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Tudo não passa de uma série de mentiras!

Por  Antônio Roberto Gerin

O icônico filme de Ingmar Bergman, GRITOS E SUSSURROS (90’), Suécia (1972), nos remete a um mosaico de sensações perturbadoras e sentimentos imprecisos, os quais vamos experimentando ao longo de uma sequência de cenas de gritos e sussurros. Por trás de cada sussurro, há algo que não é revelado. Por trás de cada grito, uma dor que insiste em ficar calada. É a inconfundível percepção de que a vida nos arrebata para o nada. Bergman, em noventa minutos, faz um laboratório de conflitos da existência humana. Ele parece nos colocar frente à nossa terrível incapacidade de compreender nossos próprios movimentos. E esta incompreensão nos sufoca.

Agnes, morando numa suntuosa casa de campo da família, padece de doença crônica e é assistida pela serviçal Anna, de quem recebe cuidados e afeto. Eventualmente, recebe a visita das duas irmãs, Maria, casada com Joakim (Henning Moritzen), e Karin, casada com Fredrik (Georg Ârlin). O filme se situa no momento em que a saúde de Agnes piora. É neste clima de doença e morte que as três irmãs se reúnem pela última vez.

Ao confrontar presente e passado, vão emergindo três personalidades constituídas dentro de uma mesma família, ou, mais precisamente, três mulheres refletindo a herança maldita de uma mesma mãe. Bergman não esquece a mãe para explicar o adulto. Aqui, em Gritos e Sussurros, ele começa a discutir essa relação destrutível entre mãe e filha, e que ele viria a aprofundar mais tarde, em Sonata de Outono, 1978.

A estrutura existencial do filme se assenta, portanto, no afeto, um exercício humano básico, mas que, mal desenvolvido, pode vir a ser devastador na vida adulta.

Agnes (Harriet Andersson) passa a vida procurando o afeto que lhe foi negado pela mãe. E mesmo assim, purgando suas dores, relembra a mãe com carinho e respeito. Tem na compreensão o álibi para a sua infelicidade.

Maria (Liv Ullmann), presa emocionalmente à infância, exige das pessoas com quem convive excessos de afeto para poder fazer valer sua condição de filha preferida. E, como a menina mimada, ela oferece o afeto para logo em seguida pedi-lo de volta. O afeto é dela, propriedade sua. Como uma barra de chocolate.

Karin (Ingrid Thulin), a terceira irmã, se refugia na frieza como forma de negar sua necessidade de afeto ausente. Não tenho necessidade nenhuma de ser perdoada, proclama Karin, que irá protagonizar uma das cenas mais terríveis – e perfeitas – do cinema. Karin representa a dor petrificada. Dor que destrói. Mas ela encontra na razão o controle do seu viver. É a lucidez que a mantém longe do abismo.

E, por fim, Anna (Kari Sylwan), a criada que, ao perder a filha ainda criança, canaliza sua dor e seus afetos para a enferma Agnes. Mesmo esse afeto, que aparenta ser verdadeiro, é ele construído em cima de uma história psíquica e não fruto espontâneo de um mero exercício humano.

Assim tecemos o painel existencial das três irmãs, evidente, existências perturbadas que vão explodir em sofrimentos e desilusões.

E para traçar este painel terrificante, e sumariamente irônico, em exuberantes vermelhos e brancos, o artista Bergman se vale das poderosas armas que possui. E aqui vale descrevê-las, rapidamente, uma a uma. É o Bergman dominado pela sua ganância estética, da qual faz, neste magnífico trabalho, sem pudores, uso absoluto.

Sua rigorosa preparação de atores, aprendida e treinada nos palcos dos teatros suecos, é trazida para o filme em dimensões quase épicas, como se ele ousasse colocar o teatro dentro do cinema, nos parece, com um único objetivo. O de que seu filme Gritos e Sussurros tomasse proporções humanas assustadoras.

