Publicado em Categorias Cinema, Cultura, Literatura, Resenhas

Um painel da sociedade americana

Por Antônio Roberto Gerin

OS OITO ODIADOS, (167’), direção e roteiro de Quentin Tarantino, EUA (2015) é o oitavo filme do diretor, como, aliás, vem anunciado nos créditos iniciais do filme. Será que foi por causa do título que Tarantino incluiu oito odiados no roteiro? Podiam ter sido sete. Ou nove. O que seja, esta observação não passa de uma elucubração desnecessária para mostrar, por linhas tortas, que este oitavo filme de Tarantino teve uma recepção polêmica por uma parte do público que acompanha os seus trabalhos. Eis a questão que se coloca para a arte em geral. Se o artista já criou uma expectativa com suas obras anteriores, como lidar com as reações de seus admiradores ante seu próximo lançamento? A arte é o ofício do imponderável. E o imponderável aflige o artista. E a pergunta é inevitável. Como o público vai reagir? Para Tarantino não é diferente. A cada lançamento do seu próximo filme, também ele é colocado na linha de frente desta roleta terrivelmente russa para qualquer artista que traz a público sua próxima obra.  Os Oito Odiados tem, sim, lá seus problemas. Duvida-se que seja um dos melhores de Tarantino. Não interessa que seja ou não, posto que se há uma coisa que atrapalha, ao se avaliar uma obra, é utilizar-se do maldito recurso da comparação. E Os Oito Odiados vem com esta maldição. Correm compará-lo com Cães de Aluguel. O que, nos parece, pode ser um engano. Se temos a imperdoável mania de nos prendermos àquilo de que não gostamos, corremos o risco de deixar de apreciar o que há de bom na individualidade de cada obra. Portanto, fica aí a dica. Assistam, sem expectativas. E sem comparações. Apenas assistam.

John Ruth (Kurt Russel) é um caçador de recompensas e está, neste momento, levando mais uma de suas presas, Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh), uma obstinada assassina, para ser enforcada em Red Rock, uma cidade perdida nos confins gélidos de Wyoming. Levará pelo trabalho dez mil dólares. Esta é a principal ação condutora da estrutura narrativa de Os Oito Odiados.

Diante da nevasca que se aproxima, o objetivo é chegar ao Armarinho da Minnie, um abrigo seguro, no meio da neve. Pelo caminho, a diligência colhe mais dois odiados. Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson), também caçador de recompensas. Leva suas três presas, já mortas, cujo valor total vai lhe render, também em Red Rock, oito mil dólares. E mais adiante, é a vez de recolherem o desesperado Chris Mannix (Walton Goggins), que se apresenta como o novo xerife de Red Rock. Opa! Se for verdade mesmo o que afirma, será ele, então, quem irá soltar a grana!

Enfim, conduzidos pelo cocheiro O. B (James Parks), os quatro odiados, incluindo Dayse, chegam ao Armarinho da Minnie. E lá, vão encontrar os outros quatro que, de forma um tanto misteriosa, vão sendo apresentados ao público. Bob (Demián Bichir), o mexicano, se apresenta como o responsável pelo armarinho, já que Minnie e seu marido se ausentaram. Joe Cage (Michael Madsen), o cowboy, copia a interpretação de Mr. Orange, personagem representado por ele, em Cães de Aluguel. Oswaldo Mobray (Tim Roth) lembra, na entonação de voz e em alguns trejeitos, o fabuloso Christoph Waltz, de Bastardos Inglórios e Django Livre. E o confederado, o general Sanford Smithers (Bruce Dern), que depois se saberá, é apenas um hóspede que está ali casualmente, mas que atrai para si tanto a admiração de Mannix quanto o ódio de Warren. Charly (Keith Jefferson), irmão de Daisy, não entra na conta, pois aparece em cena apenas quase no final para, em seguida, desaparecer. Portanto, quatros recém-chegados mais os quatro presentes, somam-se os oito.

