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A dor de ser artista

Por Antônio Roberto Gerin

 Ingmar Bergman, com seu contundente filme NOITES DE CIRCO (90’), Suécia (1954), traz para a tela um dos temas que lhe é muito caro, e que viria a se repetir em vários de seus filmes, nos anos seguintes. A arte como fonte de sofrimento para o artista. E a humilhação como uma das chagas mais visíveis desse sofrimento.

Talvez esta dura realidade seja a temática mais convulsiva de um Bergman amargo e irônico que está disposto a pôr a nu as vicissitudes do seu ofício. Afinal, Bergman esteve enfiado até a alma nos palcos e nas câmeras. No teatro e no cinema. E o circo? Bem, o circo, com sua arte medieval, é outra história. O circo é a arte suja, cheirando a estábulos e a miséria. A arte rebotalha! A arte que vive da incerteza, rodeada de pulgas e de confusões amorosas. O circo pode ter lá suas noites de glórias, mas elas serão passageiras. Um dia a lona ficará rota e dos céus cairão sobre o picadeiro as chuvas e a luz das estrelas. E o que restará, então? O palhaço. Porque este, sim, atravessará os séculos. Intacto.

Albert (Âke Grönberg) é o dono do Circus Alberti e se relaciona, evidente, com sua principal estrela, Anne (Harriet Andersson). Mas a insegurança financeira, o cansaço afetivo e o esgotamento físico derrubam qualquer tentativa de manter as aparências de um casamento feliz. Ambos não suportam mais essa itinerância de misérias, com as pulgas tomando conta do leito e a desilusão roendo os sonhos.

Mas o circo tem que viajar até o próximo pouso. Os cavalos têm que puxar as carroças e levar o espetáculo para onde o público está. Enfim, é preciso, acima de tudo, manter a arte viva, mesmo que trôpega.

E o circo chega a uma cidadezinha do interior da Suécia, onde tudo, num espaço de vinte e quatros horas, acontece. E o que acontece é uma sequência de humilhações, onde Bergman, com sua ironia corrosiva, coloca na tela o que ele pensa sobre as labutas e as incertezas do ser artista. E não há dúvida, parece-nos, de que o invólucro social da arte é a humilhação.

A primeira humilhação aparece logo no início do filme, numa sequência de cenas pungentes e inesquecíveis. Alma, esposa do palhaço Theodore, toma banho nua, no mar, com os soldados que estão fazendo exercícios de tiros de canhão. Todos riem, todos se divertem. E o marido, o palhaço, é maldosamente avisado do que está acontecendo. Ele sai do circo, corre em direção ao mar e retorna, trazendo nos braços, o corpo nu da esposa. E atrás dele, um séquito de chacotas. Sua agonia é tentar proteger a esposa e a si da humilhação pública. Não consegue. Esgotado, cai sobre o corpo da mulher. E, desfalecido, é carregado pela multidão circo adentro. Silêncio! É o momento de a arte supurar as suas dores.

A arte tenta, a todo custo, esconder seu calcanhar de Aquiles, a falta de dinheiro. Mas, é impossível, pois, afinal, sem dinheiro não tem como seguir adiante. Bergman, mais do que ninguém, sabia da necessidade de se obter financiamento para prosseguir com seus projetos. É curioso perceber essa relação humilhante com o dinheiro na própria história de Bergman, um diretor mundialmente consagrado, com os dois pés fincados na indústria cinematográfica sueca, mas que, mesmo assim, se vê obrigado a financiar alguns dos seus projetos com recursos próprios.

Albert, o palhaço-mor, reflete esse cansaço na eterna e humilhante busca por dinheiro. Primeiro, ele é humilhado ao ir bater à porta de outra arte, o teatro, para implorar figurinos. Depois, o circo é humilhado em praça pública pela polícia municipal quando esta, ao ver a trupe divulgar, sem autorização, o espetáculo que iria acontecer logo mais à noite, confisca os cavalos, obrigando a que os circenses, diante de toda a cidade em risos, puxem, como animais, sua própria carroça. Depois, Albert vai se humilhar diante da ex-esposa, a quem outrora abandonara, ela que é agora uma empresária bem sucedida. Ele pede para reatarem, inclusive promete abandonar o circo, portanto, a arte, mas ela o rejeita. E, por fim, vê sua atual esposa traí-lo com a estrela do teatro local, o sedutor Frans (Hasse Ekman). E não bastasse, esse mesmo teatro vai, à noite, até o circo para humilhar Albert em seu próprio picadeiro, diante de uma plateia em delírios. Basta, não acham? Sim, chega, pois é hora de partir. O sol vai raiar, nada mais resta a Albert senão continuar se arrastando com seu circo pelos caminhos do mundo. É preciso continuar provando que a arte morre e renasce a cada instante. É assim que tem que ser. Ainda bem.

