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Por Alex Ribeiro

Rei Lear é uma peça de William Shakespeare, escrita entre 1605 e 1606, e uma das suas grandes tragédias. Ela foi a última peça encenada pelo consagrado ator Raul Cortez, antes que ele falecesse, em 2006. É, ao lado de Hamlet, uma das peças que mais se aproximam dos conflitos contemporâneos, por trazer em seu enredo temas como o amor familiar, a velhice e a morte. É considerada por muitos estudiosos uma das peças mais maduras e, talvez, uma das mais complexas, devido às características que Shakespeare construiu na dramaturgia do texto. O fato de Shakespeare ter mergulhado nas profundezas do seu herói trágico vai revelando facetas de Lear que nos deixam desnudos, ao olharmos para ele e vermos ali, refletidos, muitos dos nossos conflitos. Afinal, ter consciência de nossa finitude dá um outro significado para nossa vida. O amor seria tão importante se a morte não se aproximasse? Teríamos nós tanto medo de envelhecer se fôssemos infinitos? Essa sombra da morte parece agora ser aquilo que atormenta Lear. Um rei octogenário pode olhar para si mesmo e achar que não é mais possível manter sob seu cetro todo um reino. Que tal ceder o poder, com a condição de manter o prestígio? É uma pena que ele venha a descobrir, tardiamente, que poder e prestígio estão ligados a uma só coisa. A coroa.

Lear se apresenta como um rei déspota que durante muitos anos acumulou poder e prestígio. E isso parece um fardo, pois tamanha é a estranheza que causa no público ao ver um rei, ainda vivo, abrir mão do reinado e passá-lo às suas herdeiras. Assim ele inicia uma conversa com as três filhas, dizendo que dividirá entre elas o seu reino. Mas antes ele quer ouvir delas o quanto elas o amam. As duas primeiras, Goneril e Regane, bajulam nosso rei dizendo amá-lo de maneira incomparavelmente grande. Mas a terceira, Cordélia, não é capaz de mentir ao pai e revela seu amor genuíno, mas sem a bajulação das outras duas. O rei fica irado e deserda Cordélia. O reino será agora dividido apenas em duas partes.

Aí começa a jornada trágica do nosso rei. Com o poder em mãos, as duas filhas mais velhas arrancam tudo de seu pai, o séquito, o luxo, a guarda pessoal… Lear se vê um velho inútil e desconsiderado por elas. Ele abandona o palácio, vai caminhar à esmo, em busca de algo que nem ele mesmo sabe o que é. E chega a enlouquecer. Quando abandona tudo e se lança na tempestade, com a “cabeça descoberta”, vemos um Rei que, diante da adversidade, abre mão das suas exigências e parte para o desconhecido, para o obscuro, talvez tentando entender a si próprio e como chegara àquela situação. Muitas são as testemunhas de que o rei ancião chega a estar num estado de humilhação imensa. Isso é impensável para um rei! Mas esse foi o caminho necessário para que ele reconhecesse que o amor não vem da bajulação, como oferecido por suas filhas mais velhas, mas das palavras que dizem a verdade, como foram as palavras de Cordélia.

Há na peça muitas outras sutilezas, personagens e situações que transformam Rei Lear numa das obras primas de Shakespeare. Poderíamos abordar muitas outras facetas da história que vão, conforme a peça se desenrola, dando uma dimensão gigantesca à transformação pela qual Lear passa. Mas, aqui vamos nos ater à figura do bobo. Ele é o preferido de Lear, apesar de ser a figura mais baixa do palácio. Mas é ele, juntamente com Kent, quem permanece ao lado do rei no seu momento de maior desamparo. E com a sabedoria e a ousadia que caem à perfeição nos personagens marginalizados, o bobo vai revelando a Lear no que ele se tornara. Um rei que envelheceu antes de se tornar sábio. Só é possível a um bobo dizer isso a um rei, visto que, não sendo levado a sério, o bobo pode dizer a verdade sem que a fealdade de suas palavras seja sentida. Mas é claro que o rei irá sentir, mesmo que de uma forma sutil e diluída.

Pensar Lear hoje em dia nos coloca diante de um desafio. Não é fácil abrirmos mão de tudo aquilo que pensamos ser e sair em busca, numa solidão existencial, do nosso mais verdadeiro eu, nossa essência. Esse é o desfecho do nosso rei. Iludido pelo poder e pela ideia de si mesmo que criara, ele se vê totalmente arruinado. Só dois caminhos lhe restam. A conformação com a sua situação deplorável, ou a busca da verdade de si mesmo e o entendimento do seu erro trágico. Buscar nossa própria verdade é sempre um ato de coragem. É andar nu sob uma violenta tempestade. É o que faz Lear para tentar buscar a sabedoria que não lhe viera com os anos. Afinal, é muito difícil haver espaço para a sabedoria se olharmos somente para nossos umbigos.  Rei Lear, portanto, passa a ser um convite. Um inusitado convite a nos reconhecermos, a nos distanciarmos de nós mesmos para nos enxergarmos. Por isso também o teatro é muito importante, pois nos convida a olharmos ao redor para melhor apreendermos nossa essência. É um espelho, tanto individual quanto social. A partir daí é nossa responsabilidade escolher. Viver a condição deplorável a que nós mesmos nos colocamos. Ou ter a coragem de irmos em busca da mudança necessária.

