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A maternidade é um dever da mulher

Por Antônio Roberto Gerin

 “Ellius espera que sua esposa cumpra com o seu dever”. Quem poderia ser o autor desta sentença? Ora, o próprio, o Ellius! Que dever? A maternidade. É contra este milenar dever, ao qual ela parece estar condenada, que a mulher tenta se rebelar. E se reconstruir. O desejo de se ter filho é um impulso natural, torná-lo obrigação gerará subprodutos perigosos. A maternidade não pode ser uma mercadoria social. Pois é disto que trata o tocante filme de Ingmar Bergman, NO LIMIAR DA VIDA (80’), Suécia (1958). É a mulher colocada diante dos dilemas da maternidade.

O filme retrata o drama de três mulheres internadas numa enfermaria de uma maternidade, onde cada uma delas terá a oportunidade de apresentar sua relação com a gravidez. Os dramas se entrelaçam dentro do mesmo quarto, numa rotina aparentemente tranquila, enquanto histórias de vida díspares vão desenhando o desfecho para a mesma pergunta: ser ou não ser mãe? Há aquela que quer ser mãe, mas perde o bebê. Há aquela que não quer ser, e também perde o bebê. E há aquela que não quer o bebê e não o perde. Este é o jogo de xadrez que Bergman, por oitenta minutos, tenta jogar com o espectador. No perde e ganha, sobra a sensação de que a maternidade é uma batalha sem fim pela vida.

Para que possamos entender o drama de ser mãe sob a perspectiva do filme, vamos analisar a maternidade pelo lado do homem, o pai. Assim, nos parece, as coisas ficarão mais claras e menos confusas. Não que a maternidade seja algo confuso, não. É apenas uma proposta de ver a mesma questão pelo ângulo oposto. Afinal, maternidade e paternidade são faces da mesma responsabilidade por um ser que está vindo. Sim, ele está vindo. Daqui nove meses. E esta é a questão.

Vamos começar pelo tal Ellius, o que representou a fala acima, a de que dar filhos, de preferência machos, ao marido é um dever da mulher. Mas, e se o marido não fizer lá muita questão de ter o filho? É o que acontece com o professor Ellius (Erland Josephson), que, ao ser perguntado pela aflita esposa sangrando numa maca, prestes a abortar, se ele queria de fato o bebê, o esposo Ellius desvia a conversa para o banal, portanto, se cala. Está dada a senha para o aborto.

Neste diapasão, a maternidade de Cecília Ellius passa pela paternidade de Anders Ellius. Este é o fluxo emocional estabelecido na relação umbilical com o feto. Não havendo paternidade, não há maternidade. E por que o esposo não quer ser pai de um filho gerado pela esposa? Porque o esposo não ama a esposa, e o casamento apenas se mantém sobre as bases da conveniência. Cecília, desejosa do filho que acaba de abortar, se culpa por ter sido fraca, por não ter tido a coragem de assumir o filho, independente da sua relação com o marido. Mas a questão já estava estabelecida. Ela só conseguiria amar o filho através do pai. Se o pai não ama a mãe, a mãe então não será capaz de amar o filho. Neste caso, Cecília, sentindo-se incapaz de amar diretamente o filho, sem passar pelo marido, preferiu eliminá-lo.

Agora, o segundo esposo, Harry Andersson (Max Von Sydow), o homem da segunda grávida, Stina Andersson (Eva Dahlbeck). Amantíssimo! Apaixonado. Cheira as roupinhas do bebê que está por chegar. Planeja tudo, enquanto a esposa está aguardando o parto de um bebê que parece não querer nascer. Mas o Harry, o pai, anseia profundamente pelo filho, homem também, e também Harry, lógico! E Stina sabe que tem que cumprir com o seu dever.

Stina Andersson mostra traços da mulher moderna, preocupada consigo, com sua beleza, com seu corpo deformado que voltará a ser magro, com seu dia a dia longe das obrigações da maternidade. Ora, ela ama o bebê que está por nascer, mas… O problema é que o amor de Stina pelo marido Harry nos parece ser muito menor do que o amor de Harry por ela e pelo bebê. Para Stina, portanto, deixar o bebê nascer é enfrentar a realidade. E o bebê nasce. Com intervenção médica. E morre no parto. Stina está, enfim, livre!

