, são capazes de mover montanhas. Em Casablanca, o máximo que se move é uma taça de champanhe, ao som da espetacular canção As Time Goes By.

Esta falta de arroubos passionais ocorre porque há outras questões urgentes a serem consideradas. O amor em Casablanca se aproxima do amor perigoso, em que cada frase e cada gesto são colocados numa balança para posterior avaliação, e, neste caso, a balança é a devastadora ferocidade da Segunda Guerra Mundial, que tem em Casablanca uma pequena amostra do que uma guerra insana pode produzir. Desespero, solidão, injustiça, bandidagem, corrupção e, de quebra, o reencontro de um amor antigo, saído da outrora Paris banhada de luz e sonhos. O que se vê agora, na romântica Casablanca, é este amor, feito de lembranças e saudades, submetido a novos tempos, e que dificilmente poderá ser revivido.

O filme é ambientado na capital marroquina Casablanca, a esta época sob o domínio do governo provisório francês de Vichy, aliado, certo, da Alemanha. Portanto, por ser Casablanca um território francês, era para onde os parisienses fugiam, em longa rota, na esperança de conseguir um visto para embarcarem num avião rumo à Lisboa, de onde partiriam, em navios, para os Estados Unidos. É em torno desta ânsia de fuga que gira a construção do roteiro.

Rick, um norte-americano metido em confusões mundo afora, acaba também ele em Casablanca, onde monta seu famoso café, frequentado por oficiais alemães, por refugiados à procura de vistos de saída, e até por bandidos e larápios, subprodutos sociais da guerra. E é neste bar, o Rick’s Café, que entra, à procura também de vistos para comprar, o casal Ilsa e Viktor Laszlo (Paul Henreid). Ela acaba entrando onde? No café do seu antigo amor parisiense! É a partir daqui que o filme ganha nuances românticas, e muita nostalgia.

A narrativa se desenvolve como se fosse um jogo de xadrez. Cada pedra que se movimenta gera uma ansiedade, em doses cada vez mais fortes, num quebra cabeça alucinante, em que cada gesto é pensado, sem que se desperdice um olhar, um sorriso, um aperto de mão, nada é secundário, ali tudo tem que ser rápido, tenso, o tempo urge, o próximo avião vai partir, e para que se consiga embarcar é preciso movimentar a máquina da corrupção, única senha para a fuga.

E assim nós chegamos ao que interessa no filme, a relação de amor entre Ilsa Lund – Ingrid Bergman no auge da sua beleza – e Rick Blaine – Humprhey Bogart finalmente alçado à categoria de galã de Hollywood.

Apesar de ser quase unanimidade como o par romântico do cinema, há que se fazer algumas considerações. O peso histórico do filme é asfixiante, mesmo porque o filme foi rodado em 1942, no auge da guerra, quando o domínio alemão era para lá de assustador. E este peso recai sobre Viktor Laszlo, recém-chegado à Casablanca, símbolo da resistência, portanto, um personagem de imensurável importância ideológica.

Viktor Laszlo é casado com Ilsa. Enquanto Viktor passa um ano no campo de concentração, Ilsa Laszlo conhece e se apaixona pelo irresistível Rick Blaine, numa Paris ainda livre e glamourosa. Mas Paris logo cai nas mãos dos alemães e o par romântico é obrigado a se desfazer. Por causa dos bombardeios? Porque neste exato momento, Viktor foge do campo de concentração para se reencontrar com a esposa. Pronto. Está formado o quiproquó romântico, um novelo terrível que o filme vai ter que desenrolar. E o filme, feito às pressas, sob a pressão política do momento, teve, sim, uma certa dificuldade em desenrolar este novelo. E é disto que vamos falar rapidamente.

O flashback é um dos recursos mais utilizados no cinema e seu efeito pode enriquecer, esclarecer, acentuar, enfim, é de utilidade funcional na estrutura narrativa de um filme. No caso de Casablanca, serve como memória afetiva, quando o objetivo é mostrar e justificar os momentos românticos vividos pelo casal, em Paris. No entanto, observamos que os flashbacks são muito contidos e formais. Talvez falte aquilo que é essencial no amor romântico, a loucura.