Esta impressão é reforçada pelos demorados e fechadíssimos closes sobre o rosto das atrizes, deixando que os movimentos faciais exalem os sentimentos e as emoções que vão desenhar o horror da condição humana. A próxima dor pode explodir num simples olhar, como a cena de Agnes, logo no início do filme, supurando desesperadamente sua dor física. É teatro vivo, em quadros cinematográficos. Com exageros, talvez. Mas é o demoníaco Bergman se apoderando dos recursos técnicos da arte do cinema com a finalidade de eternizar a vida em momentos que só são oferecidos pelo teatro, essa arte viva do instantâneo.

Os cenários, de uma exuberância massacrante, são construídos pelo excesso de detalhes, em formas e cores, que vão compor a essência dominante da matéria rica sobre a alma aprisionada. Tudo é aparência, nos diz Bergman, com seus cenários cuidadosamente opressivos.

A outra arma, muito conhecida, e que inclusive levou Sven Nykvist a ganhar o Oscar, é a fotografia, de um vermelho descarado que, como diria o próprio Bergman, retrataria as camadas da alma humana.

E os figurinos? Exuberantes, assustadores, desenhados por mãos mágicas, onde predominam os tons brancos.

E, para finalizar, vamos falar dos homens. Como se percebe, eles têm presença quase inexistente. Para alguns, nenhuma importância. Parece-nos que é o contrário. São tão importantes que não precisam aparecer. É a mulher que se debate dentro de um sistema construído e imposto pelo homem, portanto, quem tem que gritar é a mulher! Não há gritos e sussurros para homens neste filme. Mesmo para Joakim, que tenta o suicídio por causa da traição da esposa, Maria. Ora, caro espectador, nesse sistema de códigos de honra, o que pesa mais, a traição da mulher ou a perda da posse da mulher para outro macho?

A estrutura social colocada acima nos leva para onde? Para um tema que é muitíssimo caro a Bergman. O casamento. Este é o pano de fundo do filme.

O que é o casamento senão a oportunidade para exercitar o afeto? Pois, então. O vazio criado pela ausência de exercícios de afeto gera a mentira. Esta é a razão, nos parece, da falência dos casamentos bergmanianos. Para os infelizes, de lado a lado, só restam duas atitudes. Para o homem, o domínio da frieza; para a mulher, a lucidez do grito, como faz Karin, ao proclamar que “tudo não passa de uma série de mentiras!”. Há quem grite, há quem sussurre, mas, no final das contas, a infelicidade é a mesma.

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Rápido, que o café vai esfriar!

Por Antônio Roberto Gerin

O premiado filme FILHO DE SAUL (107’), com direção de Lázsló Nemes, Hungria (2015), entra no campo de concentração de Auschwitz para oferecer ao espectador uma visão original (e terrível) do holocausto. É verdade que já nos acostumamos a assistir a filmes que nos colocam dentro de guetos judaicos; ou que nos fazem acompanhar levas de judeus amontoados à força em caminhões e trens, rumo aos campos de concentração. Ainda nos choca a visão das filas lentas e mórbidas de judeus, nus de preferência, a caminho da morte. Mas onde é que eles são executados? Nós sabemos. Nas câmaras de gás. Esta é a surpresa e a ousadia de Filho de Saul. Ele nos leva para dentro destas câmaras para nos mostrar os horrores e a absurda tragédia fabricada pela insanidade humana.

O filme relata o desespero de Saul (Géza Röhrig) na sua incansável busca para enterrar um menino. Saul, dentre outros judeus homens, é um dos escolhidos pelos alemães para formar o grupo dos Fonderkommando, equipes encarregadas pela limpeza das câmaras de gás e pelo transporte dos corpos para os fornos de incineração, o crematório.

O recorte narrativo no trabalho diário de Saul se dá quando ele, ao entrar na câmara de gás para recolher os corpos, descobre que um menino ainda está vivo. Sem hesitar, pega-o para si, tentando salvá-lo. Mas o impedem, e após consumarem a morte do menino, com a aplicação de injeção, levam-no para o laboratório, para autópsia e estudo, afinal, aquele corpo havia resistido aos horrores do gás!