Agora o último homem, sem laços de casamento, sequer de noivado, no máximo um namoro casual, em que a moça Hjõrdis Petersson (Bibi Andersson), ainda um tanto infantil, solta no mundo, longe da família, engravida do rapaz. Rapaz que nem no filme aparece! Desamparada, ela quer o aborto, lógico. Pressionada pelo pai, ressalte-se. Que não quer assumir nada, convenhamos. O que resta então para a inexperiente mamãe Hjõrdis é tomar quinina. E saltar corda horas a fio para ver se o embrião desce. Mas o bebê, herói da resistência pela vida indesejada, a tudo resiste!

Hjõrdis, que traz para a vida uma infância de abuso e solidão, sonha com um homem que a ame e que com ela se case. Mas o que a vida lhe oferece é apenas Tage Lindin, um passatempo. Ela está confusa. Oscila entre o querer, que é o verdadeiro, e o não querer, que é assustador. Por fim, curada dos sangramentos, vai receber alta do hospital. Diante de um Estado (sueco) que oferece todo apoio à maternidade, antes, durante e depois, e com o acolhimento familiar, cujos julgamentos a amedrontava, Hjõrdis decide que ama e quer o bebê. E o terá. Sem casamento!

Ficam, assim, apresentados ao espectador os dramas da maternidade que, sabemos, não terão fim. E por esta razão, em se tratando de maternidade, é perigoso determinar verdades. Portanto, faça você, caro espectador, seu quebra-cabeças, quem quer, quem não deseja, quem ganha, quem perde. Afinal, a maternidade, como qualquer outra instância humana, é bombardeada por uma infinidade de emoções e sentimentos sobre os quais não se tem controle, mas cujos efeitos desenharão a ecografia de um futuro ser humano. Se ele sobreviver, claro.

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A violência como forma de indignação

Por Antônio Roberto Gerin

Um dos filmes que está na ponta da agulha para ganhar o Oscar 2018 de melhor filme, e que, diga-se, já levou o Bafta, é o insustentável e às vezes inacreditável TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME (115’), direção de Martin McDonagh, Inglaterra (2017). Podemos dizer que se trata de um filme de personagem, tamanha a força avassaladora com que a protagonista Mildred Hayes arrasta o mundo atrás de si, na sua determinação de encontrar o assassino da filha. É a força maternal em estado bruto. E bruta é a mãe, sim, na acepção exata da palavra. Três Anúncios para um Crime mostra que ficarmos sentados, torcendo para que o destino venha nos colocar de pé, não é a melhor saída. Caminhar com as próprias pernas ainda é a melhor opção para fazer valer nossa vontade. Mesmo que seja na base do chute. E o que a mãe Mildred mais sabe fazer, na sua simpática selvageria, é sair por aí, chutando baldes!

Mildred Hayes é mãe de dois filhos, um casal, e esposa separada do marido, com quem mantém uma relação de agressão verbal, por parte de ambos, e física, por parte dele. Após ter sua filha estuprada e assassinada, e depois queimada, enfim, brutalidade completa, e mais, após decorridos meses sem que a polícia local se movesse para tentar encontrar o assassino, ela, a mãe Mildred, munindo-se de uma valentia feroz, aluga três outdoors numa rodovia por onde ninguém passa, nos quais cobra das autoridades solução para o assassinato da filha. O alvo acaba sendo o patético xerife Bill Willoughby (Woody Harrelson), responsável por desvendar o crime. Fincado, portanto, os anúncios, o filme começa a pegar embalo, numa sequência de ações e reações que vão se enfileirando diante de nossos olhos incrédulos, e cada vez mais atentos, tudo para nos mostrar que gente boazinha tem pouco espaço neste mundo.

O que o roteiro e o diretor, unidos umbilicalmente na mesma pessoa, fazem é arrancar a pele da hipocrisia social e mostrar a vida numa camada mais interna, e odienta, onde o drama e o humor se abraçam para exibirem, juntos, o recorte moral e social de uma pequena cidade americana cravejada de preconceitos, abusos e incompetências. Mildred, com seus nervos movidos a raivas, mais parecendo um furacão amaldiçoado, acaba desmascarando o que a pacata cidade prefere esconder. É por estas e outras razões que a mãe Mildred vai colecionando inimigos. E a voltagem vai só aumentando!