Umberto Eco, escritor e filósofo italiano, reclamou da falta de verdade das personagens. Talvez Umberto Eco sentisse falta dos impulsos verdadeiramente românticos, ausentes em Paris, e agora necessários para fazer de Casablanca a continuidade da paixão iniciada na cidade luz. Mas Casablanca vivia sob o terror do medo, então não cabia, apesar das magníficas atuações de Humphrey e Ingrid, se dedicar a reconstruir esta paixão. O casal Ilsa e Viktor precisa fugir, e dependem da vontade de Rick, que detém, escondidos no piano, os salvos condutos milagrosos. E aí, roteiristas (são quatro) e diretor? Como resolver a questão? Quem vai ficar com quem?

Diz-se que o diretor Michael Curtiz, na tentativa de resolver o problema, pediu a Ingrid Bergman (Ilsa) que tivesse uma atitude amorosa ambígua em relação aos dois pretendentes. E entendemos, dadas as dificuldades, ter sido uma solução, se não criativa, bastante operacional do ponto de vista de resolver a verossimilhança da narrativa. Sem os arroubos, não caberia a Rick a doce felicidade de fugir com sua episódica amada. A ideologia, neste caso, falou mais alto, mantendo, assim, a coerência da trama.

O filme foi sucesso absoluto e ainda é. Inigualável. Era para estrear em meados de 1943, mas quando as tropas aliadas invadem e retomam Casablanca, em 8 de novembro de 1942, Hollywood, leia-se Warner Brothers, apressa a estreia, que ocorreria em 7 de dezembro de 1942, portanto, um mês após a libertação de Casablanca. A guerra foi o terreno fértil para construir esse magnífico filme, mas, pode-se também afirmar, talvez com uma certa margem de erro, que a guerra foi o limite de Casablanca, muito diferente de E o Vento Levou, em que a Guerra Civil Americana levou ao extremo os afazeres românticos entre Scarlet O’Hara e Rhett Butler. São dois pesos e duas medidas, o que torna péssima a comparação, pelo que pedimos desculpas. Mas, na imaginação sem limites do espectador, o que fica é a ideia de que o amor em tempos difíceis pode ser mais saboroso, e mais excitante, mesmo que passageiro. Em suma, aprendemos que o amor precisa de algo mais que a simples fantasia. Ele precisa da verdade. Mesmo sendo ficção.

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A Fonte da Tragédia

Por Antônio Roberto Gerin

 Com o pungente filme A FONTE DA DONZELA (89’), Suécia (1960), Ingmar Bergman mais uma vez recua no tempo e retorna às florestas sombrias da Idade Média para falar de religião e dos seus subprodutos, o pecado, a culpa, a ignorância, o medo da morte, a submissão à fé e, como condição humana perfeita a ser alcançada, a pureza. Ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1961, este belo filme apenas compõe a sequência de temáticas obsessivamente trabalhadas por Bergman na sua ânsia de artista por compor um mosaico fiel do comportamento humano. E Bergman, espertamente, entende que, para romper a máscara do homem e deixar que ele se revele diante de suas câmeras, é necessário inseri-lo numa estrutura de tensão. É preciso levá-lo ao limite. E nada melhor que escolher o ambiente familiar para alcançar esse efeito de tensão. E de destruição. É o que vamos ver, infelizmente, em A fonte da Donzela.

Um casal de cristãos fervorosos, oriundos de uma terra de pagãos nórdicos, pede que sua filha adolescente, de apenas 15 anos, Karin (Birgitta Pettersson), leve velas até a igreja do povoado e as acenda em honra à Virgem Maria. Uma virgem levando oferendas à outra virgem, esta é a sinopse sucinta do filme. Mas dentro desta rápida pincelada se escondem as mais devastadoras cores que desenham o rosto desfigurado da alma humana.