O que Bergman, afinal, pretende com tudo isto, quando coloca o circo, arte artesanal por excelência, como o tapete a ser pisado? Talvez o circo represente a penúria a que todos os artistas estão sujeitos. Por isso, nada melhor encerrarmos esse doloroso assunto, transcrevendo aqui as palavras do próprio Albert. Diz ele a um dos palhaços, Frost (o magnífico Anders Ek). “Não quero andar por aí com este lixo de circo! Quero ser um cidadão honesto, com uma conta bancária e uma esposa respeitável.” E resume. “É uma vergonha ser Albert!”. Pois é, Bergman.

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É possível viver sem o afeto da mãe?

Por Antônio Roberto Gerin

 Um filme que se propõe a narrar o cotidiano de uma personagem tem, necessariamente – não obrigatoriamente – que passar pelas relações familiares. É o que acontece com o convincente e premiado filme LADY BIRD – A HORA DE VOAR (95’), direção de Greta Gerwik, EUA (2017), que vai contando, num tom bastante realista, os conflitos e dilemas da adolescente Christine McPherson. O filme ganha em emoção e consistência quando se detém, sem nenhum pudor, na conturbada relação mãe e filha, conflito, aliás, recorrente na maior parte das famílias normais. Pois, onde tem conflito, geralmente tem mãe. Em Lady Bird não é diferente.

Uma jovem, mentalmente efervescente, está em busca do seu caminho no mundo e passa pelos sentidos da vida numa atitude de contestação e reposicionamento frente ao que lhe é determinado. Mas o que é realmente importante para uma jovem inquieta, que precisa o tempo todo dar cotoveladas para poder expressar as suas vontades? Sim, as vontades… Mas que vontades? Ora, tudo aquilo que está diretamente ligado ao futuro da jovem adolescente, claro. E seu futuro é ir pra Nova Iorque, numa universidade lá qualquer, mas em Nova Iorque. Ponto. Lady Bird  dará quantas cotoveladas forem necessárias pra chegar à costa leste!

Aliás, temos Saoirse Ronan, indicada ao Oscar como melhor atriz, no papel da Lady bastante Bird! Perfeita!

Mas antes de Lady Bird conseguir o que quer, partir de Sacramento em direção ao futuro luminoso de Nova Iorque, a adolescente precisará lutar em várias frentes de batalha. Ela ainda não tem dezoito anos e há questões urgentes a serem resolvidas. Amizade, namoro, sexo, sua relação com a mãe dominadora… ufa, que batalha! Mas Catherine, nossa heroína, que se autodenomina Lady Bird, não fugirá à luta.

Tudo começa pela família. É dentro dela que nascem as coisas boas e as coisas não tão boas. É na família de Lady Bird que está o pai condescendente e amoroso, porém, fraco. É nela que vive o irmão chato que faz da namorada seu alter ego de chatice. E é nela, por toda parte, onipresente, feito um fantasma invisível, que reina a mãe. Ah, a mãe, a que controla, a que determina, a que faz valer os decorados e a que dita as malditas regras, obrigando a que nossa protagonista, a Lady, redobre esforços na tentativa de caminhar no mundo com as próprias pernas. Ela não quer viver nesse interior mesquinho, Sacramento. Ela sonha com o brilho de Nova Iorque, onde, ela sabe, poderá voar para além dos horizontes da mãe.

Agora vamos para algo mais interessante, sexo. Ah, este sim dá um certo trabalho, já que descobrir a sexualidade exige renúncias perigosas e um parceiro ideal de primeira viagem. E Lady Bird bem que tentou! A primeira noite quase que necessariamente seguida do primeiro engano. Não é um fracasso, é apenas uma desilusão. Foi bom, Lady? Bem… Não se preocupe, caro espectador. Nossa Lady Bird seguirá seu voo na direção para onde aponta a sua vontade. Perde-se uma batalha, não a guerra.

Amizade. Utilizada no filme como válvula de escape em somatizações sociais, tais como a alimentação excessiva, as risadas fáceis e nervosas, e os sonhos impossíveis de afeto verdadeiro. Esta é a amizade dos excluídos. É que a oferta não é tão abundante para uma menina com severas restrições às convenções sociais. Prefere, por isso, amizades marginalizadas, no papel de uma menina obesa e carente, com quem divide seu tempo e seu espaço.

E, por fim, a universidade. A vida profissional. O desenho do futuro. A luta para conseguir vaga numa delas, o caminho a ser aberto para que lá na frente a vida possa se encaixar nos trilhos da funcionalidade. Uma luta e tanto, diga-se. Mas o que a determinada Lady Bird não consegue? Tudo, menos uma coisa. O afeto da mãe.