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Por Alex Ribeiro

A Loucura de Hércules, ou Hércules Furioso, é uma tragédia escrita pelo filósofo romano Sêneca. Mesmo sendo difícil estabelecer uma cronologia das tragédias de Sêneca, pela carência de informações a esse respeito, o Hércules é quem mais se aproxima de uma data provável, o ano de 54 d.C. A influência das tragédias gregas sobre as tragédias romanas é nítida e imediata. Várias das tragédias que resistiram ao tempo têm nomes homônimos tanto na Grécia Clássica, quanto no Império Romano. O próprio Hércules Furioso é o nome de uma das tragédias de Eurípedes, grande tragediógrafo grego. Porém, tal associação, da influência grega sobre a tragédia senequiana, torna-se perigosa na tentação de comparar as obras e, equivocadamente, dizer que em Roma foi criada apenas uma cópia do modelo grego. Em Roma, houve outras influências de peças e obras poéticas de outros escritores que não os gregos, além da filosofia e pensamento político do próprio Sêneca, sobretudo em suas tragédias. No Hércules, Sêneca trabalha com a ideia de poder e tirania, tentando colocar uma espécie de ensinamento dentro da composição da tragédia. O que seria esperado, quando pensamos que havia uma distância de 5 séculos entre Sêneca e Eurípedes, além de o Império Romano ter dimensões colossais, se comparado às cidades-estados da Grécia. A conclusão a que se chega é a de que a tragédia senequiana era muito mais que mera tradução. Era uma interpretação e adaptação a um novo tempo e público, em um dos maiores impérios da nossa história.

A tragédia começa com Juno, esposa de Júpiter, amaldiçoando as amantes do seu esposo e Deus, e também a prole de bastardos que com elas ele teve. Mas deixa pro final aquele que ela mais odeia, Hércules. Para ela, nem mesmo os deuses podem enfrentar sua força e, desse modo, ele poderia invadir o Olimpo e passar a viver ali, entre os deuses. Essa possibilidade desperta nela uma ira implacável. Eis que então ela amaldiçoa Hércules. Só ele mesmo pode se destruir. Que fique louco.

Mégara, esposa de Hércules, e Anfitrião, pai terreno do herói, estão à beira do palácio de Tebas, onde choram a ausência do grande herói, cumpridor dos doze trabalhos e outros tantos feitos, que se ausenta de sua terra. Os dois, através de longos discursos, descrevem a grandeza de Hércules. Nessa saudosa conversa, aparece o então rei de Tebas, Lico, aquele que assassinara o pai de Mégara para lhe usurpar o trono. Ele pretende se unir a Mégara para legitimar o seu reinado, já que ela é da família real. Mas ela se nega e Lico se afasta, prometendo vingança.

Eis que chega, voltando do Inferno, e ao lado de Teseu, Hércules. Nosso herói está feliz por voltar à sua terra e família laureado pelo êxito de seus trabalhos. Após ser recebido pela família, descobre o que fizera Lico, e resolve se ausentar novamente para se vingar do tirano. Cumprida a vingança, ele volta aos seus, mas a loucura o acomete e ele assassina seus filhos e esposa, brutalmente. Quando volta a si, dá-se conta da barbaridade que cometera e o sentimento de culpa que o toma é devastador. Quer voltar ao inferno. Quer uma punição para si. Mas Teseu o convence a ir a um tribunal que lhe seja justo. Há uma certa semelhança entre a tragédia de Hércules e a de Ájax, só que o segundo, por estar totalmente desamparado, acaba por se suicidar. Hércules se encerra antes de sabermos o que acontecerá ao herói.

Mesmo tendo Sêneca a preocupação de escrever para o povo do seu tempo, a estrutura da tragédia grega parece ser mesmo o seu pilar trágico. A sensação de catarse que a tragédia desperta está presente ali na sua escrita também. Isso nos faz pensar como que a representação de grandes estórias, que mexem com o nosso mais profundo ser, tem todo espaço para se presentificar no teatro. Nossa forma de comunicação ancestral continua por nos revelar a nós mesmos, seja numa pungente catarse trágica, numa poética dor dramática ou mesmo no incontrolável riso cômico. O teatro nos serve como uma espécie de espelho, donde podemos projetar nossas mais belas e grotescas facetas, enquanto indivíduos, enquanto sociedade. É por isso que o teatro muitas vezes é visto como um inimigo. Numa sociedade ensandecida, em que se assassina os inocentes pensando-se ser um herói, assistir a Hércules Furioso pode ser um perigo. O perigo de reconhecer a si mesmo.

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Por Alex Ribeiro

És meu pequeno frasco de veneno
Que foi deixada num refrigerador qualquer
Que agora está diante de mim tentadora
Admiro-te então nesse fim de dia

O vento bate em teu corpo molhado
Eu contorno teu corpo com a ponta dos dedos
Aprecio todos os contornos de tuas curvas
Seguro-a decididamente em libido

Quanto mais te conheço sei de teu conteúdo
Aquilo que quero consumir sem pudor
Embriagar-me, enlouquecer-me em ti
Viciar-me no sabor do perfume que tu tens

Quando tua boca vermelha encontra meus lábios
Sinto-me tomado apreciando teu mel
A envolvo quero tê-la pra mim
Enquanto teu veneno me conduz ao meu fim

Beijo tua boca e encharco meu peito
Sinto estar num palácio de Deus
Enquanto meu tato descobre tua geografia
Deixo que tua alma seja uma estrela guia

Morro no veneno de teu conteúdo
Escorro meu ser no teu tudo
Morro vivendo pra tua alma
Assim sorrio enquanto a solidão desaba.