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O sangue que jorra

Por Antônio Roberto Gerin

Talvez Quentin Tarantino possa nos responder. Quanto sangue é preciso derramar para se fazer valer uma vingança? Lembremos que vingança só se faz com as próprias mãos. Ou por mãos alugadas, como queiram. Agora, se para reparar um malfeito for preciso recorrer à justiça, que é o caminho civilizado, por se tratar de uma instituição imparcial, não se poderá falar de vingança, pois caberá ao Estado fazer justiça por nós. O que nos leva a concluir que, se quisermos nos vingar, na acepção tribal do termo, vamos ter que esquecer a justiça e partir pra briga. No entanto, tal decisão, na vida real, traz um risco enorme. Responder perante a Lei pelos nossos atos. Mas no cinema, não. Eis! Lá, nas telas, é permitido sujar as próprias mãos com sangue. Como nos ensina Tarantino. E é o que faz Hollywood. Espertamente. Ou melhor. Comercialmente.

No entanto, se pensarmos que Hollywood está inserida na cultura americana, porque, afinal, Hollywood existe lá, nos Estados Unidos, vamos talvez não entender uma contradição. Uma sociedade que se construiu sob a égide de uma Constituição forjada nos direitos humanos, Constituição séria, bafejada pelos fortes ventos humanistas que vinham, à época, da Europa, enfim, se é uma terra civilizada, por que a cinematografia é construída de um modo em que o protagonista, vítima de injustiça, prefere resolver a pendenga pelas próprias mãos, no olho por olho, no dente por dente? Perceba. Sempre vai existir o xerife, o cara que prende e que enforca. Em qualquer cidadezinha americana. Mas a vingança, esta magia alucinatória e catártica, é feita na base do bang! bang! Dane-se a Lei! Sabe por que dane-se a Lei? Porque a vingança vende. A vingança rende ótimos roteiros. A vingança nos deixa possuídos, porque, lá no fundinho da nossa alma obscura, sempre desejamos fazer justiça com nossas próprias mãos. Chutar, xingar, caluniar, cuspir, sequestrar… Matar, talvez. Sim. Por isso é tão bom ver nossos heróis fazendo isto por nós nas telas dos cinemas! Dá-nos um prazer. Estético?

Quentin Tarantino usa esta fórmula com maestria, a de explorar a insondável necessidade humana de revidar o mal. Muita palavra, muito sangue, eis sua estética. Kill Bill talvez seja a bíblia da vingança. Mas ele leva essa fórmula, em maior ou menor grau, também para seus outros filmes. E o impactante BASTARDOS INGLÓRIOS (153’), direção dele, Quentin Tarantino, EUA/Alemanha (2009), não é diferente. A diferença é que a vingança aqui é imponderável. Envolve a humanidade e seu destino.  Mas, no fundo, a regra é a mesma. O sangue vai jorrar.

Shosanna Dreyfus, após ver sua família judia ser fuzilada pela SS, polícia (paramilitar) do Estado nazista, no porão de uma casa de campo francesa, onde outra família, francesa, não judia, os escondia, acaba fugindo à tragédia, sendo a única sobrevivente. Some no mundo. Vai para Paris, onde, não se sabe como, torna-se proprietária de um cinema. A Segunda Guerra Mundial vai chegando a seu fim, e ela continua tocando seu negócio, de onde tira o sustento, dela e de seu amado, um negro. Até que… Apresenta-se-lhe a oportunidade da vingança. Está armada a situação para o desfecho do filme.

Mas antes do desfecho, outro veio narrativo se desenvolve. Em paralelo à trajetória de Soshanna.  Histórias paralelas, posto que uma não se conecta a outra. Um grupo de soldados judeu-americanos, desatinados, querem vingar a violência nazista contra os seus pares, também judeus. Desembarcam na França e tocam o horror nas hostes nazistas. Divertem-se escalpelando soldados alemães. É um ritual. Absurdo, difuso. Personificado pela figura grotesca e verbalmente histriônica de Aldo Raine (Brad Pitt), o chefão implacável do pelotão dos bastardos.