Reside aqui, caro espectador, a crueldade do filme. Vamos sempre nos deparar com a ideia perfeita veiculando o amor perfeito. Se é mãe, ama, esta é a ideia perfeita. E esta máxima, sem dúvida, está quase perfeita, se ela não perpassasse pela condição de que amar a mãe é fazer as vontades da mãe. Sem esta condição, não tem afeto recíproco. Portanto, não há liberdade no afeto materno. Há prisão. Há condição. Assista, caro espectador, ao filme Lady Bird para ter a certeza de que sem afeto é possível seguir adiante. Pode ser mais pesado, mas nunca uma impossibilidade. Bem. É o que imaginamos, pois, da forma como o filme termina, a pergunta é inevitável. É possível viver sem o afeto materno?

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Seriam amor e sexo faces da mesma moeda?

Por Antônio Roberto Gerin

Todos nós sabemos que a vida se manifesta em infinitas formas, mas que, geralmente, somos conduzidos a viver da forma que nos é determinada como a mais correta e a mais aceitável, moral e socialmente. Conformamo-nos em sermos réplicas, mesmo que dentro de nós exista uma individualidade difícil de ser domada. Assusta-nos ter que lidar com os conflitos que nos habitam e nos atormentam, afinal, eles insistem em nos arrastar por caminhos perigosos. E aí? Ceder ou não ceder aos nossos mais verdadeiros impulsos?

O belíssimo filme A BELA DA TARDE (101’), de Luis Buñuel, França (1967), vem colocar estas questões para o espectador, sem reticências. O filme contrapõe o que é tido como normal a uma situação de ousadia, onde a normalidade idealizada passa a ter o gosto delicioso da transgressão. Só que sair do quadrado confortável e seguro é nos lançarmos numa zona de turbulência e riscos, cujo preço pode ser muito alto, tão alto que não vamos ter condições de pagar. A nossa Bela da Tarde que o diga.

Séverine, encarnada pela exuberante Catherine Deneuve, é mulher bela e ociosa, amparada por um casamento de sonhos, com um homem que lhe oferece a perfeição, mas uma perfeição tediosa, e mais, uma perfeição que não sacia. O maridão Pierre (Jean Sorel) é o príncipe que Séverine, e tantas mulheres, gostariam de guardar num armário para usar em ocasiões especiais. Mas o que fazer enquanto o príncipe estiver trancado no armário? Ora, o quiserem! O que desejarem. O que sonharem. Façam o certo ou o errado, mas façam!

Séverine partiu para uma solução radical, ou surreal, à la Buñuel. Arranjou um amante caliente? Nada disso. É pouco. Tornou-se prostituta vespertina de um sofisticado bordel clandestino. Isso mesmo. Duas vidas. A clandestina, glamourosa e arrebatadora, injetando felicidade e amor na vida oficial, portanto, o equilíbrio exato entre esbofetear o rosto da perfeição e, logo mais à noite, beijá-lo. Só que Séverine, caro espectador, entrou por um lado obscuro da vida, aquele lado que é dominado pelo sexo que traz em sua bagagem as obsessões e as carências humanas. Então, é quando o destino chega e aponta as fragilidades. Numa fração de segundo, ele tira o sossego e o controle da prazerosa clandestinidade. E tudo, como diria o poeta, vira uma merda. Ou como sussurraria a vizinha fofoqueira, bem feito!

Será que devemos mesmo analisar o filme? Dissecá-lo? Será que devemos mesmo tentar descobrir as razões que levaram Séverine ao bordel? É necessário mesmo discutir a personagem do ponto de vista da sua escolha? Ao levantar hipóteses, não estaríamos nós enquadrando? Limitando? Simplificando a obra-prima de Buñuel? Vamos fazer o seguinte. Só um parágrafo, tudo bem?

Especulemos. Teria Séverine apenas tido a coragem de seguir o fluxo carnal dos seus mais recônditos desejos? Teria o abuso na infância, possibilidade esta trazida por rápidos e incisivos flashbacks, a capacidade de detonar, a partir do ponto de vista do espectro da normalidade social, os desvios de conduta da personagem? Ou seria a escolha apenas motivada por um casamento sexualmente entediante, à la Madame Bovary? Afinal, ambas têm como marido entediante um médico ocupado. Sem contar que os sonhos de Séverine a levam para o século XIX, em suntuosas carruagens ocupadas outrora, provável, pela sexualmente inquieta Madame Bovary… Stop!

Caro espectador, a responsabilidade por captar os movimentos sutis da personagem que a encaminharam para um tipo de vida arriscado, mas do qual ela tirava prazeres reais, nada oníricos, é sua. E mesmo que Buñuel misture realidade com sonhos, com a intenção de confundi-lo, não caia na conversa deste hábil diretor. Pelo contrário. Mantenha os pés firmes no real e verá escancarada a finalidade social do casamento como uma instituição que pressupõe os desvios. Se pressupõe, esta conclusão poderá levá-lo, escandalosamente, a admitir que os desvios são normais. Se são normais, não são desvios, são apenas mais uma escolha! E, neste caso, apesar da tragédia, Séverine teve o direito de fazer a sua escolha. Mesmo que na escolha veio embutido o erro. Mas como é que ela ia saber?

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