Ao Mestre com Carinho

O afeto dentro da sala de aula

Por Antônio Roberto Gerin

AO MESTRE COM CARINHO (105’), roteiro e direção de James Clavell, Reino Unido (1967), é um filme tão bem feito que nos dá a impressão de que ele já nasceu pronto. Ou realizado sem esforço. Lógico, sabemos que não é bem assim. Produzir filmes exige esforços artísticos e técnicos imensuráveis. Ademais, Ao Mestre com Carinho, baseado em livro homônimo de Edward Ricardo Braithwaite, publicado em 1959, traz uma temática moderna, sensível e explosiva. Questões sociais misturadas com racismo. Violências domésticas produzindo carências básicas, como a ausência de afeto e de orientação. Portanto, uma temática perigosa, onde há muito o que dizer e muito o que mostrar. E a câmera nos leva direto, sem pudor, para a sala de aula de uma escola da periferia de Londres, em um bairro operário do East End, apinhada de jovens perdidos, agressivos, infantilizados, precisando de alguém que lhes mostre o rumo, e tem que ser rápido, porque alguns destes jovens beiram já a delinquência. E o que fica evidenciado, logo nas primeiras cenas, é que qualquer professor, mesmo o mais experiente, pensaria mil vezes antes de entrar por aquela porta e encarar a turminha. O último não aguentou. E a escola acaba de contratar um novo professor. Inexperiente. Um engenheiro elétrico desempregado. Negro. Nascido na Guiana Inglesa, tentando a vida em plena Londres dos anos 1960. Então, professor… Vai encarar?

Mark Thackeray (Sidney Poitier) é, sim, um engenheiro desempregado que, após ter tantos currículos recusados, não vê outra alternativa senão aceitar o emprego de professor em uma escola de periferia. Mesmo sendo aconselhado pelos professores, seus futuros colegas, e até pelo diretor, a recusar o cargo, e depois do frustrante primeiro dia de aula, e mesmo depois dos sinais evidentes de desrespeito, rejeição e racismo, Mark insiste em encarar o desafio. E o faz não só por estar desempregado, mas também pela sua identificação imediata com a história daqueles jovens abandonados pelo sistema educacional londrino. Reside aqui a força moral e filosófica que explica a decisão de Mark. Ele conhece muito bem o que se passa ali, atrás daquelas carteiras. Lúcido, logo percebe que o caminho da autoridade se constrói pelo respeito, jamais pelo confronto.

Acima de tudo, este é um filme que trata com sinceridade, e muita sensibilidade, dos problemas de um grupo específico de jovens sedentos por alguém que lhes ensine os modelos elementares de convivência social. Nada de bombástico. É preciso apenas ensinar aos rapazes que se deve tratar uma mulher de senhorita e não de vadia. Que se deve pedir “com licença” quando entra, “bom dia” quando encontra. Sentar-se de modo correto à carteira, necessariamente tendo os pés presos ao chão, enfim, corrigir comportamentos desajustados de jovens que trazem para a sala de aula a falta de ensinamentos básicos que famílias desestruturadas não conseguem oferecer a seus filhos. Esta ausência leva, naturalmente, a um estado de selvageria, que nos choca, mas que é a realidade de muitas escolas por aí, inclusive dentro de nossas fronteiras. Verdade é que estes jovens estavam apenas à espera de um mestre que os tratasse com carinho. Alguém que os conduzisse, com mãos firmes, para a vida adulta. E eis que, por obra do destino, adentra a sala um charmoso e carismático Sidney Poitier!