O filme é de uma ferocidade sutilmente descomunal, disto o espectador, parece-nos, não terá dúvidas. Há cenas que mal podemos acreditar nelas. Como assim, botar fogo numa delegacia, atirando, um a um, quatro coquetéis molotov, e não ser punida? O que interessa é que a ferocidade, travestida de indignação e raiva, vai alcançando níveis cada vez mais cômicos, e esta comicidade absurda acontece graças à simbiose perfeita entre Mildred, a inconsequente, e seu algoz, o policial Dixon, a antítese da boa conduta esperada para um policial que é contratado para servir ao cidadão. No caso do policial Dixon, é o cidadão que tem que estar a serviço dele. Senão, leva porrada! O pior é que ela, a mãe, para ser ouvida, também está disposta a dar umas boas porradas. Eis aí o ponto máximo, e paradoxal, do choque de interesses entre Jason Dixon (Sam Rockwell) e Mildred Hayes (Frances McDormand). Não é à toa que os dois são aplaudidos por onde passam, recebendo indicações aos prêmios de melhor atriz e melhor ator coadjuvante. É provável que levem também o Oscar.

Se o filme nos diz, já no seu início, que se trata de uma mãe disposta a tudo para ver solucionado o trágico crime ocorrido com sua filha, vamos aos poucos percebendo que não estamos assistindo a mais um desses filmes detetivescos. A mãe Mildred compra tantas brigas por onde vai passando, que não há tempo para se ocupar da busca pela elucidação do crime. E parece-nos ser esta a proposta do filme. Repetir nas telas o que já vimos tantas vezes nas páginas policiais. A luta de pais e famílias para que se faça justiça, onde expressar a dor da morte súbita e inexplicável de um ente querido é mais urgente do que elucidar o fato trágico em si. Discute-se não a morte, e sim a perda.

Em suma. Se o espectador estiver disposto a acolher mais essa manifestação de afeto feroz, porque assim é que o filme tem que ser visto para que o amemos e o aplaudamos, acho que vale a pena sair de casa e ir ao cinema. Vale lembrar que nem tudo precisa ser pura arte para ser admirado. Assim como nem toda mãe precisa sofrer para ser realmente mãe. Bom espetáculo!

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Os remédios para a loucura

 Por Antônio Roberto Gerin

É a hora dos remédios! Ou como ordena a enfermeira, em inglês, repetindo, em voz firme, junto ao guichê, em frente do qual se alinham os loucos: medication time! Pois é. Este é o filme dos remédios. E também o filme da loucura como possível sonho de entrada para a liberdade. Estamos falando do premiadíssimo UM ESTRANHO NO NINHO (133’), dirigido por Milos Forman, EUA (1975), e que tem no magistral Jack Nicholson (Oscar de Melhor Ator), na pele de McMurphy, a encarnação do humanismo irreverente, aquela maneira de ser que se confunde com loucura, mas que não passa de uma tentativa desesperada de viver fora dos limites autorizados pela dita civilização. É a vida vivida no seu instante, intensamente, sem as barreiras que o impedem de ultrapassar as linhas civilizatórias, estragando-se nos excessos, tendo como ponto de referência a máscara sagrada da loucura. Heróis e anti-heróis, todos os que tentaram pular a cerca da refinada normalidade foram estraçalhados por lobos de plantão. Neste caso, em Um Estranho no Ninho, estamos falando da estrutura do sistema psiquiátrico, com suas leis perversas, onde não cabe olhar para o humano, senão pelo que ele representa de ameaça para a sociedade. Randle Patrick McMurphy é a quintessência da busca tresloucada pela liberdade sem concessões. A liberdade perigosa. Ameaçadora. Portanto, uma liberdade que pretensamente termina em loucura.

McMurphy é um presidiário que cumpre pena por delitos de agressão física e sexual. Um descontrolado que acha que a vida pode ser vivida sem que lhe cuspam regras. E estes comportamentos transgressores ele os reproduz na prisão, obrigando a que seja encaminhado para um hospital psiquiátrico. É sua entrada nesta instituição que dá razão e início a uma narrativa pungente de como é ser um estranho num mundo em que o limite entre normalidade e loucura é tênue, discutível e, na maioria das vezes, mentiroso. A avaliação dos profissionais sobre o estado mental de McMurphy prova isso. É inconclusiva. Não estaria ele fingindo-se de louco para, assim, fugir à prisão? Se sim, McMurphy saiu de uma loucura e entrou em outra.

O filme nos leva a discussões que vão além da imaginação narrativa de um roteiro que se empenha, com sucesso, em construir mais um belo filme para Hollywood. E aqui, juntamente com a magnífica atuação de Jack Nicholson, incluindo-se aí também todos os outros atores que deram vida à loucura, reside a consistência clássica do filme. Ele antevê as distorções, o conservadorismo e o despotismo vigentes nos hospitais psiquiátricos mundo afora. Estes hospitais não são um lugar de cura, são um lugar de aprisionamento.