Mas há mais personagens. Talvez as mais interessantes e bem construídas, duas, que dão caldo ao roteiro fumegante de Bastardos Inglórios. São, primeiramente, o coronel da SS, Hans Landa, personificado pelo incomparável Christoph Waltz. Ele personifica a maldade a ser vingada. Sua bíblia é o cinismo. Seu lema é a competência. E competência, evidente, significa encher os campos de concentração de judeus.

A outra figura, talvez a mais icônica, onde Quentin Tarantino despeja o lado obscuro e doentio do ser humano inserido naquela barbárie, é o soldado raso Fredrick Zoller (Daniel Brühl). Catapultado a herói de guerra, cujos feitos nos campos de batalha, onde matou, matou e matou, em três memoráveis dias, quase 300 soldados aliados, pois este feito heróico é transformado em filme, e ele, o soldado Zoller representa ele mesmo nas telas, o protagonista do filme dentro do filme, o herói. Opa! Falamos em filme? Eis a conexão com o cinema de Shosanna, agora chamada Emmanuelle Mimieux, no corpo e na voz da magistral Mélanie Laurent. É no cinema de mademoiselle Mimieux que se dará a première do filme. O lançamento. E com a presença de quem? Tarantino coloca o Hitler no cinema de Shosanna! É muita safadeza (no bom sentido) criativa.

Mas complementando a proposta do parágrafo anterior, preste, caro espectador, atenção à concepção da personagem Zoller, o tal soldado raso, o herói. Ele simboliza o que há de pior num ser humano. A ideia de que com o poder nas mãos tudo se pode. Uma vez alçado a herói, vira mito, e o mito, sabendo da cegueira dos seus bajuladores, faz deles o que quer. Deles e dos demais. Por que, caro espectador, o mito c’est moi. Este é Zoller, o que exige o amor de Shosanna e não aceita o não como resposta. E ao ouvir o não, faz-se a tragédia. Esta é a síntese de Bastardos Inglórios.

Antes de encerrar, vamos rapidamente levantar uma questão primordial na filmografia de Quentin Tarantino, e que, evidente, todos aqueles que apreciam sua obra estão cansados de saber. Os diálogos. Serpenteantes, portanto, sempre traiçoeiros. Esta questão merece a análise de um especialista. Dissecar a função narrativa dos diálogos de Tarantino dentro de uma linguagem cuja principal matéria prima é a imagem. Sugerimos, talvez, que se coloque frente a frente, de um lado, Tarantino, e do outro, Serguei Eisenstein. Palavra e imagem. Magistralmente, um e outro, usam uma e outra para o mesmo fim. Gerar, de forma absurda e insuportável, a tensão narrativa. A primeira cena do filme Bastardos Inglórios, quando Hans Landa discorre sobre a necessidade de matar os ratos, enquanto, sabemos, prepara o morticínio sanguinolento dos judeus na casa dos LaPadite, temos uma amostra grátis, e mágica, do que é não aguentar mais esperar aquilo que sabemos que vai acontecer. Nas mãos de Tarantino, portanto, quanto maior o malfeito maior terá que ser o justiceiro. E maior, evidente, a quantidade de sangue a ser jorrado. Aí o filme fica bom demais! Porque mais uma vez teremos a oportunidade de, secretamente, lavar nossa alma de nossos pesadelos. Por isso que vale mais a pena ir ao Cinema do que ir aos Tribunais.