O ideal de pureza a ser alcançada pela donzela que promete sua virgindade ao casamento se contrapõe à serviçal da casa, Ingeri (Gunnel Lindblom), grávida de relação forçada, portanto, impura. Eis o contraponto. O desejo está latente na donzela. Ela deseja, mas apenas ri, nervosa, quando sente o fogo arder em seu ventre. A serviçal Ingeri não tem tempo para realimentar seus desejos. Eles já se transformaram em sofrimento. Seu tempo é dispensado para o ódio, e é aí que ela recorre às suas origens nórdicas, ao deus Odin, que, por ser o guardião da honra, tudo permite, inclusive a vingança. E é neste estágio humano que as duas, a pura e a impura, tomam o caminho do povoado.

Tanto através da fotografia de Sven Nykvist quanto nas pungentes interpretações dos atores, podemos acompanhar a narrativa em seu estado de tensão crescente, antevendo já, a cada sequência, a chegada da tempestade. Sentimo-nos sufocados pela selvageria de Ingeri e pela inocência quase absurda de Karin. E o inevitável desfecho, na linhagem dramática de Bergman, não podia ser diferente. As forças opostas se encontram e desse encontro surge uma das mais belas interpretações de sofrimento de um estupro. É aqui que convocamos a atenção do espectador.

A cena do estupro é assinada com mão firme por Bergman, conduzida de uma forma não agressiva, mas tão expressiva que bastou a ação de um dos pastores forçando a abertura das pernas de Karin para que o outro a penetrasse para destilar no espectador toda a injúria do ato infame.

E a cena a que nos referimos vem logo a seguir. Terminado o ato do estupro, e tendo todos já se colocado de pé, veremos uma Karin desnorteada, caminhando a esmo, o rosto atarantado, enquanto seu útero arde vulcanicamente em dores terríveis. É uma cena que dura menos de um minuto, mas um primor de interpretação de Birgitta Pettersson, universalizando, naquele instante, a dor de milhões de mulheres que sofreram – e sofrem – do abuso.

À medida que Bergman vai afunilando a tensão narrativa, o espaço interior por onde as personagens se movimentam vai ficando cada vez mais estreito. E insuportável. Chegará o momento em que nada mais restará às personagens senão supurarem suas dores. E suas maldades.

É o que acontece com o pai, Töre (Max Von Sydow), atormentado pela necessidade de vingar a filha, preparando-se para cometer o pecado da vingança. É o que acontece com Ingeri, ao gritar seu ódio por Karin, rompendo assim o grito da inveja. É o que acontece com a esposa, Märeta (Birgitta Valberg), ao revelar seu ódio pelo marido, Töre, desejado pela filha, Karin. Rompe-se, ali, o grito do ciúme.

Vale ressaltar uma das cenas finais, em que Töre esbraveja contra um Deus que se cala diante do pecador, que nada diz, como se não existisse. A cena traz um dos temas recorrentes na filmografia de Bergman, o silêncio de Deus. Será que Deus, para existir, teria que nos falar?

O grande dilema é que o pecado bate à porta, insistentemente. Bergman constrói perigosamente a imagem do homem na sua luta incessante para se livrar do pecado, sem, talvez, se dar conta, o homem, de que não é o pecado o seu grande problema, já que Deus estará sempre pronto para perdoar. O problema é a culpa. E culpa não se perdoa. Porque a culpa está ligada à natureza humana e não à natureza divina. É como se a culpa estivesse fora do alcance de Deus. Esse é o homem solitário de Bergman.

Baseando-se numa balada medieval, mais uma vez Bergman constrói um filme carregado de significados e simbolismos, onde a relação do homem com o homem vem permeada de códigos incompreensíveis, cujos significados só passamos a conhecer quando deflagrado o conflito. No entanto, os códigos continuarão indecifráveis, para que novas tragédias sejam preparadas. A única coisa que pressentimos é que alguém sempre terá que mover a desgraça. E para isso, alguém dentre nós, à revelia, será o escolhido. Esse é o roteiro da vida.