O autor do livro homônimo em que se baseia o filme, Ken Kesey, trabalhou em hospital psiquiátrico e pôde, com isso, sintetizar nas páginas do seu livro a realidade histórica destas instituições. E para situar o espectador em relação à época em que o filme foi realizado, podemos falar do famoso psiquiatra italiano Franco Basaglia, surgido no pós-guerra, e talvez o nome que mais representa a reação ao confinamento como método terapêutico para a loucura. A humanização e a socialização no tratamento da doença mental era o que ele defendia. E era também o que defendia, à época, Nise da Silveira, nossa grande psiquiatra do Centro Psiquiátrico Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, retratada no belo filme Nise – no Coração da Loucura. O que vamos presenciar em Um Estranho no Ninho é justamente o contrário. Confinamento. Excesso de regras. Autoritarismo, rigidez, frieza, remédios, mais remédios, muito remédio! Burocracia. Falta de afeto. Culpabilização do sexo. Falta da família. Que mente, por menos perturbada que seja, aguentaria tamanha falta de ingredientes humanistas! Este foi o quadro que McMurphy encontrou ao adentrar o hospital psiquiátrico. Como dissemos, se se fingir de louco foi a manobra, caiu, em cheio, no lugar errado.

Ao levar seu estilo de vida irreverente e tresloucado para os outros internos, McMurphy vai, a princípio, encontrar grandes resistências. E muita má vontade. Logo percebe, no entanto, que não se trata de recusar o que ele lhes sugere e oferece. Pelo contrário. Gostariam muito de seguir os passos daquele maluco do McMurphy! A recusa se deve ao medo de quebrarem as regras estabelecidas, pois sabiam que a punição, os abomináveis choques elétricos, acontecia ali, na sala ao lado.

Mas McMurphy não se intimida, nunca! Ele ajuda, aos poucos, seus companheiros a se rebelarem. Ele os conduz. E logo percebe o quão felizes eles se sentiam toda vez que transgrediam. O que se viam, nestes momentos, não eram indivíduos loucos e mentalmente ausentes, mas seres humanos vibrantes, que se sentiam honrados por estarem participando daquelas pequenas transgressões. Era a vida passando por dentro deles, numa dinâmica de prazer e lucidez impróprios ao rótulo da loucura.

A fuga do hospital, em um ônibus escolar, dirigido loucamente por McMurphy, que no caminho ainda pega a sua namorada que, evidente, será cobiçada por todos, afinal, louco também gosta de mulher, quer afeto, quer sexo, o passeio, enfim, vai se tornar para todos um acontecimento memorável. McMurphy os leva para uma fantástica viagem de barco mar adentro, onde pescam um peixe de tamanho nunca antes imaginado por eles. Cenas antológicas e emocionantes, de uma pureza e de uma insana vitalidade acontecem no barco, naqueles instantes, o reduto inviolável da vida saudável.

E, para encerrar, vamos apenas descrever um efeito colateral deste furacão chamado McMurphy. Na companhia de outro furacão, Jack Nicholson.

McMurphy, em seu plano de fuga, introduz na enfermaria sua namorada e uma amiga dela. Para isso, ele suborna o vigia noturno. Há bebida, há festa, há vida. Mas antes da fuga, querendo atender ao desejo de afeto e sexo do louco Billy Bibbit (Drad Dourif), McMurphy oferece sua namorada para Billy, que assim poderá vivenciar seus mais recônditos e agora incontidos desejos. Enquanto todos esperam a noitada de Billy acabar, eles bebem, embebedam-se, depois dormem, e ninguém foge. Na manhã seguinte, aquele circo de vida iluminada é descoberto pelos agentes da enfermaria. E Billy, evidente, no quarto, deitado, nu, ao lado da namorada de McMurphy, é surpreendido pela cruel e autoritária enfermeira Ratched (Louise Fletcher, que levou o Oscar de Melhor Atriz, e não podia ser diferente).

E assim é a vida. Para fugirmos da loucura, entregamos nossa liberdade nas mãos dos outros. Do Estado. Dessa e daquela instituição. Entregamos nossa liberdade para o patrão, para o amigo, para quem nem conhecemos. Qual será o preço que McMurphy irá pagar ao se recusar a entregar sua liberdade para a enfermeira Ratched? E nós, que preço aceitaríamos pagar por uma dose de liberdade? Se toparmos encarar algum momento de loucura, uma coisa tem que ficar clara. Não há negociação. Se é negociado, não é loucura. Será apenas mais uma prisão.

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