Mas Saul não desiste. Procura o médico encarregado da autópsia, também judeu do Kommando, e tenta resgatar o menino com o objetivo de dar a ele, com a ajuda de um rabino que recitaria o kadish, um enterro decente, dentro das tradições judaicas. O médico concorda em ceder o menino, escondendo-o, até que Saul consiga retirá-lo do laboratório. É uma missão quase impossível. Aqui então começa a saga de Saul. E do filme.

Enquanto Saul vai executando seu trabalho, ele estará sempre à procura de um rabino entre os judeus a caminho das câmaras de gás. E é esta busca nervosa e silenciosa pelo rabino, numa sequência de insucessos e desencontros, que permite ao filme nos colocar em contato direto com a terrível realidade do extermínio dos judeus.

A grande sacada do diretor está na estética escolhida para mostrar o que acontece dentro das câmaras de gás. E arredores. A câmara filmadora não dá sossego ao espectador. Ela acompanhará Saul o tempo todo, enquanto durar o filme, de perto, em closes sempre nervosos e tensos, focando basicamente seu rosto, ora por trás, às costas, ora fazendo-se dos olhos de Saul. Às vezes, a câmera se afasta um pouco, mas no máximo para pegar o dorso de Saul. Parece que os enquadramentos são feitos para que o espectador seja poupado de ver abertamente os horrores de corpos nus e dos sangues espalhados pelo chão. Tudo é muito rápido, no ritmo do caminhar nervoso de Saul. Mas o suficiente para que o espectador, talvez numa mórbida curiosidade, tente, o máximo que pode, ver o que está acontecendo ao redor. Mas a câmera não para, como se ela mesma não tivesse coragem de mostrar as brutalidades e tentasse poupar Saul e, com ele, o espectador.

Cabe mencionar a maquiagem de Saul, seu rosto quase transformado numa máscara insensível, inexpressiva, e ao mesmo tempo aterrorizante. Ela determina, silenciosamente, o espanto da tragédia.

E a questão que se coloca vem do título do filme. Filho de Saul. O menino, que é a razão dos seus movimentos e que faz a narrativa acontecer, é ou não é seu filho? Fica aí a imagem simbólica que retrata a realidade de um judeu que sabe que vai morrer e que tem no desespero a última chance de fazer valer suas tradições religiosas e sua revolta contra a história humana que o obrigou a estar ali, naquele lugar, naquele instante. Se é ou não filho, fica para o espectador tecer suas conclusões. Qual seja a conclusão, o horror será sempre o mesmo.

O que fica ecoando, após o término do filme, é o chavão gritado para os judeus, na antessala da morte. Enquanto eles vão tirando suas roupas e colocando-as nas centenas de cabides espetados nas paredes, a voz vai apressando-os e fazendo-os acreditar que eles vão continuar vivendo. A voz prepara o engodo da rotina. Convida a todos para tomarem café na outra sala, a “tal sala”. Só que eles não podem demorar, porque senão o café vai esfriar. Daí, o mantra da morte. “Rápido, que o café vai esfriar!”

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O Silêncio de Deus

Por Antônio Roberto Gerin

 Ingmar Bergman retoma em LUZ DE INVERNO (107’), Suécia (1963), um dos temas recorrentes em sua filmografia. O silêncio de Deus.  O filme faz parte da “Trilogia do Silêncio”, juntamente com outros dois filmes, Através de um Espelho e O Silêncio, nos quais Bergman aborda mais demoradamente a temática religiosa, e o faz de uma forma tão consistente que é como se ele, Bergman, utilizando-se da arte, quisesse entrar em contato íntimo com Deus. Quem sabe, ter até uma conversinha com Ele. Mas, infelizmente, esta intimidade não vai além da crise de fé, porque Deus, por mais que Bergman, através dos seus personagens, grite chamando por Ele, esse Deus continuará silencioso.

Tomas Ericsson (Gunnar Björnstrand) é um pastor de uma pequena, fria e distante comunidade no interior da Suécia, mergulhado em profunda crise que, se a princípio é vista como crise de fé, podemos acreditar que ele está passando mesmo é por uma crise existencial. “Afinal, a vida, vale ela a pena ser vivida?”. Esta pergunta nós tiramos do dicionário existencialista do filósofo Albert Camus. E ela parece servir como uma luva para o discurso, em tom depressivo, do padre.