Aqui entra a primeira constatação quanto à funcionalidade do roteiro. E do filme, evidente. Quem comanda as ações são os que chegam. De longe, as personagens mais interessantes, que agem, expondo seus conflitos, portanto, fazendo a roda da tensão girar numa voltagem cada vez mais rápida. Como as ações acontecem dentro de um ambiente fechado, os diálogos ágeis e insinuativos vão retroalimentar, de forma sufocante, esta tensão. Este desequilíbrio compromete a estrutura? Pode não ser a ideal, mas nos parece bastante funcional e atende às propostas do diretor.  Afinal, os recém-chegados não sabem o que acontece ali, no Armarinho da Minnie. Nem o público, que só saberá mais adiante, quando Tarantino retrocede a ação em algumas horas. Portanto, os que já se encontravam no armarinho não podem revelar por que estão ali, o que significa falarem pouco. E assim deixam espaço para o brilho verborrágico de um Samuel L. Jackson, o humor delicioso de um Walton Goggins, este, sim, um achado de Tarantino, e os embates violentos entre John Ruth e Daisy. Em doses homeopáticas, Tarantino vai tecendo uma complexa rede de ódios e vinganças.

Há na construção da única personagem feminina na trama principal, Daisy Domergue, um embaraço dramático. Um nó estrutural, difícil de desatar. Para desatar, Tarantino talvez precisaria mudar o roteiro. Dar-lhe outro rumo. Ciente disto, ele preferiu seguir o caminho já traçado. Parece ter sido a decisão acertada.

Daisy exerce na narrativa apenas uma função. A de isca. E para compensar esta limitação, a atriz se apoia numa interpretação excessiva, tentando fugir do incômodo papel de personagem decorativa. Tarantino se vale de agressões violentas por parte de seu carrasco, John Ruth, às vezes descabidas, como recurso para manter ativa a personagem Daisy. Às vezes, acaba comprometendo sua consistência. Se colocasse um homem no lugar de Daisy, pouco alteraria esta configuração, a não ser a dificuldade de John Ruth em controlar a sua presa, já que Daisy passa quase todo o filme algemada a ele. Esta, as algemas, é outra fonte de limitação da personagem.

Quanto à tendência de se comparar Os Oito Odiados com o primeiro filme de Tarantino, lançado vinte e quatro anos antes, Cães de Aluguel, tal acontece em função de algumas semelhanças entre as duas obras. Há uma teatralidade comum, as duas narrativas se passam dentro de um recinto fechado, os embates são tensos e ininterruptos, mas as similaridades não vão muito além. O roteiro de Cães de Aluguel é limpo, objetivo, simples e fechado, sem fissuras. O roteiro de Os Oito Odiados não apresenta essas virtudes construtivas, tão sólidas e ligeiras, mas, em compensação, é mais complexo. E com raízes mais profundas na história americana, o que faz de Os Oito Odiados único na filmografia de Tarantino.

O cenário de Os Oito Odiados é o pós-guerra civil, e Tarantino se vale do gênero faroeste para colocar em discussão a formação da sociedade americana a partir do trauma histórico que foi a guerra entre norte e sul. Com isto, ele acaba meio que abandonando certos elementos que lhe são caros, como brincar com a cultura pop e, mais do que isto, deixa de lado os exuberantes diálogos “tergiversantes”, que dão à estética de Tarantino uma peculiaridade inimitável, substituindo-os, em parte, pelas digressões dedutivo-investigativas, à la Agatha Christie, de Warren. Há um mistério naquele ambiente, e Marquis Warren passa, então, a investigar, atitude  esta que maximizará a tensão, detonadora do clímax final.

Em Os Oito Odiados, os elementos de discussão são outros. São as questões básicas de uma nação em convulsão, se preparando para novos rumos sócio-econômicos. Ou pela sua consolidação. Podemos duvidar até onde Tarantino tem consciência desta proposta, mas ao sabermos do conteúdo da carta escrita por Abraham Lincohn e enviada a seu amigo negro, o major Warren, na cena final do filme, passamos a perceber aonde Tarantino quer chegar com Os Oitos Odiados.

Temos que evidenciar, de passagem, o forte caráter teatral do filme. Mesmo em se tratando de um gênero predominantemente faroeste, onde as ações costumam ocorrer a céu aberto, nas paisagens, aqui o faroeste acontece entre quatro paredes, num espaço delimitado, transformado em um palco de teatro. Mas eis a dificuldade. No teatro, a câmera, aberta, é posicionada na plateia, abarcando todo o espaço teatral. Em Os Oito Odiados, o Armarinho da Minnie é o próprio palco, sem o espaço da plateia. Portanto, a câmera tem que se movimentar no quadrado, dificultando acompanhar todos os movimentos das personagens. Tem-se, com isto, que selecionar um ou dois núcleos de cena em detrimento dos demais, uma vez que as personagens se espalham pelo espaço cênico. Tarantino tanto percebeu esta dificuldade, já que ele abre mão de a câmera viajar, nervosa, de um lado a outro, sem cortes, que ele recorreu, em dado momento, para a técnica narrativa, em off. E ele, evidente, é o narrador. Diferente de outros de seus filmes, aqui ele só entra com a voz.