Cada vez que assistimos a um filme de Bergman, mais nos sentimos indefesos, e confusos, porque podemos controlar as imagens que nos são apresentadas, mas não as forças que motivam estas imagens. É provável que nem mesmo Bergman tivesse esse controle. E ele não tinha. Nem ele, nem ninguém. Por uma razão simples. Somos perigosamente humanos.

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O inesgotável prazer de se viver a vida

Por Antônio Roberto Gerin

Talvez seja este um filme que mereça ser assistido deitado no tapete, a cabeça acomodada sobre duas ou três almofadas. Ou no sofá mesmo, de fato, mais cômodo para se comer pipoca enquanto vamos degustando o saboroso ZORBA, O GREGO (142’), direção de Michael Cacoyannis, Grécia/EUA (1964). O filme é tirado do belíssimo romance homônimo do escritor grego Níkos Kazantzákis (1883-1957), publicado em 1946. Apesar do convite à descontração, motivado pelo carisma do protagonista Zorba, o certo é que o filme nos enfia miseravelmente dentro da realidade ao nos fazer voltar à velha máxima de que se quisermos experimentar sabores diferentes nesta vida, temos que nos entregar a umas boas doses de loucura. E loucura, neste caso, é se voltar para o homem primitivo, cuja essência está em se entregar, sem regras e convenções, aos mais puros e, às vezes, incontroláveis desejos. É o retorno ao simples, ao que é e não ao que queremos que seja. É o retorno à mãe terra, e nos parece que só a mãe terra está autorizada a nos livrar das amarras sociais que nos aprisionam e nos desfiguram. O filme, em suma, é um convite à liberdade, baseada na consciência de que o existir não cabe em apenas um ponto de vista. E este convite, quem nos faz é o exuberante Zorba!

Um escritor inglês viaja para a ilha de Creta, na Grécia, para retomar a exploração de uma mina de linhito que pertencia a seu pai. Prestes a embarcar no navio que o levaria à ilha, uma forte tempestade interrompe a partida, motivo suficiente para que Basil, o escritor, seja abordado, de forma inusitada, por um homem simples, aspecto de camponês, riso expansivo, nascido grego, e que logo se apresentaria como sendo Zorba. Alexis Zorba, incorporado pelo não menos exuberante Antony Quinn.

A abordagem é desprovida de qualquer senso de etiqueta e de rapapés sociais. Zorba entra na vida do interlocutor sem pedir licença. Não há em suas atitudes o pudor das reticências, muito menos seus gestos obedecem a decorados sociais. A aproximação é tão vívida que não resta ao inglês outra alternativa senão dar as boas vindas ao intruso. É o primeiro encontro entre Zorba e Basil, e os dois precisavam mesmo se encontrar para que a narrativa começasse a fluir. Eis o filme condensado nesta primeira cena. Assistam-na com atenção, porque é desta relação tensionada na cumplicidade e no companheirismo entre o grego e o inglês que surgirá a beleza poética do filme.

E assim, vencidas as desconfianças, e contratado pelo inglês para ser seu braço direito na exploração da mina, Zorba embarca com seu novo chefe para Creta, sem saber, ambos, o que irão encontrar pela frente. Perguntamos. Precisa mesmo saber? Ora, se a vida é para ser vivida, o próximo passo poderá muito bem ser uma nova descoberta. Esta é a razão da ousadia. Estarmos sempre preparados para enfrentar o desconhecido. Sermos destemidos e ao mesmo tempo otimistas, eis as condições para não termos que voltar ao nosso berço esplêndido, ornado de medos e inseguranças.