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A Cantora Careca

 Por Antônio Roberto Gerin

A CANTORA CARECA é a primeira peça escrita pelo dramaturgo romeno Eugène Ionesco, em 1949, no pós-guerra, portanto, e que inauguraria uma nova forma de se fazer teatro, o teatro da não realidade, da não comunicação, o teatro que se opõe ao teatro, a que se daria o nome de Teatro do Absurdo. E absurdo é saber que poucos, à época, acreditariam na força clássica deste pequeno texto, a que o próprio Ionesco rotularia de anti-teatro. Pois, o texto teatral A Cantora Careca foi para os palcos, pela primeira vez, em 11 de maio de 1950, em Paris, no Théâtre des Noctambules. E logo depois, no mesmo ano, subiria ao palco do Théâtre de la Huchette, 90 lugares, ali, na rua Huchette, 23, onde, pasmem, até hoje permanece em cartaz. Pode-se comprar um ingresso a vinte e seis euros. E o espetáculo começa às 20h. Quase setenta anos em cartaz! Quem acreditaria num absurdo desse.

Não há narrativa, senão uma sequência de diálogos absurdos. Este seria o termo para descrever a incapacidade de as palavras estabelecerem uma lógica no mínimo inteligível e que nos pudesse levar a supor a existência de ações dramáticas e vidas interiores das personagens. A solidão toma conta e a incomunicabilidade se faz através das palavras, tornando qualquer situação, no mínimo, insólita. O que se vê é a palavra sendo dita, a não comunicabilidade de ações que parecem não existir, cada personagem no palco reduzida à sua insignificância. E insignificante é o que parece ser o casal inglês, os Smith, que recebem a visita do casal inglês, os Martin, e os recebem, em sua casa inglesa, sem saber por quê. Esta é a não sinopse de A Cantora Careca.

O que se pode depreender é que a estrutura dramática começa, desenvolve-se e termina na palavra. A palavra parece ser a personagem se desdobrando numa sequência ocultamente cômica de obviedades. É alguém tateando a sombra para ter a certeza de que ela existe. Seja o que for, e o que se diga, Ionesco conseguiu construir a incomunicabilidade como forma de não vida, e o fez de uma forma peculiar e inquestionável. A forma vencendo avassaladoramente o conteúdo. As personagens mal cabendo dentro das palavras.

Até o humor, que corrói cada palavra dita, parece não existir. Finge-se. Mas quem já teve a oportunidade de assistir a alguma montagem desse texto, ou mesmo comparecer a leituras dramáticas, como a que foi feita no Teatro Goldoni, em Brasília, tempos atrás, pelo grupo Os Dramátikos, vai poder perceber que o texto é tão forte que deixa escapulir um humor denso e inevitável, que nos encanta e ao mesmo tempo nos espanta. É o humor que nos coloca diante de uma realidade que parecemos desconhecer, mas que está ali, sendo por nós experienciada. Sim, o humor tem esta funcionalidade em A Cantora Careca. É ele que constrói a realidade do texto. O humor ressurge do nada para mostrar nossa insignificância. Vivenciando, pois, este pequeno texto, despretensioso, dá para entender por que ele é tão eterno nos palcos.

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 Uma ficção real

Por  Antônio Roberto Gerin

O filme O ENCOURAÇADO POTEMKIN (73’), de Sergei Eisenstein, Rússia (1925), é, antes de tudo, um clássico. O resto, o que dizem dele, nada altera esta condição. O filme é panfletário? Ideológico? Não. Por uma razão simples. Se é arte, não é panfleto político, pois, se é panfleto, não será arte. São propostas incompatíveis, mesmo que o filme, neste caso, venha a tratar de uma temática profundamente política, a revolta de um povo contra a opressão sem limites de um regime secularmente implacável. Agora, querer encontrar no filme propósitos de propaganda política é forjar uma ideia de arte com a qual Sergei Eisenstein não compactuava. O propósito do diretor era outro. Mostrar a realidade cotidiana do humano dentro do conceito do oprimido versus opressor, mesmo que este conceito viesse a servir, como uma luva, ao ideário revolucionário russo. A forma desmedida com que a milícia czarina reprimiu, em junho de 1905, o apoio dos cidadãos de Odessa à revolta dos marinheiros do navio de guerra russo Potemkin revela que, independentemente de onde sopram os ventos, o poder sem limites tem que ser combatido, sempre. E a Rússia daqueles tempos, tardiamente ingressada no sistema de produção capitalista, e que já dispunha de uma classe operária volumosa, mostrou rapidamente sua impaciência com os velhos mecanismos de opressão. Nessa batuta, Sergei Eisenstein desenha nas telas, em 1925, uma réplica emocionante dos acontecimentos de 1905, um prelúdio da revolução bolchevique de 1917, da qual Sergei Eisenstein seria um entusiasta de primeira hora. Sim! Eisenstein era um revolucionário. Mas era, antes de tudo, um artista. E, ao ser um artista, ele podia falar de qualquer coisa, mesmo daquilo em que ele tanto acreditava.