A personagem Chris Mannix – Walton Goggins está impagável! – e seus desdobramentos em Marquis Warren mostram uma das preocupações na filmografia de Tarantino. O papel da justiça na formação de uma sociedade justa e evoluída. No caso do velho oeste, a vingança anda à margem da lei. Mannix é o xerife para impor a justiça, Warren é apenas um negro que lutou contra os confederados e quer fazer justiça com as próprias mãos. E encontra no general Smithers a esperada oportunidade.

Tarantino coloca na boca de um dos odiados, Oswaldo, a seguinte análise, que vale a pena reproduzir aqui. “A diferença entre justiça (enforcamento) feita pelo Estado e aquela feita pelas próprias mãos é a seguinte. O carrasco (Estado) que enforca, o faz por ofício, sem paixão. A justiça, pois, executada com paixão sempre corre o risco de não ser justiça.”. Logo a seguir, vem a cena icônica, a prestação de contas do negro vilipendiado contra o sistema opressor sulista. Esta é a marca de uma das bases da hipocrisia da sociedade americana. Você pode ser injusto, desde que você, espertamente, aja dentro da lei. Seja, portanto, um fora da lei, mas use a lei para não parecer um fora da lei. Eis, abaixo, a cena.

O negro Marquis Warren, que lutou contra os confederados, quer matar o general branquelo, um confederado matador impiedoso de negros. Espertamente, Warren usa o precedente legal da legítima defesa para levar a cabo a sua vingança. E legalizá-la, evidentemente. Ele coloca uma arma ao lado do General. Em seguida, numa sequência espetacular de diálogos, Warren provoca o velho naquilo que lhe é mais doloroso, a perda do filho. Warren se coloca como o matador do filho, e tece detalhes asquerosos sobre como o matou, levando o general ao desespero e à insanidade. O general pega o revólver, e não resta a Warren senão se defender. Em suma, a justiça, e isto podemos comprovar em qualquer lugar, civilizado ou não, é apenas uma toga que esconde, sob sua pomposa veste, um interesse. E este interesse, evidente, não é necessariamente o de fazer justiça.

A carta que o major Marquis Warren levava consigo, como um salvo conduto, nada mais significava do que dar a ele, negro, uma dada importância. Afinal, era um pretenso amigo do presidente dos Estados Unidos da América, Abraham Lincoln. Mostrava a carta para quem quisesse lê-la. A carta fora ele próprio quem inventara e escrevera, como dito acima, como uma forma de se proteger. Mas a carta, falsa, nas mãos de Tarantino, que a inseriu em Os Oitos Odiados, tem significados extremamente verdadeiros. Portanto, transcreveremos a carta abaixo. Caso o espectador tenha interesse em lê-la, faça-o. Caso não, dê-se, o espectador, por encerrada esta resenha.

“Querido Marquis, espero que esta carta encontre você com uma boa vida e saúde. Eu estou bem, embora desejasse que houvesse mais horas em um dia. Há muito para se fazer. Os tempos de fato estão mudando, ainda que vagarosamente. E são homens como você que farão a diferença. Seu sucesso militar é um crédito não apenas para você, mas também para a sua raça. Encho-me de orgulho toda vez que ouço notícias suas. Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas, de mãos dadas, sei que chegaremos lá. Apenas quero que saiba que, em meus pensamentos, tenho esperanças de que nossos caminhos se cruzem no futuro. Até lá, continuo seu amigo. A veia Mary Todd está chamando, acho que é hora de dormir. Respeitosamente, Abraham Lincoln.”

Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.