Vamos logo à definição da personagem que dá título ao filme. Eis. Zorba, o epidêmico! Estamos falando de uma personagem complexa, então esta nos parece ser a melhor definição de Zorba, dada por ele mesmo, de forma jocosa e sublime. Mas, por que epidêmico? Vamos colocar a resposta na boca do próprio interessado, quando ele diz ao escritor, antes de embarcarem para Creta. “Epidêmico, porque onde quer que eu vá, dá tudo errado”. Em seguida, Zorba despeja no rosto do encantado inglês uma sonora gargalhada. Esta desconexão com o mundo construído pelas civilizações é a base existencial da personagem.

O único ator predestinado a interpretar Zorba parece mesmo ser Anthony Quinn. Não haveria outro. Ator e personagem se misturam de forma tão simbiótica que passamos a aceitar, sem o perceber, que estamos diante de uma pessoa real, de carne e osso. É, sem dúvida, uma daquelas composições de personagem que se eternizam em nosso imaginário. E que desejaríamos que estivesse sentado à nossa mesa, que fosse nosso colega de faculdade, até nosso chefe, para lembrarmos que liberdade não é sinônimo de desrespeito e agressão, e sim um estado de espírito que nos disponibiliza inteiramente para a vida.

E temos também que falar de Alan Bates, no papel do escritor inglês. Ele é convincente e preciso nos seus maneirismos contidos e, ao mesmo tempo, pronto para explodir e se libertar das suas origens britânicas. Será, desde o começo, provocado pelo furacão Zorba, até explodir lá na frente, reencontrando-se na sua origem grega.

Não menos decisivas são as figuras femininas, a começar pela premiada Lila Kedrova, ganhadora do Oscar de melhor atriz coadjuvante, que deu voz e corpo a Madame Hortense, a Bouboulina. Esta sim atendeu aos desejos de todos os homens, e se viu abandonada por cada um deles. O último sopro de vida ela encontra na força arrebatadora, floreada de galanteios, do homem que a trata como a última das rainhas. Mas Zorba também quer abandoná-la. E ela o percebe, preferindo a morte. Mas, cá pra nós, Zorba, delicadamente, cumpre o seu papel de rei até o fim.

E a figura trágica e silenciosa da viúva, desenhada com perfeição pela bela atriz Irene Pappás, que faz a personagem desfilar sua exuberante e sensual beleza pela aldeia, onde todos os homens a desejam, e onde todos os homens, por se verem rejeitados, a odeiam. Quando ela dá sinais claros de querer acolher os desejos de Basil, começa a rodar a engrenagem da tragédia, expondo ao espectador a miserabilidade tirânica e machista de uma longínqua aldeia, na ilha de Creta. Esta aldeia, nas mãos do diretor Michael Cacoyannis, torna-se, para nós, universal.

A fotografia é tão limpa, tão mediterrânea, que nos dá a impressão de que o filme foi lavado com um daqueles produtos de limpeza que deixa tudo branquinho. E a música, tirada da alma grega por Mikis Theodorákis, vem para traduzir a dor de sermos humanos incompletos, mas que se completa na famosa cena final, a da dança, o reencontro com as origens, seja na dor seja na alegria.

Enfim, tudo no filme precisaria ser comentado, um parágrafo para cada sequência de cenas. Não há espaço. Mais breve, então, será convidar o espectador para que ele mesmo se delicie com esta personalidade ímpar, que contagia a tela e nos irradia a ilusão do ser humano que gostaríamos de ser. Ou de ter sido. E fica também o convite para, na sequência, assistirem a Sociedade dos Poetas Mortos, quando logo vão perceber que o professor John Keating é da mesma linhagem de Zorba, cuja disposição pela busca da eterna liberdade veste a personalidade de ambos como um terno de corte perfeito.

Zorba, sensível que é, faz a leitura rápida da alma humana. Mas ele não entra em conflito com a sua sensibilidade. Quando ele está prestes a mergulhar na dor, há uma explosão de movimentos efusivos que o redireciona para o sentido bom da vida. Ele apenas acolhe a dor humana com o manto da compaixão. Esta é a altura máxima que um ser humano privilegiado pode alcançar. O que nos leva a concluir que talvez Zorba seja, para nós, nossa alma perdida.

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