James Clavell, tirando do livro autobiográfico de Braithwaite um roteiro enxuto e preciso, beirando o didático, leva o espectador ao limite da impaciência, a ponto de nos sentirmos tão desamparados quanto o professor. Podemos vê-lo parado, diante dos alunos, sem saber o que fazer. Na verdade, o nervosismo começa antes, ainda no corredor, quando o professor, ele próprio tenso, encaminha-se para a sala de aula. Cresce a expectativa. O que vai acontecer? Qual a próxima provocação? Livros derrubados ao chão. Tampas de carteiras largadas com estrondo. Pernas para o alto. Agressões verbais. Ironias. O pé da mesa cerrado, levando nosso professor quase ao chão. E ele ali, à frente, olhando a tudo, atônito. Será que vai gritar? Esmurrar a mesa? Partir para o confronto físico? Não. Mark Thackeray simplesmente faz o que tem que fazer. Foge às provocações. Não morde a isca. Ele sabe que os conflitos não nascem na sala de aula. Eles vêm de fora, dos lares, das ruas. Peitar a selvageria seria lutar contra moinhos de vento. Principalmente quando os conflitos de cada um se juntam num grande acordo, orquestrado pelo líder da arruaça, um tal de Denham (Christian Roberts). Conflitos unidos jamais serão vencidos! A não ser que a serenidade, a firmeza e a argúcia consigam nocauteá-los. E o mestre nocauteia. Um a um. Na individualidade, não no coletivo.

E eis o resultado. Se não há o embate, o conflito perde seu alvo de ataque. Ele terá que se voltar contra si mesmo. É a lógica. Previsível, aliás. E foi o que aconteceu. O mestre, com sua postura neutra, de não confronto, criou o vácuo. O espaço onde cada aluno agora ia poder olhar para si mesmo. Neutralizados os conflitos, as dores começaram a se manifestar. Nesse contexto, a figura paterna é a que surge com mais intensidade, provável, já num processo de identificação com aquele homem de gestos e olhares inabaláveis, de presença forte e jeito meigo, trazendo dentro de si uma amadurecida sensibilidade social, justamente do que os alunos precisavam. O mestre simbolizava a lei, imposta pelo afeto, não pela pancada. E aqui o filme começa a fazer lentamente a manobra em direção à conscientização da realidade desajustada em que aqueles jovens estavam inseridos. E esta manobra em direção aos bons ventos se dá quando Mark Thackeray, finalmente, entende o que está acontecendo. Num golpe de mestre, pega a pilha de livros sobre a mesa e joga tudo na lata do lixo. Isso mesmo. E pergunta para os surpresos alunos sobre o que eles querem conversar. Sexo? Casamento? Relações? Família? Menstruação? Às favas com o ensino formal!

Apesar do encantamento, da rendição, do alívio, vale lembrar que a resistência não se quebra totalmente. Nem podia, sob pena de o filme perder fôlego. A tensão, gerada pelo confronto inicial, persistirá até o fim, agora isolada na figura do líder da arruaça, aquele mesmo, o Denham. E o anticlímax acontece na última cena, antes do desfecho, quando Denham desafia o mestre para uma luta de boxe. Uma situação interessante, quase subliminar. E totalmente necessária. O filme precisava, sim, de um confronto físico, mesmo que a escola, sabiamente, tinha por norma jamais utilizá-lo.

Sidney Poitier empresta a Mark Thackeray seu charme, seu olhar, seu gesto gentil e denso, e, aos poucos, já não sabemos quem é o Mark e quem é o Sidney. A simbiose, do ponto de vista artisticamente humano, se concretiza. O filme, inglês, fez tanto sucesso nos Estados Unidos, em 1967, que a Colúmbia Pictures promoveu uma pesquisa para saber a razão por que tanta gente ia ao cinema para ver Ao Mestre com Carinho. A resposta foi quase unânime. Por causa de Sidney Poitier. Haveria alguma outra razão pra se ir ao cinema? Provável sim, afinal, o filme é ótimo. Mas temos que admitir. Sidney Poitier é o filme.

Em suma. Assistam a O Mestre com Carinho para verem Sidney Poitier. Mas não só por isso! Aproveitem para entender porque o cinema, para ser pura diversão, tem que oferecer charme e esbanjar inteligência. Mesmo tratando de uma temática tão complexa quanto o delicado corpo social radiografado dentro de uma simples sala de aula. E é aqui, dentro da sala de aula, que o filme edifica a sua grandeza. A escola não precisa substituir a família. Nem deveria. Mas também não pode virar as costas para o que acontece com seus alunos. Há, dentro de seus muros, um caldeirão fervilhante de demandas e carências que precisam ser atendidas. Portanto, a escola tem que se preparar, sim, para recebê-los. Afinal, não é toda sala de aula que terá um Mark Thackeray.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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