Publicado em Categorias Cultura, Literatura, Resenhas, Teatro

Por Antônio Roberto Gerin

Manoel Antônio Álvares de Azevedo (1831-1852) foi, antes de tudo, o grande poeta romântico de sua geração. Mas ele não foi apenas o poeta. Macário, escrito pouco antes de morrer, é sua primeira e única dramaturgia, onde ele deixa antever o grande dramaturgo que poderia vir a ser se não tivesse morrido antes de completar vinte e um anos de idade. Foi, ainda, romancista e ensaísta, portanto, um currículo invejável para quem viveu tão pouco. Escrevera toda sua obra em pouco mais de três anos, dos dezessete aos vinte. Esta precocidade nos chama a atenção para o que ele poderia ter sido como artista e intelectual. Como assim, poderia ter sido? Ele foi. Esta é a questão. O pouco que produziu revela uma obra portentosa e que é objeto de admiração e estudo até os nossos dias. São admiráveis o vigor criativo e a pulsante poesia que transborda de seus escritos, uma força criativa quase inexplicável para um jovem que já dominava o grande conhecimento e que, ao frequentar o curso de direito no Largo São Francisco, era tido como um aluno brilhante e insuperável. Sua morte precoce veio apenas, e lamentavelmente, interromper a trajetória de um dos nossos grandes artistas em um país que começava a construir sua literatura e sua história cultural. É, pois, Álvares de Azevedo, uma de nossas primeiras luzes literárias, cujo brilho intenso ainda hoje nos ilumina.

Macário é antes de tudo um testamento de vida. E pode ecoar como um grito de desespero diante do abismo da morte. Sua narrativa gira em torno dos pensamentos e conflitos existenciais da personagem Macário que, eis a sacada de Álvares de Azevedo, se cinde em outras personagens, como espelhos que defletem uma alma atormentada, embebida do pessimismo e do ceticismo tão característicos aos românticos daquela época, frente a um eu tão exacerbado que o poeta absolutamente não sabe o que fazer consigo mesmo. É quando ele grita. “Por que viver se o coração é morto?”. Esta cisão de que falamos acima se dá nas personagens Satã, que traz a Macário o aviso de que a vida está no agora, e o limite dela é o pecado do amor. E, em outra personagem, Penseroso, o contraponto exato de Macário, que transfere para ele, Penseroso, a obrigação de morrer. Macário sobrevive, tão somente para perambular pela vida.

A poesia subverte a realidade. Ela canta os males da alma, mas não os espanta. Portanto, a poesia é traiçoeira, é a amante que se levanta da cama com um punhal na mão. E Álvares de Azevedo, pelo que se depreende da sua personagem Macário, nunca conseguiu tirar a faca das mãos de sua sedutora. Preferiu desistir dela desistindo da vida. E isto tanto é verdade que ele mesmo, Macário, afogado em seu romantismo suicida, revela, através de seu alter ego Penseroso, toda a sua dor. Diz ele. “Parece que no coração humano há um instinto que o leva à dor, como o corvo ao cadáver.”.

Uma última sugestão antes de encerrar esta breve resenha. Um conselho para os que amam a poesia e/ou para os que apenas amam a lucidez. Leiam Macário como um testamento de uma época em que nossos homens começavam a sonhar em projetar um país tão jovem e tão imenso na sua busca por uma identidade genuinamente brasílica. Álvares de Azevedo compunha seu caminho através de sua genialidade, nos legando uma obra que é nossa, e que não pode ser esquecida, sob pena de nos perdermos em nossa não identidade. É nos reconhecermos em nossos grandes artistas que nos reconhecemos em nós mesmos. Como cidadão ligado a uma pátria, e como ser humano se lançando na eternidade.

Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.

Publicado em Categorias Cinema, Cultura, Literatura, Resenhas

Sucesso de primeira

Por Antônio Roberto Gerin

 CÃES DE ALUGUEL (99’), com direção de Quentin Tarantino, EUA (1992) é o primeiro filme dele, Tarantino. Primeiro? Sim. Mas… Primeiro, e já tão bom?! Pois é. O cara começa lá em cima, já nos oferecendo uma obra seminal, onde estão pontuadas já algumas marcas tarantinianas que fariam a fama de Quentin. Talvez, desconheço, nenhum outro diretor tenha começado sua carreira cinematográfica com tanto ímpeto. Que o catapultasse à fama quase imediata, a despeito da fraca bilheteria. Nem mesmo um Ingmar Bergman alcançou esta proeza. Mas, o que é que Bergman tem a ver com este sanguinário Tarantino? Nada. Exceto por duas razões. Os dois são brilhantes no que fazem. E, acima de tudo, apesar de os dois trilharem caminhos estéticos totalmente opostos, eles se encontram por uma qualidade que lhes é peculiar e quase imbatível. A genial capacidade de esgrimirem diálogos. Habilidade comum, com fins diferentes. Tarantino se vale dos diálogos cambaleantes e recheados da ideologia pop para preparar a violência brutal. Bergman, do contrário, usa diálogos sutis e pungentes para preparar a dor incontida. Fora, pois, as preferências, não podemos negar que em ambos a palavra e a imagem andam de mãos dadas, numa generosa oferta à grandeza da sétima arte.