A questão mesma que se coloca, e que nos parece subjazer a todo este questionamento, é a mais óbvia possível. Há vida longe de Deus? Ou a vida só pode ser vivida perto Dele? Mas como viver perto de Deus se ele não fala? Se ele silencia? Como se não existisse?

O filme começa com a longa cena em que o padre celebra a cerimônia religiosa para uma igreja praticamente vazia, e o filme termina com ele também celebrando a liturgia, mas agora para uma igreja totalmente vazia. A crise de Tomas Ericsson parece afetar a fé dos seus paroquianos. Desconfiados, eles parecem não querer atender aos chamados dos sinos. Afinal, o sino, caro espectador, é a voz do padre, não é a voz de Deus.

Em nome da clareza, para que o espectador possa apreender com mais profundidade as crises de Tomas Ericsson, o roteiro nos apresenta vários personagens que irão interferir, ao longo da narrativa, nas dúvidas existenciais do pároco. E Bergman não se prende apenas à questão religiosa. Afinal, somos também feitos de outras partes, mais terrenas.

A primeira é o amor. E se fala muito dele. Com razão, posto que o amor faz parte da crise. Marta (Ingrid Thulin), sua amante, que não acredita lá muito em Deus, tenta viver longe Dele, mas é infeliz. Enquanto mantém uma relação tumultuada com Marta, Tomas não esquece a esposa falecida, com quem mantinha uma relação de estranha dependência. Ao fazer o pároco fincar os dois pés na fé, a esposa apenas mascarava as fragilidades espirituais do marido. Morrendo a esposa, Tomas fica desprotegido, e tudo vem à tona. Dentro desse quadro de crise, Tomas vai oscilar entre as memórias da piedosa esposa e a presença incômoda da profana amante. Amor e fé se misturam, e ambos são fontes da mesma crise.

O personagem Jonas Persson (novamente Max Von Sydow) vem para ilustrar uma das questões que mais nos atormenta. O sentido da nossa insignificância.

Jonas procura o padre para revelar suas angústias com a notícia de que a China está desenvolvendo a bomba atômica. A qualquer momento podemos ir para os ares! Então, pra que viver? Pode-se pensar que Bergman queira nos trazer a preocupação com a tensa Guerra Fria, à época, década de sessenta, em seu auge explosivo. Sim, eram dias de muita tensão. Mas Bergman parece estar mais preocupado com a insignificância humana diante do abandono de Deus. A China está desenvolvendo a bomba e Deus simplesmente não faz nada! Mas Tomas Ericsson, mergulhado ele em suas crises, não ampara as angústias de Jonas Persson. Tudo bem. Jonas sai da igreja e vai se suicidar.

E, por fim, vale discorrer sobre o terceiro personagem que permeia a narrativa, o ajudante do padre, Algot Frövik (Allan Edwal). Ele tem problemas físicos sérios, limitantes. E coloca para o padre uma questão de fé. Lendo a Bíblia, Algot descobre que se dá muita ênfase às dores físicas de Jesus em seus momentos finais, até a crucificação. Ora, diz o sacristão, Jesus sofreu, fisicamente, apenas umas quatro horas, enquanto eu sofro a vida toda, e, com certeza, neste caso, meu sofrimento é até maior do que o de Jesus Cristo! Então, conclui o sacristão, não é a dor física o sofrimento de Jesus. A dor de Jesus é a solidão, uma vez que ele chama pelo pai e o pai silencia. Deus, meu Deus, por que me abandonaste? – grita Jesus, sentindo ele também, na pele, o silêncio de Deus. Eis a bela humanização de Jesus.

O roteirista Bergman oferece ao diretor Bergman o veredicto da nossa condição humana. O silêncio de Deus nos faz insignificantes. Porque nos desampara.  Nos deixa indefesos. Cravejados de culpa. Então, como Tomas Ericsson em algum momento declara, se não existir Deus, não existirá o abandono. Seremos livres! Será? Bem. Quem poderia nos dar a resposta seria Deus. Mas Ele silencia. Como se não existisse! Resta-nos, então, ter fé.

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