O filme parte de um mote simplíssimo, essencialmente humano. A fome. Necessidade primária, portanto. Capaz de mover, de forma implacável, essa tensa e exuberante narrativa. Os marinheiros comiam sopa de carne podre e se revoltaram por isso. Os oficiais reprimem a revolta do jeito que eles sempre fizeram, com a submissão física. E com a morte, se preciso for. Estava armado assim o cenário para que a engrenagem do motim começasse a se movimentar rumo à tragédia. Até chegar ao ingrediente essencial para o sucesso da revolta. O mártir, aquele que dá sua vida pela causa. O marinheiro Vakulinchuk é executado pela guarda e seu corpo é exposto no porto de Odessa como símbolo da mais emblemática opressão. A de alguém que é morto simplesmente por querer comer uma sopa.

O que nos chama a atenção em relação à estrutura narrativa é que não existe uma personagem que movimenta a trama. A personagem é o povo. Este é o ideário socialista, o povo como a personagem da História. Ele só vai precisar de uma razão para agir. E a razão, como dito, foi a sopa. Feita de carne podre. Que leva os marinheiros a confrontarem o comando opressor do navio, que os leva a se apoderarem do navio, a fundearem o navio no porto de Odessa, cuja coragem, simbolizada pelo martírio de Vakulinchuk, leva-os a receberem a adesão em massa da população e, finalmente, na sequência, o massacre, numa memorável sequência de cenas nas escadarias de Odessa. E o ponto de tensão do filme chega a seu pico quando o encouraçado se prepara para enfrentar a esquadra do Czar. Não há recuo. Os pistões das máquinas a vapor do navio batem sincronicamente seu ritmo nas águas do Mar Morto, rumo à batalha inevitável. Resta ao espectador ficar ouvindo a batida tensa dos pistões. É o povo em marcha. É quando o povo se transforma em personagem. E quando o povo se transforma em personagem, sabe-se, a historiografia conta-nos repetidas vezes, não há quem o detenha.

Sergei Eisenstein foi o precursor de um cinema feito essencialmente de imagens geradoras de tensão. Aquela situação em que o espectador mal tem tempo para respirar, sem poder jamais tirar o olho da tela. Era ainda 1925, estamos falando do cinema mudo, que utilizava os intertítulos para narrar os acontecimentos principais, mantendo assim o espectador dentro da sequência dramática do enredo. Mas Eisenstein levou ao extremo a função da imagem como a grande voz narrativa. Fez com que as imagens fossem, na sua duração, repetição e ritmo, geradoras de tensão. Eis a grande sacada. É preciso antes de tudo prender a atenção do espectador, e fazê-lo, de preferência, se contorcer na cadeira, prendendo o próximo suspiro. Este é o cinema de Eisenstein. Cada imagem está terrivelmente ligada à seguinte, de forma que o espectador mal terá tempo para respirar. Numa situação passiva, o espectador é flagrantemente sequestrado pelas imagens. Eis o que nos legou Eisenstein. E a Sétima Arte agradece.

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