A estrutura narrativa de Cães de Aluguel é simples, e nada original. Um velho gângster contrata seis bandidos para executarem um grande roubo de diamantes numa joalheria. E já está determinado. A operação dará errado, com mortes de bandidos, policiais e civis. Alguns dos assaltantes sobreviventes retornam à base, um velho depósito abandonado, onde, de forma linear, a narrativa se desenvolverá. Linear, porque tem, na sequência, o começo, o meio e o fim. Mas Tarantino utiliza-se dos flashbacks para desenhar o perfil psicológico e biográfico de cada personagem bandido, de forma a entendermos o porquê do comportamento de cada um deles, naquele depósito, após o fracasso. Tudo girará em torno de uma única questão, que motiva a narrativa e dá a ela perspectivas dramáticas imprevistas. Imprevistas? – questionaria o espectador. Em se tratando de Tarantino, sabemos o que vai acontecer. Vai espirrar sangue pelas paredes! Sim, vai jorrar sangue pelo chão, mas não precisamos contar como. O que vale dizer, e não é spoiler, é que entre os seis bandidos há um alcaguete. Alguém avisara a polícia do assalto. E a eficiente polícia americana chegará ao local bem na hora em que botam as mãos nos diamantes.

Como dito acima, Cães de Aluguel é o primeiro filme de Tarantino em que se denota a antecipação estilística de um dos grandes artistas do cinema moderno. Está ali a estética do sangue. E o sangue, neste filme, acaba se transformando numa personagem silenciosa, estampada nas camisas branco-avermelhadas dos bandidos.

Outra característica a se ressaltar é a manipulação do cotidiano como forma de manifestação natural da violência, como se, ao se discorrer de uma forma errante sobre uma música da Madonna, Like a Virgin, estaríamos desprezando o impacto da violência na história da humanidade. A humanidade sempre foi violenta, e nossos arquétipos, com nossos pesadelos dos tempos das cavernas, denunciam o mundo violento em que nossos antepassados viveram. Sendo, ao longo dos milênios, apenas domesticados por regras civilizatórias. Mas a violência nunca saiu de nós, é o que os filmes de Tarantino nos avisam. Por isso que, ao assisti-los, eles não causam tanto prazer.

Para encerrar, apenas mais uma das tantas características desta estética de violência na cinematografia de Quentin Tarantino. O duelo. Todos conhecem esta prática aristocrática da defesa da honra, que depois seria transportada para o velho oeste, onde fez história em cenas icônicas espalhadas pelo gênero faroeste, fazendo a delícia apoteótica de muitos bangue-bangues. Ficando com apenas um exemplo, a cena final de Era uma Vez no Oeste, em que finalmente Harmônica (Charles Bronson) vai prestar contas com o seu passado ao duelar com Frank (Henry Fonda). Só que Tarantino sofisticou esse duelo e deu a ele toques bem mais violentos. Agora não se trata de defender a honra. Não se trata de combinar o local onde se dará o duelo. Com testemunhas previamente acordadas. Não. O duelo em Tarantino é espontâneo, movido pelo impulso da sobrevivência, dentro de uma circunstância dada, geradora da tensão, portanto, deste impulso. E mais! Tarantino aboliu as distâncias. Não há como errar. Em algumas cenas, a arma está já espetada na carne. Só falta explodir. Enfim, na dinâmica da disputa, para que alguém viva, alguém terá que morrer.

Mas onde está a diferença com os antigos duelos? A quantidade de sangue? Sim. Por que agora os duelos são múltiplos! “A” aponta a arma para “B”, que está apontando para “C”, que aponta para “D”, cuja arma está apontada para a cabeça de “A”.  Não é o duelo final de Cães de Aluguel, aqui omitido, para não darmos spoiler. Enfim, não são mais duelos, portanto. Agora são duelos multiplicados em “trielos”, “quadrielos”, ad infinitum! Caro espectador, quer coisa mais deliciosa do que esta…?!

Já em Cães de Aluguel, Tarantino nos traz esta deliciosa orgia de horrores, que se perpetuará em outros de seus filmes, com a ressalva para o grande múltiplo banho de sangue a ocorrer no subterrâneo de uma taverna francesa, em Bastardos Inglórios. Na verdade, Tarantino soube, como ninguém, escolher os ingredientes narrativos certos para alcançar seus fins estéticos. E ele sabia o que fazer já quando se propusera a rodar o seu primeiro filme. Não à toa, Cães de Aluguel é o que é: um filme para ser assistido. E cultuado.

Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.